Impeachment
de Dilma “gerou uma sociedade que guarda cicatriz e ainda está dividida”, diz
Barroso.
Tímido
ensaio para uma autocrítica do Supremo
O
Supremo Tribunal Federal tem uma dívida para com a democracia brasileira: não
impediu, com argumentos jurídicos e com sua autoridade de guardião da
Constituição, que fosse politicamente consumado pelo Congresso um golpe contra
a presidente eleita Dilma Rousseff, deixando ir em frente um processo de
impeachment viciado. Da composição que homologou o golpe, talvez nenhum dos 11
ministros venha a reconhecer isso em vida, mas a História cobrará. Nesta
segunda-feira 29, o ministro Luís Roberto Barroso fez um tímido ensaio de
autocrítica: admitiu que a remoção de Dilma deixou uma cicatriz na vida
política brasileira, dizendo que o STF não interferiu no processo por acreditar que não devia fazer uma opção
política numa sociedade divida. Desculpe o ministro, mas esta é uma explicação
errada para uma atitude errada. O Supremo poderia ter barrado o golpe com
fundamentos jurídicos, apontando as inconsistências do processo, o que não
significaria uma opção política pelo governo eleito em 2014. Hoje, o Brasil
seria muito agradecido ao STF e seus ministros.
Falando
em um seminário nesta segunda-feira, 29, Barroso parece ter reconhecido, ainda
que forma muito tímida e evasiva, que tudo poderia estar sendo diferente para o
Brasil se o STF não tivesse lavado as mãos na bacia de Pilato. Se a Suprema
Corte, baseando-se apenas na Constituição e na lei, como era possível e
desejável, tivesse impedido o golpe que feriu a democracia brasileira, hoje o
país não teria um presidente apodrecendo no cargo, juntamente com seu grupo
político, à espera de que o próprio Judiciário encontre meios de removê-los,
apesar dos crimes espantosamente claros cometidos por Temer e parte de seus
auxiliares. Não tendo impedido o golpe, agora o mesmo Judiciário terá que
resolver a crise política, afastando Temer pelo TSE ou pelo próprio STF, quando
ele se tornar réu no inquérito em que é investigado com base na delação da JBS.
Mas o TSE deve antecipar-se nesta tarefa urgente. Vale a pena ler as linhas e
entrelinhas de Barroso, referindo-se ao impeachment.
“Independente
de qualquer juízo de mérito sobre justiça ou não da decisão parlamentar, o STF
não interveio nessa deliberação um pouco pela crença de que, num país dividido
politicamente, não caberia a ele fazer escolhas políticas. Esse foi o processo
que tivemos aqui e que gerou, como qualquer observador atento perceberá, uma
sociedade que guarda essa cicatriz e ainda está dividida em torno desse
procedimento.
O
Supremo teve muitas oportunidades para barrar o golpe. Logo que Eduardo Cunha
acolheu o pedido de impeachment
apresentado por Janaina Paschoal, Helio Bicudo e Reale Junior, a defesa de
Dilma recorreu ao STF apontando o vício
original da decisão de Cunha, que agiu por vingança contra o PT. Ele havia engavetado outros pedidos mas acolheu este
horas depois de o PT decidir votar pela abertura do processo de sua cassação no
Conselho de Ética. Há poucos dias, o
próprio Temer afirmou, numa entrevista de televisão, que Dilma não teria caído
se o PT tivesse votado a favor de Cunha.
Em
dezembro de 2015, o STF fixou o rito do impeachment, corrigindo algumas das
regras baixadas por Eduardo Cunha. Ou seja, abençoou o processo. Depois, seu
presidente, Ricardo Lewandowski, ainda presidiu as sessões de julgamento do
Senado, em uma segunda e notável legitimação do golpe.
No
curso do julgamento propriamente dito, o defensor de Dilma, José Eduardo
Cardoso, recorreu algumas vezes ao STF contra o entendimento de que as tais
pedaladas fiscais – uma prática corrente em todos os governos nas últimas
décadas – e a edição de um decreto sem autorização parlamentar (após demonstrar
que os outros linham lastro orçamentário), representassem o cometimento de
crime de responsabilidade, tal como definido em lei e na Carta. O Supremo
novamente lavou as mãos.
Hoje,
reclamam os golpistas do fato de, no julgamento final no Senado, ter havido um
arranjo para preservar os direitos políticos da presidente que estava sendo
deposta. Foi deveras um arranjo revelador da culpa que ali atacou os algozes.
Renan Calheiros foi um dos articuladores e Lewandoswski teve atuação decisiva a
favor desta “indulgência”. Mas ela também é uma prova de que o processo foi
“heterodoxo”, pois se levado ao pé da letra da Constituição e da lei 1070/50,
se Dilma tivesse mesmo cometido os crimes de que era acusada, teria que ter
sido punida também com a perda dos direitos políticos. Foi como se, na hora da
decola, STF e Congresso combinassem:
vamos usar uma espada menos afiada. Talvez o derrame de sangue seja
menor e menos escandaloso.
Agora,
por ironia, Dilma possivelmente os
perderá, caso o TSE resolva, para nos livrar de Temer, cassar a chapa
presidencial vitoriosa em 2014 e punir exemplarmente seu dois integrantes.
Temer será cassado e ambos perderão os direitos políticos. Para ela, será uma dupla injustiça na correção
de um erro cometido lá atrás pelo STF, quando não quis impedir o golpe para não
parecer que estava tomando partido político. Ministro Barroso, se o STF tivesse feito o contrário, em vez de
cicatriz, hoje haveria gratidão na sociedade brasileira à sua Suprema Corte.
247, Tereza Cruvinel
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