Sabemos que
uma lei (um texto legal-constitucional) não é uma coisa em si. Não se pode
dizer que o sentido da lei se esgota em si mesmo. Isso é tão velho que Jonathan
Swift já fez blague com isso em 1726, nas Viagens de Gulliver, quando
conta que o “gigante” foi condenado à morte por ter salvado a rainha do
incêndio. Como assim? Simples: para salvar sua majestade, ele urinou sobre o
castelo. Havia uma lei, cuja pena era a morte, para quem urinasse em público.
Bingo.
Mas, se não
se pode interpretar assim, de forma burra e tola, também não se pode ignorar
totalmente um texto legal ou interpretá-lo ao seu contrário. Se uma lei diz que
é proibido carregar cães na plataforma do trem, isso não quer dizer que, no
fiel cumprimento, seja possível levar um urso. E assim por diante.
Portanto, em
termos de paradigmas filosóficos, nem a lei tem um sentido
objetivado-emsimesmado (uma verdade de cunho adequacionista), nem a lei tem o
sentido que possa ser produto de livre atribuição de sentido, tipo “livre
convencimento” ou “dou às palavras o sentido que quero”, como é o caso do
personagem niilista Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho.
Preocupado
com isso, meu Grupo de Pesquisa Dasein, da Unisinos (em comandita com meu grupo
de estudos da Estácio de Sá), organizou simpósio para discutir os limites da
atribuição de sentido. Título do evento: II Colóquio de Critica
Hermenêutica do Direito — Às voltas com o positivismo jurídico contemporâneo (todas
as conferências estão neste link,
inclusive as discussões que se seguiram; congresso diferente e diferenciado:
depois de cada dupla de palestrantes, uma hora inteirinha para debate;
diferente dos congressos em que o sujeito fala e sai correndo para o aeroporto,
sem que os participantes possam fazer perguntas ou contestar o que foi
dito — bingo para a organização, modéstia às favas).
Hermeneutas,
dworquinianos, positivistas exclusivos, inclusivos e normativos, sistêmicos,
jusnaturalistas: uma coisa em comum — oferecer soluções para limitar
o protagonismo na interpretação-aplicação do Direito. Enfim, como evitar
decisionismos, ativismos e realismos retrôs que dominam as práticas jurídicas
no país, pelas quais não temos qualquer grau de previsibilidade (o mais
engraçado — e essa crítica foi lugar comum no simpósio — é
que o Brasil é o único lugar do mundo em que os realistas se pretendem
normativos, transformando a teoria jurídica em uma jabuticaba retrô).
Todos
acordamos em um ponto: na democracia, o cumprimento das leis e da Constituição
é, além de uma obviedade, uma obrigação, mormente quando se tem uma
Constituição normativa. Não é possível que uma pessoa ou um grupo de pessoas
possa, para além dos limites impostos pela Constituição, legislar por
intermédio de decisões judiciais e/ou construção prévia de “precedentes de
Cortes de Vértice” (deve ser algo como “diverte-se e os demais sofrem”).
“Enquanto
houver bambu, vai flecha” (?): o papel do MP é esse?
A propósito
de protagonismos, ativismos e realismos tratados no simpósio, a Folha de
S.Paulo do dia 1.7.2017 produziu um “bom” exemplo de como não deve ser a
discussão sobre o direito no Brasil. Trata-se do “debate” produzido pelo
advogado de Temer e um Promotor de Justiça de São Paulo. A pergunta era: Denúncia
contra o presidente Temer é sólida?. O advogado do presidente está
absolutamente no seu papel. Advogado faz discurso estratégico. É sua obrigação.
Já o
promotor respondeu à pergunta como parte, sim, como se fora a
parte ex-adversa e não como um agente do Estado que deve ter
imparcialidade e atuar no plano da impessoalidade. Aliás, o membro do MP nem
poderia opinar sobre a matéria. Não conhece os autos. E não é o promotor da
causa. Como ser tão peremptório? E que história é essa de que um conjunto de
indícios apontando para a mesma direção correspondem a prova de um fato? O
promotor, juntamente com os que defendem o baiesianismo e explanacionismo
(sic) estariam reescrevendo a teoria da prova? Como assim? Ah, mas o
promotor deu opinião como professor e mestre em Direito. Ah, bom. Só que isso
torna a questão mais complexa ainda, na medida em que, no caso, os dois corpos
do membro do MP ali estão geminados, incindíveis.
Quero dizer
com isso é que, na linha da agora já famosa frase de Janot “enquanto houver
bambu, vai flecha”, a discussão proposta pela Folha nada acrescentou.
Uma coisa é o advogado colocar suas teses; outra é o agente do MP simplesmente,
com parcialidade (o que um membro do MP não deve ser: parcial), opinar em
um complexo caso em menos de 3 mil caracteres. Para o promotor, a denúncia é
perfeita. Claro: examinada sob o ponto de vista estratégico, a denúncia é
péssima na opinião do advogado e perfeitíssima na opinião do promotor. Mas,
exceção feita ao advogado — o qual, insisto, está no seu papel — é esse
tipo de coisa que enfraquece o Ministério Público. Fragiliza. Desgasta.
Transformou-se em parte. Em acusador sistemático. Em torcedor.
Sigo. A
infeliz frase “enquanto houver bambu, vai flecha” bem denota o
ponto em que chegamos. Quando entrei no MP há 31 anos atrás, no meu discurso de
posse recitei um mantra que levei comigo durante mais de 28 anos: a de que
o MP era uma coisa diferente, que devia atuar como magistrado, que não tinha
lado, o seu lado era a lei e a Constituição, doa a quem doer. Pena que isso
venha sendo esquecido. Da judicialização da política chegamos a
politização da Justiça. Hoje, imitando agir estratégico, até se distorcem teorias
para justificar que “prova é igual a fé ou crença” ou “mesmo não tendo prova, a
probabilidade estatística é suficiente para obter a condenação” ou “um conjunto
de indícios consubstanciam uma prova do fato imputado”. Vem a calhar o
editorial do Estadão de 5.7.2017, quando alerta:
“Seria um
equívoco não pequeno se o desejo de combater a corrupção e a
impunidade levasse a um descarte paulatino da lógica e das garantias do
processo. A delação premiada deve ser instrumento de auxílio à Justiça, e
não uma obsessão que faz inverter o ônus da prova, excluir a presunção de
inocência e transigir com as condições para a prisão”.
No fundo, a
coisa se coloca do seguinte modo, já que estamos falando de bambus e flechas: o
“fator Target”[1] é sempre perigoso. De novo o
editorial do Estadão: “Atirar antes e perguntar depois não é uma boa forma
de conduzir processo penal”. Atirar a fecha e depois pintar o alvo, pode até em
um primeiro momento significar vitória. Afinal, o atirador nunca erra. O
problema é quando o alvo não mais pode ser pintado à vontade. Então a disputa
voltará a ser equilibrada.
Paro por
aqui. Meu receio, como ex-procurador de Justiça — sei do que estou
falando; já estive lá e participei anos e anos dos órgãos colegiados e na linha
de frente — é que venhamos a apanhar bambus muito apressadamente. Afinal, do
bambu saem as flechas; e do couro saem as correias. A politização da justiça é
o primeiro passo para a decadência.
O que quero
dizer — e aqui praticamente escrevo uma carta ao MP — é muito simples e é
absolutamente a favor da preservação da instituição: há (ou deveria) haver
uma diferença entre o agir de um membro do MP e o de um advogado. Se não
há diferença — isto é, se, à semelhança do advogado, MP faz agir
estratégico (ou seja, simplesmente disputa e quer ganhar) — , qual seria a
razão de o MP ter garantias?
Peço que,
antes de me apontarem as flechas (enquanto ainda existir bambu), reflitam sobre
o que estou dizendo. Despacito.
1 O Target effect é uma criação minha e que consta no
livro Hermenêutica e Jurisdição – Diálogos com Lenio Streck (livraria do
Advogado, 2017). Quer dizer: pelo “efeito alvo”, o atirador nunca erra. E sabem
por que? Porque primeiro atira a flecha e depois pinta o alvo em torno da
flecha. 100% de acerto.
DCM
0 comments:
Postar um comentário