Manifestações do dia 31 de março de 2016, em Brasília
As mesmas forças
políticas que promoveram o Golpe em 1964 se rearticulam agora para atacar
a Democracia.
Naquela oportunidade a
imprensa criou artificialmente um clima de "algo tem que ser feito
para acabar com isso tudo que está aí". Setores de classe-média,
pensando-se bem informados, aderiram à proposta golpista. Juristas
politicamente afinados com a ideologia das classes dominantes emprestaram
suas biografias para legitimar a infâmia. A OAB dirigida por pessoas sem
qualquer relevância histórica ou jurídica aderiu.
A Igreja católica,
resgatando um anticomunismo à moda da guerra-fria, organizou a Marcha da
Família, com Deus, pela Propriedade. E em um primeiro de abril os
militares atenderam "à convocação das ruas". Seguiu-se uma noite
escura. Os direitos dos trabalhadores foram atacados naquilo que mais
incomodava o patronato: acabaram com a estabilidade no emprego; a Justiça
do Trabalho foi proibida de conceder reajustes salariais, milhares de
diretorias de Sindicatos foram afastadas, substituídas por pessoas servis
aos empresários e fiéis ao Regime de repressão implantado. O resto
é conhecido: passou-se da fase da Ditadura Envergonhada para a
Ditadura Escancarada (Gaspari).
Em 2016 as mesmas forças
políticas e o mesmo empresariado (os do pato de borracha à frente), com os
oligopolizados meios de comunicação tentam reeditar o ataque à democracia.
Não podem, contudo, contar com as Forças Armadas e com a hierarquia
católica. Socorrem-se em alguns setores de classe-média tangidos pela imprensa,
aproveitam-se que beócios dirigem a OAB e ressuscitam o ideário liberal
(liberdade imprensa, de expressão, de manifestação) para atacar os
direitos políticos, que implica respeito aos mandatos, e os direitos
sociais. Seu objetivo é a precarização dos direitos trabalhistas e a
redução dos custos com salários e vencimentos.
Mas alguma coisa está
fora da ordem.
Há uma resiliência
intrigante. Algo não está funcionando como gostariam.
Setores do funcionalismo
inicialmente empolgados pela individualista meritocracia (foram aprovados
em dificílimos concursos) começaram a perceber que o que viria depois
deste governo - no máximo socialdemocrata - seria muito pior para seus
interesses corporativos e remuneratórios e começam a desconfiar que estavam
sendo usados para defender algo que atenta contra seus interesses individuais.
O individualismo, em dupla faceta, erode a legitimidade dos
protestos entre o funcionalismo. Pelas razões erradas, mas erode.
A Lava-Jato sai do
controle. Começam a aparecer corrupções diversas de protagonistas do Golpe
e um dos principais atores do processo comete crime ao divulgar
ilegalmente gravações telefônicas. Parte daqueles que foram levados a
acreditar na falsa sinonímia entre corrupção e esquerda-no-poder começa a
desconfiar de tais certezas absolutas. A maioria desta massa que se tornou
direitista sem consciência disso segue rosnando impropérios, todavia, atos
tresloucados, pedidos de desculpa, exageros múltiplos descortinaram para
parte desta turba que a corrupção não foi inventada pelos governos de
coalizão hegemonizados pelo PT.
Parte da "esquerda
que a direita gosta" se deu conta de que as "heróicas jornadas
de junho de 2013", com seus black-bocs, eram movimentos fascistas e
que seus desdobramentos não contribuíram para os pretendidos avanços
sociais, bem ao contrário. Exceto por umas alma-penadas que teimam em
manter uma impossível equidistância nesta luta de classes, os ataques da
Direita propiciaram uma inaudita unificação das Esquerdas, nos movimentos
sociais e nas manifestações em defesa da democracia. Com isso os golpistas
não contavam.
O Supremo Federal de hoje
já não pode ser emparedado. Em sua composição atual - a mais qualificada
da história do STF - há homens íntegros que não se corrompem pelos afagos
do empresariado e não se intimidam mesmo quando têm suas próprias intimidades
devassadas pelos golpistas. Em respeito às suas biografias os Ministros
têm debatido muito a conjuntura e vem se formando no STF um consenso
progressivo que tende à maioria de que os que atacam a democracia
pretendem, de fato, chegar ao poder sem os votos da maioria da população.
O congresso nacional
atual, ao contrário, tem a pior composição da história do parlamento
brasileiro. São muito mais que 300 os que fazem da picaretagem um meio de
vida. Esse congresso, intencionalmente em minúsculas, verdadiramente não
conta com legitimidade e apoio nos abobados que ainda defendem o
impeachment. Esses nem se dão conta de que a consequência do impeachment
seria colocar Temer, um traidor, e Cunha, um escroque, na condução do
país.
Há muitos outros
elementos a serem considerados, mas limito-me a destacar um último que me
parece extremamente relevante.
Nos demais Movimentos
Destituintes fomentados desde o exterior por intermédio das redes sociais
(primavera árabe, por todos), nas tentativas frustradas de deposição de
governos (Venezuela como emblemática), nos golpes a frio (Honduras e
Paraguay como exemplos) não aconteceu uma verdadeira politização das
sociedades.
O que está acontecendo no
Brasil está "fora do combinado" pelos que se articularam para
derrubar o governo.
Houve uma brutal, enorme,
estupenda politização da sociedade brasileira que passou a discutir
política o tempo todo, nos salões-de-beleza e nas barbearias, nos bares de
esquina e nos restaurantes mais sofisticados, nas salas de aula nas
escolas públicas e privadas, nas faculdades e em milhares de grupos de
Telegram, de WhatsApp, no FaceBook, nas listas de e-mail.
A Direita, com apoio das
televisões, jornais e revistas, dividiu o país contando que a maioria da
população permaneceria entorpecida pelo espetáculo midiático, contou com
que as ruas fossem tomadas pelos mesmos black-bocs, pelos mesmos
"bombadinhos de academia", pelos abestados de verde e amarelo
que em junho de 2013 desfraldaram as bandeiras do "meu partido é o
Brasil" e "o gigante acordou" sem saberem que estas
provinham dos Integralistas, dos fascistas brasileiros, na década de 30.
Mas alguma coisa está fora da ordem. Ocorreu exatamente o contrário:
metade do Brasil se mobilizou para defender a democracia e as redes
sociais que foram usadas nos demais Movimentos Destituintes, no Brasil,
serviram para convocar a resistência.
A política, aquela coisa
suja que só interessava aos candidatos que de tempos em tempos apareciam
para pedir votos, saiu às ruas e adquiriu relevância na vida das pessoas.
Hoje há posições consolidadas à Direita e à Esquerda, em polos opostos,
disputando hegemonia entre a imensa maioria que se já esteve ao lado dos
golpistas, agora já não ostenta tanta convicção.
Para finalizar, uma
referência que é sobretudo estética. Cada um dos polos antagônicos desta
disputa hegemônica arregimentou seus ídolos. Na música, de um lado estão
Lobão, Roger, Fábio Júnior; de outro Chico Buarque e a nata da MPB, do
samba, e de diversos outros estilos. No futebol, de um lado Ronalducho, de
outro Juca Kfury. Nas artes cênicas, de um lado Maitê, Regina Duarte; de
outro, a intelectualidade do teatro e da televisão. Na Letras, de um lado
Merval Pereira, de outro Fernando Moraes. No campo do direito, então, uma
barbada. Do lado de lá o que pode haver de mais desprezível, muito embora
contem também com alguns juristas de valor cuja presença entre
tantos medíocres causa muita estranheza, todos se esmerando para
em verdadeiras "pedaladas jurídicas" justificar que o
impeachment, sem que tenha havido um crime, não seria um Golpe. Do outro
lado, do nosso lado, os maiores juristas do país que não vou nominar
porque, esquecendo alguém, cometeria inadmissível injustiça.
Isento meus amigos
de Curitiba que não se opuseram frontalmente ao Golpe. Compreendo-os. A
teia de relações sociais em Curitiba condicionam posturas em face de
complexas intermediações decorrentes de situações familiares, de
coleguismo, de afetividades diversas. Escolheram ser assim, nada mais que
isso. Essa polarização havida em vários campos da cultura, das artes,
das ciências também contribui para resiliência do governo, para
a resistência democrática, pois integra o conjunto de elementos a
serem considerados na disputa hegemônica que "saiu do lugar" que
ganhou as relações sociais, as conversas em todos os locais, que
"está fora da ordem" pretendida pelos golpistas.
Eles têm pressa. Nós
temos a razão. Os empresários, a grande mídia, não têm por que ficar com a
consciência pesada. Estão defendendo seus próprios interesses, acima de
tudo, econômicos. Entre os demais que se posicionaram ao lado dos
empresários há muitos que, no fundo, no fundo, já começam a se sentir
envergonhados por terem alugado suas penas, por terem se exposto, por
terem defendido patos de borracha, por terem se deixado manipular, mas não
podem recuar. Uma lástima. Descuidaram-se de suas biografias. Paciência.
Daqui a uns dez anos ninguém mais vai lembrar muito bem de que lado cada
um se posicionou.
Essa nova política, essa
política que ganhou as ruas, que está nos almoços de domingo, nos bares,
nos ônibus, nas empresas e nas redes sociais é a grande novidade do Brasil
atual.
Ainda é cedo para
sabermos como se dará essa nova correlação de forças na sociedade, qual
será a resultante na disputa hegemônica, se conseguirão derrubar o governo
ou não.
Caso o Golpe se
concretize o governo Temer/Cunha não terá trégua. Enfrentará a mais
renhida oposição da história brasileira, nas ruas, nos locais de produção
e de trabalho, nos locais de moradia. E a esquerda voltará ao governo,
mais dia, menos dia, e então sem cometer os erros, graves erros, que
cometeu nos últimos anos.
Caso a resistência seja
suficiente, caso o impeachment não obtenha a maioria dos votos para
derrubar o governo as coisas também não serão fáceis, mas Dilma e Lula
estarão libertados de qualquer eventual compromisso de atender em parte os
interesses do grande empresariado golpista. Poderão, se quiserem, fazer o
primeiro governo realmente de esquerda no Brasil.
Do O Cafezinho
Por Wilson Ramos Filho,
doutor em direito, professor na UFPR (doutorado, mestrado e graduação) e
no Master/doctorado em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo
(UPO/Espanha).
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