Com
apenas três linhas, a Ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça
(STJ) impediu que se analisasse o mérito de uma autuação fiscal de cerca de (em
valores atuais) quase R$ 1,5 bilhão.
A Ministra foi dura:
"Tendo
em vista a decisão singular de fl. 5.265, que não reconheceu o agravo do
recurso especial por deserção, NADA TENHO A DESPACHAR acerca dos documentos de
fãs. 5.275/5.421, haja vista. Exaurimo-nos da prestação jurisdicional neste
Tribunal Superior".
A
data era 6 de setembro, véspera do dia em que, com a independência, o Brasil
aspirava o status de Nação civilizada. O "NADA A DECLARAR", em
maiúsculas, fora da praxe, era um puxão de orelha na procuradora que teimava em
demonstrar uma operação de simulação fiscal.
O
beneficiário foi o banco HSBC. A medida que lhe garantiu a operação foi o CARF
(Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). Quando o CARF livrou o HSBC da
multa, ainda não se sabia dos esquemas de corrupção que o envolviam. Quando a
Ministra se recusou a sequer despachar a petição, o CARF já era alvo da
Operação Zelotes.
Um
breve apanhado dessa ação é demonstração cabal da falta de cuidados da Justiça
e do próprio Ministério Público Federal com questões dessa amplitude.
Capitulo 1 - a lógica do golpe
Tratava-se
do seguinte: o banco acertava um contrato futuro com outra empresa; se a
empresa desse prejuízo, automaticamente ele cobriria os prejuízos com
investimentos.
Poderia
ser uma operação de hedge normal de mercado, não fosse a circunstância de que
todas as empresas pertenciam ao mesmo grupo, sob controle do HSBC.
O jogo era simples:
1. A Empresa A fabricava prejuízos da
várias maneiras. Tendo prejuízo, obviamente, não pagaria impostos.
2. Pelo contrato, o HSBC cobriria os
prejuízos com investimentos tirados de sua receita operacional. O valor do
investimento sairia da base de cálculo do Imposto de Renda e da Contribuição
Social Sobre o Lucro. E, com isso, ficaria livre dos tributos que incidiriam
sobre o valor.
Trata-se
de uma clara manobra irregular, com o intuito único de reduzir a tributação.
Em
2002 o HSBC foi autuado em R$ 1 bilhão, R$ 700 milhões referentes ao não
pagamento de Imposto de Renda; R$ 300 milhões de Contribuição Social Sobre o
Lucro.
Os
valores se referem a um banco, por poucos períodos fiscais. Projete-se sobre o
sistema como um todo, por longos períodos.
Um
roteiro de como as decisões do CARF conseguiram transitar sem problemas pela
Justiça, poderá dar um bom retrato de como a corrupção caminhou pelos tribunais
sem ser incomodado, fundando-se, na melhor das hipóteses, na complacência
ignorante dos magistrados.
Capítulo 2 - o auditor que mereceria
uma estátua
Em
2002, o auditor fiscal José Carlos Monteiro identificou essa jogada e autuou o
HSBC.
O
auditor autuou e o HSBC apresentou recurso administrativo que o CARF acolheu.
O
bravo auditor José Carlos Monteiro resolveu então entrar com uma ação popular
contra a decisão do CARF. Perdeu na Justiça Federal de 1a Instância em São
Paulo, sob o argumento de que não caberia ao Judiciário entrar no mérito do Ato
Administrativo do CARF. E sublinhei em negrito porque esse foi um dos pontos a
embasar as decisões seguintes do Judiciário.
Monteiro
apelou para a 2a Instância, o Tribunal Regional Federal da 3a Região (TRF3), e
mais uma vez foi derrotado.
Entrou,
então, com dois recursos, o Recurso Extraordinário e o Recurso Especial.
Em
geral, os processos acabam depois de decidido no TRF3. Mas há duas exceções. A
primeira, se a decisão ferir lei federal. Monteiro entrou com um Recurso
Especial junto ao STJ alegando que a decisão feriria o Código Tributário
Nacional. E junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) um Recurso Extraordinário
sustentando que a decisão feriu a Constituição por não analisar os fundamentos
do seu recurso.
Nesse
ínterim, o bravo Monteiro morre e o caso é assumido pelo Ministério Público
Federal.
Capítulo 3 - o caso se arrasta nos
Tribunais
O
STJ simplesmente se negou a julgar alegando que não teve o "preparo"
- a guia de recolhimento de custa para remessa do processo, que no máximo é de
menos de R$ 1 mil. Ou seja, abriu mão de julgar uma burla de R$ 1,5 bilhão, por
falta de pagamento de R$ 348, a título de custas do processo.
Pior:
ação popular é isenta desse pagamento; e ações cuja titularidade é assumida
pelo MPF, mais ainda.
Dada
a decisão, o subprocurador do MPF em Brasília tomou ciência da decisão e nada
fez. Aceitou passivamente e não recorreu.
Como
havia Recurso Extraordinário pendente de análise, do STJ o caso foi para o
Supremo Tribunal Federal (STF). Que também negou seguimento, mas aí agindo
corretamente.
Há
um paradigma (isto é, decisão do STF a ser seguida) que diz que o argumento
isolado da mera falta de fundamentação não justificaria, por si, a propositura
do recurso extraordinário. Ou seja, quem alegar que não houve análise da
fundamentação, tem que comprovar a fundamentação e a falta de análise - uma
medida prudencial para impedir excesso de recursos.
Ora,
o TRF3 tinha analisado o recurso sob aspectos formais, não sob o prisma do
paradigma da falta de fundamentação.. O STF revolveu, então, o caso para que
analisasse sob esse paradigma.
O
TRF3 recebeu o caso. Bastaria ter admitido que não se aplicava o paradigma,
porque o recurso de Monteiro fundamentava o pedido. Mas burocraticamente o TRF3
responde que se só aplicava a falta de fundamentação.
Aí
o processo caiu nas mãos de uma procuradora, a quem caberia apenas dar um
ciente. Mas ela resolveu estudar mais a fundo o tema, em função dos valores
envolvidos. E descobriu um oceano de manobras fiscais bilionário.
Internamente,
os especialistas do MPF não dominavam o tema. Saiu atrás de especialistas para
entender a lógica da operação.
Ingressou
com embargos de declaração (medida que permite esclarecer pontos de obscuridade
na decisão) da decisão sobre o paradigma - a história de que o Recurso não
explicava a ausëncia de fundamentação da decisão. Mostrou que a ação
argumentava em todos os níveis.
Primeiro,
rebatendo as decisões iniciais que disseram que a Justiça não poderia modificar
decisões do CARF.
Em
direito administrativo existam os atos discricionários e os vinculados. Nos
discricionários, se admitem escolhas feitos pelo administrador. Nos vinculados,
não, tem que se obedecer estritamente o que diz a Lei e a Constituição. Ora,
lançamento de tributo é o ato mais vinculado que existe. Ato discricionário é o
prefeito poder escolher onde investir o dinheiro do município, não o CARF
definir quem paga ou não impostos de maneira soberana.
Todos
esses argumentos eram levantados nos Recursos.
A
procuradora alegou que mais uma vez tinha havido omissão do TRF3 ao não
analisar os argumentos da ação popular de que ato tributário é vinculado. E
caso era de extrema importância, porque a autuação de apenas um banco, por
poucos exercícios, significava valores próximos a R$ 1,5 bilhão.
O
TRF3 rejeitou os embargos de declaração. A procuradora entrou com agravo
interno, que vai para o pleno, que também foi rejeitado. Resolveu procurar
pessoalmente o desembargador que, finalmente, entendeu o alcance da ação.
Nenhuma desonestidade, apenas a incapacidade de dar conta do acúmulo de
trabalho.
O
desembargador concordou que caberia ao STJ analisar o caso. A maneira de
devolver ao STJ seria com uma petição rebatendo a tese do erro material - o não
julgamento sob o argumento de que o autor não recolher as custas. Juntou várias
jurisprudëncias mostrando que o erro material permite a análise a qualquer
tempo.
Se
o STJ reconhecesse o erro - simplesmente admitindo que ação popular ou ação
cujo titular seja o MPF não está sujeito a custas - o caso voltaria a ser
analisado pelo STJ.
Com
três linhas e um arrogante "NADA TENHO A DESPACHAR", a Ministra
Laurita Vaz incorreu em, no mínimo uma falta administrativa, a negativa de
jurisdição, que a sujeita a uma correição. Mas não anulará o processo.
Atenção
- a Ministra Laurita Vaz está em conflito com o Ministro João Otávio Noronha,
corregedor do Conselho Nacional de Justiça. Noronha é um Ministro muito
polêmico. Laurita Vaz, não. Mas o descaso com um processo de R$ 1,5 bilhão não
pode passar em branco.
Capítulo 4 - monumento ao auditor
desconhecido
Nos
anos 80, quando enfrentei o então Ministro da Justiça Saulo Ramos, conversei
com um fiscal aposentado do Banco Central, que havia instruído o inquérito da
Financeira Ideal, que pegava Saulo nas maiores falcatruas. Ele morava em um
apartamento modesto no Viaduto Maria Paula, com problemas sérios de pulmão.
Lutou até o final para fazer justiça.
Sugiro
que as associações de funcionários do Banco Central e Receita trabalhem para
levantar um monumento ao fiscal desconhecido - que faça justiça aos fiscais
anônimos que ousaram enfrentar os poderosos, para se sobrepor aos arrogantes,
que se especializam em espezinhar pequenas empresas e contribuintes.
GGN
GGN
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