O
ponto central da acusação de Sérgio Moro contra Lula é relativamente simples
(mencionei acusação de Sérgio Moro devido ao fato de ele ter se comportado como
acusador, não como juiz).
Tese 1
- Lula ganhou um apartamento (ou a reforma dele) da OAS.
Tese 2
– Houve uma contrapartida em vantagens para a OAS.
Tese 3
– Como o apartamento não está em nome de Lula, mas da OAS, então se tem um caso
de lavagem de apartamento ops, de dinheiro.
Tese 1
- Sobre o presente da OAS a Lula
O
mínimo a ser apresentado por Sérgio Moro deveria ser a prova cabal de que o
apartamento é, de fato, de Lula. Moro apresentou uma montanha de documentos
mostrando aparente interesse do casal Lula pelo apartamento. E ficou nisso.
Há
uma versão de Lula, consistente, e que teria que ser derrubada para a
condenação.
1. Dona Marisa
adquiriu uma cota do edifício, através da Bancoop, a cooperativa dos bancários,
muito antes da OAS assumir o empreendimento.
2. A Bancoop
entrou em crise e o empreendimento foi transferido para a OAS. Dona Marise
manteve as cotas.
3. A OAS fez
reformas no apartamento e ofereceu a dona Marise.
4. Lula viu o
apartamento, não gostou e desistiu. Dona Marisa entrou com pedido de devolução
do seu dinheiro.
Há
várias hipóteses verossímeis para o item
3
Hipótese 1
– interessava à OAS ter um ex-presidente como condômino, porque imediatamente
valorizaria as demais unidades à venda.
Hipótese 2
– quis fazer um agrado a Lula, até então o político mais popular do planeta.
Em
relação ao item 4, podem-se aventar
várias hipóteses:
Hipótese 1
– Lula viu o apartamento, não gostou e desistiu. A mídia jamais divulgou
imagens internas do apartamento, porque sua simplicidade comprometeria a
gravidade da acusação.
Hipótese 2
– Estava tudo acertado, mas o vazamento do caso para a mídia fez Lula recuar.
É
possível que seja verdade? É. É possível que seja falso? Também é. É por isso
que o direito civilizado consagra a máxima: in dubio pro reo. Ou seja, a dúvida
opera em favor do réu. Se há várias versões, e a acusação não consegue
comprovar a sua versão, não há como condenar o réu.
De
qualquer modo, ao não se efetivar a venda (ou transferência) não houve crime.
Não existe o crime de intenção.
É
significativa a maneira, nessa quinta, como se pronunciaram os juristas, mesmo
caçados com lupa pela mídia. No máximo ousaram discutir aspectos secundários,
como a dosimetria da pena, ou as justificativas de Moro para a não prisão de
Lula..
Em
relação ao mérito, o pouco que se viu precisou recorrer a malabarismos a altura
de Houdini, o mágico:
Leia esse primor, publicado na
Folha
Em
geral, quem ocupa altos escalões da administração pública ou de empresas toma
cuidados redobrados para não deixar digitais.
É
muito difícil que um empresário corrupto fale explicitamente ou troque
mensagens sobre vantagens ilegais com agentes públicos graduados.
Como
disse um ex-dirigente de uma grande companhia pagadora de propinas, isso é
considerado até "deselegante" por essas pessoas.
Para
quê a OAS daria um apartamento para Lula? Evidentemente, para ser usufruído. Se
fosse apenas pelo valor, bastaria depositar o dinheiro em uma offshore. O
dinheiro transitaria por várias contas e Lula poderia comprar o apartamento que
quisesse, onde quisesse. Quando o chefão saca do seu cartão de crédito, ninguém
comete a “delegância” de perguntar sobre a origem da grana.
Mas,
segundo a acusação, a OAS pagou em espécie: o triplex. Para usufruir do
apartamento, Lula teria que ir até o apartamento, usar o apartamento quando
fosse à praia, se expor aos vizinhos e à imprensa.
A
não ser que se imaginasse que o apartamento pudesse ser guardado em um
escaninho do escritório da Mossak Fonseca, que a Polícia Federal invadiu atrás
de provas contra Lula, encontrou contas da família Marinho e amoitou porque
porém, contudo, todavia, há limites para o exercício da coragem.
Todas
as provas documentais apresentadas por Moro comprovam que o casal Lula, em
algum momento, teve a posse de cotas do edifício, antes da OAS entrar,
acompanhou reformas que ocorreram, os executivos da OAS preparavam o
apartamento para o casal e... acabam por aí. Não há uma mísera prova de que
houve a transferência final do apartamento para Lula.
Tese 2 – a
prova do suborno
Sem
conseguir provar a primeira tese, o indômito Moro parte para a segunda: a
contrapartida. Ou seja, apontar o contrato conquistado pela OAS em troca do tal
triplex.
Em
uma das gestões da prefeitura de São Paulo, correu o boato de que o prefeito
teria sido alvo de uma proposta de suborno de R$ 15 milhões, devidamente
recusada. Tudo para que não levasse adiante a proposta de só autorizar a
fiscalização de poluição para carros com mais de três anos de vida.
Por
aí se percebe a desproporção entre o “preço” da corrupção de um prefeito (em
cima de um contrato menor) e as possibilidades ao alcance de um presidente
corrupto. Só a proposta da JBS para o representante de Michel Temer acenava com
a possibilidade de R$ 500 mil semanais por 20 anos. 54 x 500.000 x 20 = 540.000.000
Mesmo
que Lula fosse “baratinho”, ainda assim o juiz teria que identificar qual
contrato foi obtido pela OAS em troca do tal triplex.
Confira
essa segunda pérola, no artigo do especialista à Folha, para demonstrar como
Moro é um sujeito ladino, que apanhou Lula em uma pergunta-armadilha:
Moro
perguntou se a palavra final sobre a indicação de diretores da Petrobras para
aprovação pelo conselho da estatal era da Presidência da República.
Lula
respondeu bem ao seu estilo: "Era, porque senão não precisava ter
presidente".
Lembra
uma cena de um velho programa de humor da finada TV Tupi, com Walter D’Ávila
fazendo o seu Explicadinho, que só fazia perguntas óbvias porque queria
entender “nos mínimos detalhes”.
Para
superar a falta de provas, Moro desenvolve, então, a teoria do fato à pururuca
– que reza que, em qualquer hipótese, um chefe de partido contrário ao juiz
sempre será responsável por todos os atos praticadas por seus subordinados.
Moro
ressuscita um dos clássicos do direito brasileiro, que ele, como assessor
colocou na pena da Ministra Rosa Weber, na AP 470: quanto mais alto na
hierarquia do crime, mas difícil conseguir a prova dos crimes da pessoa; logo,
a ausência de provas sobre fulano é a comprovação de que ele está no ponto mais
alto da hierarquia do crime.
Tese 3 – o
destino do dinheiro
Moro
não conseguiu comprovar que o apartamento foi transferido para Lula.
Em
países anglo-saxões, desses que cultivam essa coisa sem-graça, limitativa da
criatividade, chamada de lógica, se concluiria que se a prova do crime era a
transferência do bem para o réu e se o juiz não conseguiu comprovar a
transferência do bem para o réu, logo ele não conseguiu comprovar a culpa do
réu.
O
realismo fantástico curitibano produziu um segundo clássico do direito: se não
consigo comprovar a propriedade do apartamento, então houve lavagem de
apartamento ops, de dinheiro.
É
o primeiro caso de lavagem de apartamento da história.
Sabe-se
da existência de dinheiro lavado, ou seja, colocado em nome de um offshore para
ocultar o verdadeiro proprietário. Mas lá no paraíso fiscal, há um registro em
cartório dizendo que a offshore é do malandro. Depois, o malandro pode
internalizar dinheiro em nome da offshore e adquirir bens que, aqui, serão da
offshore mas, lá, no final da linha, serão do malandro que é dono da offshore.
A família Serra é especialista nisso.
O
fantástico juiz Moro conseguiu criar a figura jurídica da lavagem de
apartamento sem transferência do bem e sem a existência de uma offshore.
Peça 2 – o papel do TRF4
Há
três possibilidades, no julgamento de Lula em segunda instância.
Possibilidade 1 – a
confirmação da sentença
O
eventual endosso do TRF4 a Moro seria, na prática, convalidar o primeiro caso
de condenação sem prova da história do Judiciário. Significaria uma mancha
indelével na biografia de cada desembargador.
Possibilidade 2
– redução da sentença mas inabilitação política de Lula
Reduz-se
a sentença significativamente, mas mantém-se a condenação. Bastará para Lula
não poder se candidatar mais.
Possibilidade 3
– revogação da sentença
Devolverá
ao Judiciário o papel de guardião da legalidade. Mas tem mais em jogo, talvez a
própria dignidade do Judiciário.
Ontem
mesmo a Globo deu início ao seu jogo predileto: praticar uma chantagem
inicialmente discreta, expondo cada um dos magistrados que analisarão os
recursos da defesa de Moro
esperando,
como efeito, as pressões de colegas e familiares sobre eles.
Os
recalcitrantes, mais à frente, receberão tratamentos mais drásticos, como as
que expuseram o Ministro Ricardo Lewandowski a escrachos em aeroportos.
Mas,
hoje em dia, o clima é outro. Não será fácil para o grupo que colocou Temer no
poder deflagrar outra ofensiva de assassinatos de reputação.
Peça 3 – o fim da Lava Jato
O
julgamento de Lula em segunda instância ocorrerá em pleno período eleitoral,
insuflando os ânimos. Mas sem a Lava Jato, como foi conhecida até agora. O
fator Moro turbinado a Globo se encerra ai.
Do
lado da nova Procuradora Geral, Raquel Dodge, o movimento lógico será ampliar
os quadros da operação. Significará conferir mais profissionalismo às
investigações e, ao mesmo tempo, diluir a influência deletéria dos atuais
titulares.
Do
lado da Polícia Federal, já houve a dissolução do grupo de delegados, com os
trabalhos sendo assumidos pela PF como um todo.
Desmontam-se,
assim, as condições que permitiram a politização, o protagonismo excessivo e a
contaminação da imagem da PF e do MPF.
Peça 4 – o jogo político
Entra-se,
a partir de agora, em um embate decisivo para o futuro da democracia em nosso
país. Ousaria dizer que há semelhanças emocionantes com o início das diretas.
Em ambos os casos, está em jogo o futuro da democracia brasileira.
O
primeiro round será o julgamento de Lula pelo TRF4. Nele, a Globo jogará todas
suas forças. Como consequência, se exporá mais ainda, como a Força, um poder
incompatível com um regime democrático.
Os
desembargadores do TRF4 terão, pela frente, o maior desafio da sua vida. Não se
trata meramente de absolver ou condenar Lula, mas demonstrar até que ponto
pautam sua conduta pelos princípios jurídicos, pelo primado da lei. Até que
ponto colocarão o respeito à sua profissão acima do temor natural que a Globo
infunde.
Por
outro lado, paradoxalmente, quanto maiores os abusos cometidos nesse
julgamento, maior já tem sido a reação. Em outros tempos, havia a facilidade do
discurso único escondendo argumentos contrários, impedindo o contraponto. Hoje
em dia, não. Há uma enorme polarização nas redes sociais, mas também um período
de ampla informação.
A
Lava Jato caiu na sua própria armadilha.
Na
fase inicial, decidiu escancarar cada passo, em um momento em que tinha o
controle absoluto sobre o processo, porque na fase de coleta de provas. Cada
passo do inquérito era reaplicado pelos jornais, como se fosse a verdade
definitiva.
À
medida em que o tempo foi passando, os inquéritos se avolumando, começaram a aparecer
as contestações da defesa. E um público mais antenado passou a recolher
argumentos de lado a lado, comparando argumentos, entendendo as peculiaridades
do processo penal e, finalmente, começando a fazer juízo de valor.
Nos
últimos meses, a parcialidade da tropa de Moro foi esmiuçada, diariamente
exposta pelo trabalho pertinaz dos advogados de Lula. Eram chuviscos diários de
episódios regando os cérebros do público, até que começasse a brotar, mesmo nos
mais leigos, o discernimento sobre os pontos centrais da denúncia, a serem
analisados.
A
opinião pública mais informada aprendeu a diferenciar a delação pura e simples
daquela acompanhada de provas; percebeu que, para gozar do dinheiro roubado,
bastava os delatores tratarem de implicar Lula; deu-se conta de que nenhuma
delação veio acompanhada de provas.
Com
acesso à Lava Jato, jornalões traziam as matérias. E os portais e blogs
independentes faziam o filtro, colocando lentes de aumento nos detalhes
significativos, que a cobertura da velha mídia deixava escapar.
É
impossível fazer jornalismo sem um mínimo de legitimidade. Será impossível, até
para a disciplinadíssima tropa de jornalistas do Globo, que aderem
instantaneamente, com a fé cega dos crentes, a qualquer mudança de ventos do
grupo, abraçar a causa.
O
último ato de Moro é o primeiro de uma luta cívica que poderá ser tão memorável
quanto as diretas, ambas em defesa da democracia.
GGN
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