Existe certo padrão na atuação dos operadores do Direito.
Conhecê-lo tem sido crucial para a sobrevivência na carreira do magistrado que
vela por sua imparcialidade.
O Ministério Público Federal não convive bem com a oposição
de ideias, sendo este um padrão de todos conhecido. Contrariar suas pretensões
persecutórias pode levar o opositor ao opróbrio. Daí a existência de tantos
juízes, na verdade tartufos togados, que simplesmente preferem chancelar até os
piores desatinos formulados pelo órgão acusador.
Têm sido cada vez mais frequentes, lamentavelmente,
persecuções penais midiáticas, marcadas pela indigência probatória, mas
cercadas do aplauso passadiço das ruas.
Falta coragem para enfrentar o desejo de vingança que tomou
de assalto o devido processo legal. Para cada caso, uma receita processual
diferente.<
A vulgarização do instituto da colaboração premiada demitiu o
investigador do dever de investigar. E, sabe-se que a condição de colaborador é
conquistada somente com a delação de determinados alvos.
O acordo premial celebrado entre a Procuradoria-Geral da
República e os irmãos Batista situa-se nesse standard, mas contém ingredientes
que fogem ao padrão-MPF.
O episódio envolvendo o presidente da República, dissemos à
época, retratava o chamado flagrante preparado e revelava uma tentativa
rocambolesca de plantar provas.
Afora o impacto provocado pelas delações no meio social,
político e econômico, nada havia em termos de prova. Podia-se divisar no
acordo, todavia, uma imensidão de irregularidades, dentre elas até mesmo
possível crime de responsabilidade atribuível ao chefe do MPF.
Os termos extremamente generosos do acordo de colaboração,
contrariando o padrão-MPF, suscitaram fundadas desconfianças e deveriam ter
merecido a total repulsa de todos.
Impende lembrar, a despeito das contundentes críticas, o
Procurador-Geral da República foi de encontro até mesmo ao grosso da imprensa
(o que também foge ao padrão-MPF), procurando vender seu produto como algo
altamente vantajoso para o Brasil.
As conversas recuperadas pela Polícia Federal em equipamento
de gravação utilizado por Joesley Batista, agora demonstram o total acerto das
críticas àquele acordo e a necessidade imperiosa de investigar, com
profundidade, os motivos ou o que haveria por trás desse trato mal feito.
É preciso rever imediatamente sua homologação pelo
Judiciário, sendo o acordado passível de anulação ante a aparente combinação
entre investigador e delator, o que retiraria o pressuposto da voluntariedade
exigida pelo instituto, ou considerar sua rescisão pelas mentiras e omissões de
outras tantas infrações praticadas pelos “colaboradores” (artigo 4º da Lei
12850/2013).
Muito estranha a repentina saída da carreira de um procurador
da República que agora se sabe atuou nos dois lados da negociação. Altas
autoridades já haviam chamado a atenção para sua contratação por escritório que
cuidava dos interesses da JBS, pairando em torno disso a movimentação de alguns
milhões de reais.
Surgiram nessas mesmas conversas recuperadas, dentre outras,
que “o Janot não vai concorrer mais ao cargo. Ele faz parte do nosso
escritório”. Ele falou: “Janot vai sair e vai advogar com esse mesmo
escritório. Mesmo escritório que ele está hoje”.
O que veio à tona com a gravação desvelada não representa
apenas graves ataques às instituições democráticas do país (e à sociedade),
colhe-se dela fragmentos de um projeto de poder que há tempos é nutrido pelo
MPF.
A intimidade que demonstram os delatores com membros do MPF,
naquilo que foi até agora desnudado, não impressiona tanto quanto a deplorável
conivência de procuradores com o intento dos colaboradores em destruir os
Poderes da República.
Isso está claro em diversas passagens das conversas, sendo
exemplo: “(Joesley) Ricardinho, eles vão dissolver o Supremo… Vou entregar o
Executivo e você vai entregar o Zé… O Zé vai entregar tudo? ... Nós só vai
entregar o Judiciário e o Executivo.... A Odebrecht moeu o Legislativo, nós
vamos moer… Eu falei para o Marcelo [Miller, ex-procurador da República, que se
demitiu do MPF para trabalhar para a JBS]: você quer pegar o Supremo, pega o
Zé”.
A escandalosa descoberta não mereceu, de início, o devido
enfrentamento. O chefe do Parquet preferiu antecipar-se à revelação feita pela
perícia da Polícia Federal para promover insinuações desairosas contra
ministros do STF. Optou-se por conceder entrevistas coletivas para analisar as
reações do público em geral.
Não dissipadas as suspeitas que recaem sobre a atuação do
MPF, decidiu-se, como se diz no jargão futebolístico, atacar para se defender.
Ainda não se deu por descumprida a negociação com os delatores, ainda que
estejam a alardear ou chantagear que têm ainda gravações escondidas.
Serodiamente está sendo retomado o curso das investigações
dos diversos crimes perpetrados, em tese, pelos “colaboradores”. Ao lado dessa
curial medida, sem o padrão-MPF, empreendem-se buscas domiciliares (estas quase
uma semana depois da malsinada coletiva do PGR) e prisões temporárias de alguns
dos envolvidos na negociação premiada.
A injustificada omissão e demora, porém, bem como o conteúdo
das conversas desvendadas, não isentam o chefe do Parquet e seu staff de uma
criteriosa investigação, especialmente diante da comprovada utilização
deliberada de provas ilícitas para promover denúncias.
De toda essa lama que se espalha, três pontos ficaram
bastante claros: é preciso desconfiar das 10 medidas “moralizadoras”
apresentadas pelo MPF; deve-se rever o instituto da colaboração premiada,
buscando seu aprimoramento, especialmente, formas de repressão à sua utilização
publicitária; e, urge aprovar o projeto legislativo do crime de abuso de poder
paralisado no Congresso Nacional, abrindo-se a possibilidade de o próprio
ofendido promover a ação penal.
Ali Mazloum é juiz federal em São Paulo, mestre em
Ciências Jurídico-criminais, especialista em Direito Penal, pós-graduado em
gestão pelo Insper, professor de Direito Constitucional.
GGN
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