Foto: Thiago Melo
Estado
policial: é que de há muito começou a chover na serra!
Se a
concepção de racionalidade histórica de Hegel sobre a importância do Estado
fosse correta para a evolução do Estado (ou da teoria do Estado), no Brasil
esta(ría)mos a um passo de uma ditadura ou fragmentação total do país. Espero
que não seja assim.
Por isso sou
um insistente. Peço desculpas por ainda acreditar na tese de que a saída deve
ser pela Constituição, e não fora dela. Portanto, a saída é “via Estado” (o
próprio Hegel dizia, na aurora do século XIX, que a Alemanha já não era um
Estado – Deutschland ist kein Staat mehr). Peço até desculpas por falar em
Direito. Aliás, como já não se ensina Direito nas faculdades, o professor tem
de pedir licença e desculpas aos alunos para falar um pouco de... Direito, já
que o que se vem “ensinando” é a (má) teoria política do poder. Resultado: não
se respeita o CPP, o CPC e a CF. Por todos os resistentes, cito Pedro Serrano,
Salah Khaled Jr, Dierle Nunes e Rosivaldo Toscano: para eles — e acompanhei
suas postagens no Facebook (ler aqui) —, defesa de direitos e garantias não
deve e não pode ser de ocasião.
Muitas
colunas já escrevi aqui na ConJur sobre a necessidade de se preservar a
Constituição em qualquer circunstância. Constituição é um remédio contra
maiorias. A democracia dos séculos XX e XXI apenas se consolidou porque o
Direito foi um instrumento fundamental para filtrar a política e os juízos
morais. E não o contrário. Quer dizer, se é a moral que filtra o Direito, então
não há mais Direito. Esse é o ponto com o qual, acredito, Pedro e Salah
concordam comigo.
Historicamente
venho trazendo, hebdomadariamente, exemplos metafóricos acerca do valor da lei.
Um deles, lembro, é sobre o que aconteceu no seriado House of Cards, quando o
presidente dos EUA é ferido e necessita de um transplante de fígado. Ele é o
segundo da fila de transplantes. Chega ao hospital e, como surge um fígado, a
assessoria quer furar a fila. O médico-chefe apenas diz: “Ele é o segundo da
fila” (“It's the law”). Também criei o “fator stoic mujic”, que conta a
história do advogado Sandoval defendendo um espião russo no auge da Guerra
Fria, em plena Washington (filme A Ponte dos Espiões). Contra tudo e contra
todos, ele defende seu cliente. Até seu filho lhe questiona. Ele diz:
"Estou apenas fazendo o meu trabalho".
Poderia
trazer inúmeros exemplos para mostrar o valor da lei e da Constituição. Tenho
passado perrengues epistêmicos por adotar uma linha de ortodoxia constitucional
em defesa das garantias e do devido processo legal. Há anos denuncio que o
Direito está cercado de predadores. Os predadores externos tradicionais são a
política, a economia e a moral (esta é o mais perigoso, porque também atua como
predador interno). Terrível. Os internos, além dos juízos morais e moralizantes
— os piores —, são todos os elementos que fragilizam o grau de autonomia que o
Direito deve ter (daí o perigo de coisas como “os fins justificam os meios”,
“decido conforme minha consciência”, “não importa a forma, vale mesmo é o
conteúdo”, “decido primeiro e depois fundamento e coisas desse gênero”).
Há uma
fábula que bem mostra como se comporta parte considerável da comunidade
jurídica. O cordeiro tomava água no riacho e aparece o lobo para tomar água na
parte mais elevada[1]. E diz: “Cordeiro, você está sujando a minha água”. Este
responde: “Isso é logicamente impossível. Estou à jusante, e você, à montante”.
Então o lobo diz: “Então foi seu pai”. E o cordeiro, triste, responde: “Sou
órfão. Meu pai e minha mãe foram comidos por lobos”. “Então foi seu irmão”, diz
o lobo. “Igualmente impossível”, diz o cordeiro. “Todos os meus irmãos foram
devorados por uma alcateia de colegas seus.” Então o lobo diz: “Não importa
nada disso. Faço raciocínios teleológicos. Primeiro, decidi que comeria você.
Depois busquei um fundamento qualquer. Mesmo sem o fundamento válido, tenho o poder
de decidir”. E arrematou: “Cordeirinho gostosinho: para você que não estudou
Kelsen, isso se chama vontade de poder, quer dizer, devorarei você por um ato
de vontade”. E, bingo, devorou-o.
Qual é a
diferença do “raciocínio” do lobo com o que faz hoje a maioria das pessoas que
lidam com o Direito? Comportam-se como o lobo. Respondem segundo seu apetite
(ou melhor, suas opiniões morais, políticas, ideológicas), fazendo soçobrar a
Constituição. Há um vaivém de opiniões. Quem apoiou o grampo em Dilma agora se
queixa da prova no caso Temer. Esqueceram que “pau que bate em Chico bate em
Francisco”. Pau é... Pau! Por outro lado, quem criticou os vazamentos e a
intercepção ilícita da conversa Lula-Dilma agora diz que não há
ilegalidade-inconstitucionalidade no flagrante preparado no caso Temer (Cesar
Bitencourt demonstra, em texto na ConJur, que houve flagrante preparado);
veja-se o quase silêncio acerca da flagrante ilegalidade no caso da divulgação
da conversa entre Aécio e o ministro Gilmar (ou entre Aécio e seu advogado
Toron); e, embora a indignação de juristas (advogados e professores) e
ministros do STF (Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Celso de Mello — foram os que
li; a coluna foi fechada no início da tarde desta quarta-feira, dia 24), penso
que deveria ter mais gente protestando contra a vergonhosa violação do sigilo
da fonte e do artigo 9º da Lei 9.296, em que foi vítima o jornalista Reinaldo
Azevedo (imagine-se o tamanho do dano moral — e quem vai pagar?). E assim por
diante.
Ilegalidade
é ilegalidade. Não tem cor, sexo, sabor, ideologia. Se aceitarmos que o Direito
seja substituído por juízos morais ou políticos, não mais teremos Direito. Um
turbilhão de ilegalidades e inconstitucionalidades está colocando em risco a
democracia brasileira. Estamos à beira de um Estado policial (se já não
estamos). Há uma tempestade perfeita para uma ditadura judicioministerial (que
pode redundar em outro tipo). Volto a Hegel, do qual falei no início.
Não preciso
falar aqui da violação das garantias de juiz natural — institucionalizamos uma
pamcompetência. E que as violações da lei da delação são de A à Z. Dezenas de
juristas apontam para isso. E o que dizer da divulgação de depoimentos, de
forma seletiva ou não? E jornalistas que recebem informações privilegiadas de
agentes públicos? Por que, a não ser este escriba, ninguém criticou a
ex-ministra do STJ por dizer que, mesmo sabendo de vazamentos, nada fez, porque
sabia do bom propósito... E o que dizer de agentes que saem no meio de uma
operação e se transformam em advogados e passam a atuar nos feitos?
Na verdade,
formou-se uma “bolha especulativa” no e sobre o instituto da colaboração
premiada. E pouca gente protesta contra o uso abusivo das prisões
preventivas... Porque se trata de “bom propósito” (afinal, as prisões são de
pessoas das quais não gostamos). Só que bolhas costumam estourar. Aliás, o caso
dos irmãos Batista (os irmãos Uesleis) parece ter sido o primeiro grande
estouro. Há que se cuidar com a reação em cadeia.
Minha coluna
de hoje é singela. Tinha tanta coisa para escrever. Mas me bate uma melancolia.
Uma tentação de “deixamento” (minha tradução para Gelassenheit, que muitos
traduzem como “serenidade”, outros por “melancolia”). Mas temos de resistir a
essa “deixação”.
Manter
coerência no discurso de defesa da Constituição por vezes soa antipático.
Quando a violação é contra os inimigos, elas não são violações. Quando são
contra nossos amigos ou nós mesmos, tornam-se robustas violações. Bom, talvez
por isso a guerra de opiniões continue. Mas são apenas opiniões. Afinal, como o
país está dividido, sempre haverá em torno de 50% que estarão contra as
violações e 50% a favor. Depende sempre de quem for o atingido pela ilegalidade
(aliás, qual será a próxima?). Só que a democracia não é o resultado de somas
de percentuais. Isto é: 50% mais 50% pode, por vezes, resultar em soma zero.
Eis o perigo.
Insisto com
Eraclio Zepeda: quando as águas da enchente cobrem a tudo e a todos, é porque
de há muito começou a chover na serra. Nós é que não damos conta. Desenhando:
quando não nos importamos com a primeira violação, criamos a tempestade
perfeita. Retomo à pergunta já feita em outro texto: quanto queremos investir
na democracia? Não há grau zero de poder. Não há grau zero na política. Escrevi
há quase 30 anos a seguinte frase: a Constituição deve constituir-a-ação. Fora
dela, é o caos. E o conceito de caos é: “Depois do primeiro tiro, ninguém mais
sabe quem está atirando”.
[1]
Homenagem a Georges Abboud, que contou a fábula esopiana no congresso em minha
homenagem em João pessoa. Apenas fiz adaptações.
Do GGN
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