segunda-feira, 5 de junho de 2017

Juiz Gilmar Mendes, o mal exemplo da discrição esperada do Judiciário, Ivar Hartmann

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Em artigo publicado ontem (4) no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo, o professor da FGV Direito Rio Ivar Hartmann defende que a legitimidade do Poder Judiciário depende também não só das sentenças, mas “daquilo que se dá fora dos autos”.

Para o pesquisador, os juízes devem se manter como observadores “rigorosamente passivos”das negociações entre Executivo e Legislativo, ressaltando que a “atual demanda por exposição e transparência do Judiciário não tem precedentes”.

Como um dos exemplos, Hartmann cita Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, relembrando as diversas vezes nas quais o ministro atuou como ator político. “Declarações excessivas à imprensa, na hipótese mais branda, são ilegais por anteciparem seu julgamento; na mais grave, provocam o descrédito da instituição e dos colegas”, afirma.

Da Folha - Gilmar Mendes é contraexemplo da discrição esperada do Judiciário

IVAR HARTMANN

Quando questionado sobre o processo que pode cassar a chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), seu relator, ministro Herman Benjamin, nada diz. Afirma estar em "silêncio beneditino".

Há cerca de um ano, Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi criticada em conversa grampeada de investigados da Lava Jato porque "não deu o negócio do Lula [PT]". Apesar de suposta intervenção de Dilma Rousseff (PT), a ministra negou pedido para afastar do juiz federal Sergio Moro a investigação sobre o ex-presidente.

Ambos os magistrados adotam comportamento essencial em tempos de normalidade e decisivo durante período de crise política aguda. Sabem que a legitimidade do Judiciário depende não apenas da qualidade e da celeridade de suas sentenças mas também daquilo que se dá fora dos autos.

Infelizmente, a parcialidade de magistrados em todo o país tem sido cada vez mais questionada, pois certos juízes não cumprem duas regras básicas. Primeiro, não se pode antecipar a posição pessoal sobre o mérito de questões que acabam judicializadas. Segundo, deve-se permanecer como observador rigorosamente passivo de negociações no Executivo e no Legislativo.

A primeira regra parece mais simples. Antigamente, bastava ao juiz não conceder entrevista sobre questões que poderiam acabar na sua vara ou em seu tribunal. Essa proibição está na lei que fixa o código de conduta dos magistrados.

Um exemplo recente ilustra bem o problema. Há cerca de dez dias, esta Folha informou que o STF, contrariando seu entendimento, poderia deixar Lula solto mesmo após condenação em segunda instância. O ministro Celso de Mello logo emitiu nota informando como se posicionaria no caso. Ao adiantar seu entendimento, prejudicou sua própria imparcialidade –farão diferença os argumentos que defesa e acusação venham a trazer?

Outros exemplos tendem a ser mais complexos. A atual demanda por exposição e transparência do Judiciário não tem precedentes. Falar à imprensa passou a ser apenas uma de muitas maneiras de interagir com a opinião pública.

Nos anos 1990, ainda que um ministro do STF decidisse dar uma declaração polêmica, o fato dificilmente ganharia a capa dos jornais de grande circulação.

Hoje, os brasileiros conhecem o poder decisivo de uma liminar que bloqueia o WhatsApp ou de uma decisão que afasta o presidente da Câmara dos Deputados. Acompanham esperançosos os processos criminais de figurões da política. Comparam seus rendimentos com os contracheques dos juízes e avaliam se isso deveria ser pauta de protesto nas ruas ou no Facebook.

Essa busca de mais informação sobre a Justiça é satisfeita e estimulada por notícias que chegam segundo a segundo, seja por veículos tradicionais, seja por novas agências, seja por redes sociais.

PARA A PLATEIA

No caso das redes sociais, em particular, a via é de mão dupla. Transmitem o que se escreveu ou se disse sobre os juízes, mas são também ferramenta que magistrados usam para escrever e falar diretamente com o público. É saudável que os cidadãos estejam mais interessados no que faz o Judiciário. Mais cobertura da mídia traz mais transparência –mas também mais oportunidades para excessos.

Moro aprendeu com a operação italiana Mãos Limpas a importância do apoio popular para combater a corrupção sistêmica. Quando sente necessidade, usa a internet para falar diretamente com os brasileiros, estimulando o clamor que acaba legitimando a Lava Jato.

Mas nem sempre há cálculo estratégico. O juiz de Brasília que suspendeu a nomeação de Lula como ministro no ano passado publicou em seu perfil foto com adesivo de Aécio Neves (PSDB-MG), conclamou os amigos a "ajudar a derrubar a Dilma" e fez manifestações em uma rede social relacionadas ao caso no qual mais tarde deu a liminar.

Assim também a juíza que proibiu o acampamento de defensores do ex-presidente durante seu interrogatório em Curitiba. Em seu perfil, ela compartilhava postagens do Movimento Brasil Livre e aplaudiu a condução coercitiva daquele que os afetados por sua decisão queriam prestigiar. Ambos restringiram o acesso ao seu perfil no Facebook quando viraram notícia, mas as manifestações ainda assim foram amplamente disseminadas.

Esses e outros casos ajudam a alimentar a crença de que o PT é perseguido pela Justiça. Isso põe em questão as decisões não só desses dois magistrados mas também as de seus colegas. A impressão de que juízes decidem com um viés partidário está entre os maiores problemas da primeira instância.

Nos tribunais superiores, existe outro. Há um tipo específico de uso da imprensa que permite a ministros quebrar a segunda regra básica: não virar ator político.

Durante o mensalão, os jornais repercutiam as falas dos magistrados nos autos. Os julgadores eram observados, descritos, criticados e até santificados por suas decisões. Os ministros, porém, nem sempre se contentam em ser objeto passivo de observação. Alguns buscam os jornalistas e ativamente dialogam com os observadores. A imprensa repercute mais suas entrevistas que suas sentenças.

O projeto Supremo em Números utilizou a base de dados Media Cloud da Escola de Matemática Aplicada da FGV. Ela cataloga diariamente, entre outras publicações, todas as notícias online dos grandes veículos de imprensa do país. Identificamos todas as menções a ministros do STF nos últimos seis meses.

Os dias de maior repercussão foram causados pela chocante morte de Teori Zavascki e pela divulgação da chamada "lista do Fachin", com nomes de investigados a partir da delação da Odebrecht.

Esses eventos excepcionais fazem com que os dois ministros sejam mais citados do que qualquer outro no período. Entre os demais, não está em primeiro lugar a atual presidente, ministra Cármen Lúcia. É Gilmar Mendes quem mais aparece –e isso ainda não diz tudo.

GILMAR MENDES

Para quase todos os ministros, o dia com o maior número de citações na mídia foi resultado de uma decisão judicial –ou de um trágico acidente. É o caso da liminar de Luiz Fux suspendendo o trâmite das dez medidas contra a corrupção no Congresso ou do pedido de vista de Dias Toffoli em julgamento sobre a linha sucessória da Presidência.

Mendes é diferente. Seu dia mais midiático ocorreu quando criticou projeto de lei que mudaria as regras sobre prestação de contas de partidos. Caso a proposta avançasse, provavelmente seria questionada no STF, onde Mendes deveria atuar como julgador imparcial.

No segundo dia de maior visibilidade, o ministro se reuniu com Michel Temer (PMDB) e os presidentes da Câmara e do Senado para discutir reforma política. Isso apesar de ser Cármen Lúcia a atual autoridade máxima e representante do Judiciário nacional.

No terceiro, as notícias são de um evento acadêmico que Mendes organiza com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e com João Doria (PSDB), prefeito de São Paulo, bem como sua afirmação de que a Justiça do Trabalho é um "laboratório do PT".

No quarto dia de maior número de citações, Mendes acusa a Procuradoria-Geral da República de crime por ter supostamente vazado nomes de políticos alvo de pedido de investigação no Supremo. A lista segue.

No caso de ministros de tribunais superiores, declarações excessivas à imprensa, na hipótese mais branda, são ilegais por anteciparem seu julgamento; na mais grave, provocam o descrédito da instituição e dos colegas. Além disso, podem servir para dar poder excessivo a um ministro que já conta com fortes prerrogativas de função, facultando a essa pessoa atuar de forma privilegiada no campo da negociação política.

Há ainda os exemplos mais óbvios dessa atuação política. Há poucos dias, revelou-se o conteúdo de telefonema no qual Aécio Neves discutia com Gilmar Mendes estratégia para o sucesso da tramitação do projeto de lei de abuso de autoridade.

O contraste é claro entre Rosa Weber, criticada em um grampo por não jogar o jogo, e Mendes, interlocutor de conversa em que demonstra buscar o protagonismo nesse jogo. Como é possível esperar imparcialidade de Mendes se a nova lei de abuso de autoridade for questionada no STF?

Os novos tempos da relação entre a opinião pública e o Judiciário trazem novas formas e oportunidades para que magistrados tomem a iniciativa de se comunicar com a população. Mas nem todos esses novos meios devem necessariamente ser aproveitados.

Não sabemos se os exemplos dos juízes de Brasília e Curitiba são apenas casos isolados ou se representam tendência nacional. Certo é que, em tempos de mais transparência e novos meios de comunicação, condutas republicanas como as de Herman Benjamin e Weber são ainda mais importantes.

É preciso poder acreditar que o Judiciário será o fiel da balança na iminência de uma segunda troca de presidente da República em 12 meses. É preciso poder acreditar que os tribunais serão imparciais ao enfrentar a constante judicialização da política e os inúmeros processos criminais de autoridades. O sistema não funciona se os juízes tiverem partido. Infelizmente, a proatividade mal direcionada de alguns tem jogado uma sombra sobre todos.

IVAR HARTMANN, 32, é professor e pesquisador do Centro de Justiça e Sociedade da FGV Direito Rio.


Do GGN

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