sábado, 15 de julho de 2017

Roberto Bitencourt da Silva: A trajetória do ex-presidente Lula e os dilemas e desafios do Brasil

Foto Stringer/Reuters

A condenação judicial do ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, representa um novo e grave capítulo do movimento golpista empresarial-midiático-judicial, que destituiu ilegitimamente uma presidente eleita e rasgou a Constituição de 1988.

No momento, as consequências imediatas ao ex-presidente não ultrapassam os limites do aborrecimento e da vexação persecutória. Para o sistema político e demais círculos da institucionalidade brasileira, delineados na transição da ditadura à democracia representativa e normatizados na Carta Constitucional de 1988, os efeitos potenciais beiram a pá de cal.

As atitudes em resposta à arbitrária decisão do Judiciário foram heterogêneas, envolvendo amplíssimo leque de opiniões e predisposições políticas no País. Marcadas tanto por comemorações deliberadas, cínicas e irrefletidas, quanto por gestos de solidariedade a Lula. Em relação aos últimos, manifestações atravessadas por exaltações acríticas, como também por ponderações que não deixavam de lastimar as suas opções políticas.

Nesse sentido, considero que tende a imperar nas avaliações sobre o ex-presidente um misto de satanização, mistificação e ilusão, infrutíferos à compreensão da relevância histórica e política de Lula. Igualmente, tendentes a obscurecer as suas acentuadas limitações.

Em primeiro lugar, vale chamar a atenção para o fato de que a reflexão política e histórica apoiada exclusivamente no comportamento e nas escolhas de um indivíduo tem nula capacidade explicativa. O contexto que enreda o sujeito, sua formação política e suas redes simbólicas e materiais de sociabilidade, tem grande peso na ação individual.

Lula tem quase 40 anos de atividade política exercida no centro da cena nacional. O ex-presidente não deixa de constituir um amálgama de diferentes tempos, lutas sociais, expectativas e cosmovisões políticas brasileiras, também influenciadas pelos distintos panoramas internacionais.

Como líder carismático que é, a trajetória de Lula tem sido caracterizada como a de um depositário de esperanças, anseios e vicissitudes dos seus seguidores. A sua força ou fraqueza, lembraria a teoria sociológica de Max Weber, é, em boa medida, expressão dos atributos e predicados daqueles que investem em Lula a capa do carisma.

Tomando como premissa a feliz expressão utilizada para intitular a cinebiografia do ex-presidente (dirigida por Fábio Barreto), “Lula, o filho do Brasil”, destaco abaixo alguns traços da longa trajetória política de Lula, com vistas a assinalar algumas congruências, características, dilemas e limitações que entrecruza(ra)m o personagem e o País.

1)      Lula entrou no cenário nacional a partir da liderança sindical desempenhada na São Paulo das multinacionais. Um estado que alcançou hegemonia cultural, política e econômica no País, após o golpe de 1964.

2)      Era integrante de uma aristocracia operária. O capital estrangeiro concebido como variável importante para a geração de oportunidades de ascensão social dos trabalhadores. Nenhuma problematização acerca do perfil de atuação dos chamados investimentos externos na economia brasileira. A ditadura promoveu o ambiente ideológico entreguista favorável a tal percepção, precisamente por expurgar os nacionalistas do pré-1964, na seara partidária e nos movimentos sociais.

3)      Esse é um elemento decisivo do DNA político de Lula. Atravessa toda a sua trajetória. O filme de Leon Hirszman (“ABC da greve”, 1979) é muito ilustrativo. Não apenas demonstra a capacidade retórica e política de um tremendo galvanizador de vontades. Expressa também uma veia corporativista, de quem estava integrado ao sistema, na sua margem esquerda, sindical: o resultado das negociações com integrantes da Fiesp e do governo civil-militar foi a elevação dos salários dos metalúrgicos, mas assentada na determinação de reduções tributárias às empresas do setor.

4)      Nesse período de abertura, ao mesmo tempo em que Lula encontrava-se submetido à vigilância dos aparatos de poder, possuía espaço na grande imprensa para posicionar-se de maneira messiânica como líder da classe trabalhadora.

5)      Para o regozijo da Fiesp, das multinacionais, da burguesia doméstica e de muitos intelectuais uspianos, motivado por razões diferentes, a grande imprensa igualmente reservava espaço para Lula tecer considerações como a que segue: “A CLT é fruto do fascismo de Getúlio Vargas”. Pouco importava se a longa ditadura, então em erosão, havia sido instalada exatamente para silenciar os herdeiros políticos de Vargas.

6)      Uma teoria sociológica bastante influente, produzida na USP e operacionalizada por meio do uso de uma vaga e controversa categoria interpretativa – o populismo –, contribuiu para a criação da ambiência de ideias que permitiu construir notória legitimidade ao partido nascente de Lula. Denotando claro sabor europeizante, identificava na classe operária industrial o agente portador das mudanças sociais no País. Com efeito, Lula era símbolo maior. Mas, não importava se essa indústria era transplantada de fora. A questão nacional escanteada.

7)      No curso da década de 1980, a CUT e o PT participaram ativamente da organização e da mobilização de amplas frações da classe trabalhadora e da pequena burguesia, na cidade e no campo. Com isso, ofereceram importante contribuição para a reverberação e a introdução de direitos sociais na Constituição de 1988. Seguramente, Lula despontava como voz saliente nesse processo.

8)       Acompanhados de outros setores das esquerdas, especialmente do brizolismo, o PT e Lula deram grande colaboração na feitura de uma Constituição que ao menos buscasse compatibilizar, de maneira contraditória, os interesses e as aspirações dos de cima e de baixo da sociedade brasileira.

9)      Uma democracia enclausurada, nada afeita à participação popular nos processos decisórios, foi o fruto da correlação de forças políticas nesse período. Assegurando alguns direitos coletivos e sociais na carta magna e mantendo a CLT, contudo um pacto desigual e contraditório foi o resultado daquela correlação de forças.

10)   Direta ou indiretamente, em maior ou menor escala, todos os principais partidos políticos eram condicionados àquele ordenamento sistêmico. O PT não escapou à regra, como ficou bastante evidenciado posteriormente, nos anos de lulopragmatismo à frente do governo federal.

11)   O eleitoralismo foi prevalecendo, com a acomodação natural ao sistema político, à pauta midiática e aos contornos econômicos delimitados pela inserção subordinada, periférica e dependente do País na divisão internacional do trabalho.

12)   Especialmente no período de boom das exportações de bens primários – mais ou menos entre 2005 e 2012 –, o ex-presidente Lula foi alçado à posição de líder maior do sistema brasileiro capitalista subalterno e dependente. Expressão máxima, mais avançada, da conciliação de classes sustentada pela Constituição e da operacionalização de frutos econômicos nos marcos da dependência externa.

13)    Com isso, o grande capital nacional e internacional auferiu lucros extraordinários, sendo compatibilizados com a geração de empregos dotados de baixos salários e parca densidade educacional. O capitalismo periférico preservado, mas legitimado com oportunidades crescentes de trabalho assalariado e consumo popular.

14)   A fome, “retrato mais agudo do subdesenvolvimento”, como diria o bom e velho geógrafo Josué de Castro, combatida, entre outros, por intermédio de políticas oficiais de transferência de (pequenos) rendimentos. No interior sistêmico dos principais partidos, sobretudo Lula e o PT poderiam ter essa (tímida, mas importante) sensibilidade social.

15)   Grande respaldo popular de Lula no exterior, em particular na América Latina. Quem acompanhou o noticiário internacional e os posicionamentos de lideranças de nosso subcontinente pôde ter visto. Quem viajou até poucos anos atrás para alguns desses países, presenciou a imagem extremamente positiva de Lula entre nossos coirmãos.

16)   Um fenômeno que não era/é gratuito, em função da abertura da política externa brasileira ao Sul global, adotada por Lula e, um pouco menos, por Dilma, conferindo respaldo e credibilidade às ações de governos progressistas da região.

17)   Mesmo submetido aos parâmetros do capitalismo periférico e subordinado, o lulopragmatismo tentava de maneira “silenciosa” alternativas creditícias e comerciais ao centro capitalista: a participação na formação dos BRICS foi medida ousada, que pode(ria) incidir na correlação de forças internacionais. Especialmente deslocar o peso do FMI e do Banco Mundial enquanto fonte de empréstimos e condicionamentos.

18)   Contudo, não foram levadas a cabo medidas econômicas e políticas internas que dessem sustentação a uma participação mais sólida do Brasil no bloco.

19)   Por conseguinte, a adoção da tática do apassivamento popular, apostando nos mecanismos tão saudados da “governabilidade” possível, isto é, restringindo a participação política das classes trabalhadoras e de estratos da pequena burguesia ao ritual eleitoral, sob o influxo de negociações inter e intraelites.

20)   Nenhum caráter abertamente conflitivo frente ao grande capital nacional e internacional. Em meio à crise econômica derivada do refluxo das exportações, a presidente Dilma (PT) acenava para a agenda dos adversários conservadores, com apoio de Lula. Uma saída melancólica do governo, sem tensionar com a estrutura de poder, sem fazer qualquer apelo às camadas trabalhadoras e medianas. Sem qualquer medida de governo que oferecesse respostas à crise, pela via do atendimento das necessidades populares. Até hoje, aposta em algum milagre por cima, negociado.

Eis alguns traços muito esquemáticos da trajetória entrecruzada de Lula, seu partido e do Brasil das últimas décadas. Lula é um ator político complexo, ambíguo, controverso. Muito distante das costumeiras simplificações reducionistas, das avaliações unilaterais. Talvez consista na expressão mais saliente da solução de compromisso constitucional, hoje violada.

À esquerda do PT, particularmente entre os partidos que nasceram do seu desgarramento, as habituais denúncias de “traição” não convencem. Revelam muito mais as sofridas ilusões depositadas em Lula e no PT, por setores ditos socialistas que se desvincularam do PT. Como também o caráter colonizado, sobretudo eurocêntrico, das esquerdas brasileiras atuais.

Nos quadros de uma nação periférica, subdesenvolvida, convenhamos, um líder nascido da contraditória articulação entre questão social e apoio irrefletido ao capital estrangeiro, desde o início deveria indicar significativas limitações para as esperanças mudancistas. Talvez fosse a consciência política possível durante anos, entre as esquerdas, os movimentos sociais e sindicais. Deve, no entanto, urgentemente, ser superada. É ingenuidade.

Nos termos da tensão mais recente, ou a CLT ou a Fiesp (testa de ferro de multinacionais). Não há conciliação possível. Perdeu a CLT, “fascista”, como antigamente Lula e o petismo afirmavam. O grande capital, que visa o incremento da superexploração do trabalho, agradece.

A ruptura institucional em vigor, com o golpismo galopante, representa aguda guerra de classes imprimida pelas burguesias doméstica e forânea. A visão e a esperança mítica do petismo, em nossos dias, em torno da “salvação” nacional por meio de uma hipotética eleição presidencial de Lula, são componentes, no mínimo, questionáveis e ilusórios.

A habilidade negociadora do ex-presidente de nada serve no atual cenário. Ao menos, não para responder aos desafios da intensificação da dependência, de um neocolonialismo atroz, impostos pela agenda reacionária do bloco golpista.

O Brasil corre o sério risco de desintegração territorial, de alienação absoluta de qualquer laivo de soberania. E as burguesias associadas, de fora e de dentro da Nação, já demonstraram que esse é o seu projeto. A crise capitalista internacional, há alguns anos, em especial exemplificada pela atuação da “polícia” no mundo – os EUA –, responde, como alternativa, à violação sistemática do princípio da autodeterminação dos povos. Soberanias nacionais no Terceiro Mundo agredidas – com recursos hard ou soft –, almejando a expansão dos processos de mercantilização/comoditização. Absolutamente de tudo.

Por outro lado, as frações menores do capital nacional, setores da média e pequena burguesia, que tanto demonizam o ex-presidente, irrefletidamente jogam para escanteio o único líder que, mantendo os contornos do capitalismo periférico, atenderia aos seus interesses. Romper com as amarras do subdesenvolvimento, então, isso seria pedir muito a esses estratos de classe. Ciosos demais em garantir privilégios mesquinhos e portadores de um ultrajante colonialismo mental americanófilo. Servos voluntários do império.

Isso posto, na atualidade, a questão não é saber se Lula é “demônio” ou “salvador”. Não é uma coisa, nem outra. É saber se ele será completamente descartado pelo sistema em um avassalador processo neocolonizador, em que não há espaço para Lula, ou se será reincorporado, via solução de compromisso que mantenha a agenda neoconservadora prevalecente, com pequena atenuação, para resgatar um fiapo de credibilidade ao moribundo sistema político, institucional e econômico em processo de reconfiguração. Para pior.

Nesse caso, tenderia a exercer o papel de uma espécie de Perón dos anos 1970. Sem força, nem energia. Subjugado e rendido integralmente ao sistema. Por isso, entendo que o ex-presidente Lula e o seu partido já cumpriram os seus papeis históricos.

Para o Povo Brasileiro a única saída é organizar-se, formular e repercutir uma agenda antissistêmica, que vá além das linhas do subdesenvolvimento e do capitalismo dependente e periférico. Trata-se de uma luta de média e longa duração.

No momento, como ficou bastante evidente na fácil supressão das conquistas trabalhistas históricas, os agentes da mudança não apareceram. Mesmo a capacidade de resistência popular encontra-se frágil. Anos a fio de amplo apassivamento e desmobilização – sobretudo das centrais sindicais – não são superados em um estalar de dedos.

Ademais, os dilatados e a cada dia crescentes subemprego e desemprego, além de um sistema individualista e neoliberal de crenças, diuturnamente veiculado nos meios de comunicação, têm corroído duas matérias-primas centrais para as esquerdas, os movimentos sociais e a defesa dos interesses nacionais e populares: a solidariedade e a cooperação. Sem elas, não há mudança plausível. A emergência de alternativas e dos sujeitos da mudança irá requerer paciência, organização, mobilização, tempo e, em elevada medida, descolonização mental.

Roberto Bitencourt da Silva – cientista político e historiador.  
GGN

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