“Nu
d’ês é bão…”: não há como salvar Rodrigo Janot.
O
título desta nota não contém erro ortográfico. Remete a uma das frases
preferidas de Rodrigo Janot em legítimo mineirês, também disseminada como
"lei da nudez": "nu d'ês é bão, no meu não!".
A
frase denuncia escapismo, atitude de quem não gosta de enfrentar riscos a si.
Quem a escolhe como moto de vida profissional demonstra não ser um líder, no
sentido próprio da palavra, alguém que sobressai por virtudes que possam ser
tomadas como exemplo a ser seguido pelos outros. Nenhuma sociedade sobreviveria
regulada pela "lei da nudez" e, muito menos, uma instituição.
O
episódio revelado em fragmentos na noite de ontem é mais um espécime prático de
aplicação da lei da nudez. Rodrigo Janot se contorceu para explicar o
inexplicável e concluir: "no meu não".
Reconheceu
o óbvio: as gravações de Joesley foram fabricadas em casa, por instigação da
equipe do Procurador-Geral da República e sem autorização judicial. Insistiu,
porém, em que, como provas, seriam íntegras, plenamente aproveitáveis. Afinal,
não seria a "suposta" molecagem de Marcelo Miller, seu ex-auxiliar,
que colocaria tudo a perder. "No meu não".
Nenhum
penalista, ainda que iniciante, subscreveria a ressalva sobre a integridade da
escuta ilegal de Michel Temer. Escutas ambientais só são lícitas, sem
autorização judicial, se forem tomadas por quem, partícipe no interlóquio,
queira usá-las em defesa própria. Este é o entendimento solidamente firmado
pelo STF. Não foi este o caso das gravações de Joesley.
O
que se tornou público ontem foi o uso de um prospectivo delator premiado como
longa manus do ministério público, clandestinamente plantado no domicílio
alheio, para ali extrair informações da boca de um alvo de devassa política.
Sim, porque aquilo que estava em curso quando da gravação do alvo não podia ser
chamado de "investigação". Esta pressupõe fato determinado,
completado no passado. Já a devassa é a busca frenética de um fato
comprometedor. É o que a Força Tarefa da Lava Jato tem feito incessantemente,
em Curitiba e em Brasília. Usar um prospectivo delator premiado para essa
tarefa é iniciativa do melhor estilo mafioso.
Lembra
cena típica de filme sobre a "Cosa Nostra", em que um pequeno batedor
de carteira com sonhos de grandeza quer entrar para a organização e é submetido
a teste de valentia e lealdade: obriga-se o pobre coitado a matar um policial,
para mostrar do que é capaz, como um aperitivo de sua utilidade para a
organização. Joesley, ao que tudo indica, foi usado como o batedor de carteira.
Foi obrigado a oferecer à Procuradoria Geral da República um aperitivo para
conquistar a premiação. O aperitivo era Temer.
Ninguém
no grupo da Lava Jato pode dizer que não sabia dessas práticas. Muito menos o
chefão. O uso de prospectivos delatores para a escuta ambiental não autorizada
tem sido recorrente. Foi assim com Bernardo, filho de Nestor Cerveró, que
gravou Delcídio do Amaral; foi assim com Sérgio Machado, que gravou José
Sarney, Renan Calheiros e Romero Jucá. No caso de Delcídio, a crueldade foi
requintada: após ter, este, fechado negociação com a Procuradoria Geral da
República, por acordo do qual constava cláusula de sigilo por três meses,
deu-se que a cláusula não foi aceita pelo relator, Ministro Teori Zavascki, por
não encontrar amparo legal.
Por
um desses acasos da vida, a gravação de Delcídio foi tornada pública logo a
seguir, impedindo o senador a voltar atrás no acordo de delação. Entre as
patacoadas do acerto constava declaração do senador de que Dilma Rousseff
teria, com a nomeação de Marcelo Navarro para o STJ, visado a obstar
investigações contra a construtora Odebrecht. Uma hipótese sem qualquer lastro,
como, agora, reconheceu a polícia federal, mas que serviu para abrir inquérito
contra a Presidenta às vésperas da votação da admissibilidade do impeachment no
Senado, com clara finalidade de desgastá-la perante a opinião pública.
O
que causa perplexidade é o cinismo da gestão de Rodrigo Janot à frente do
Ministério Público Federal, quando insiste em que sua atuação tem sido estritamente
"técnica". Façam-me rir. Já o disse alhures, o técnico é uma forma de
dar roupagem de isenção a decisões que são essencialmente políticas. O direito
usa a técnica como meio de legitimar essas decisões. Mas decidir sempre é
optar. O julgador opta entre, no mínimo, duas teses: a do autor e a do réu,
ambas revestidas de fundamentos jurídicos e, portanto, ambas plausíveis se
sustentadas com boa técnica. A independência do juiz está no intervalo entre
essas teses, que tem o nome de lide. Não pode decidir fora dela, pois seria
decidir "ultra petita", como se diz no bom jargão profissional. A
opção, quando não balizada por sólida jurisprudência, é algo completamente
subjetivo. E o juiz faz política ao optar. Assim também o faz o ministério
público quando decide, ou não, levar um caso adiante.
Mas
política não é sempre molecagem. Ela funciona como tempero necessário para
preservar as instituições e a governabilidade. Pressupõe-se de quem vai decidir
que tenha equilíbrio e senso de justiça, de correção, de critério – virtudes
que só se adquirem com muita experiência, ao longo de anos de atuação. Por
isso, não é crível tenha o Procurador-Geral da República deixado um grupo de
procuradores verdes, sem seu cabedal, rolar solto. O procurador Marcelo Miller,
que, pelo que se anuncia, estaria por detrás dessa "técnica" de
exigir aperitivos de prospectivos delatores premiados, com meros treze anos de
casa, não pode ter agido por conta própria. As informações colhidas por sua
"técnica" foram usadas não só em juízo pelo chefe da instituição,
mas, também, pela instituição-corporação (hoje é difícil divisar entre ambas),
para fazer seu barulho e adquirir musculatura – política (neste caso, com
sentido de molecagem mesmo).
Das
duas uma: ou o Procurador-Geral se revelou um grande irresponsável, deixando o
barco correr enquanto gente de sua equipe pintava e bordava com falta completa
de ortodoxia técnica; ou então ele era parte da trama, aquiescendo com a
"técnica" de Miller. Afinal, defendia e defende com unhas e dentes a
atuação do grupo da Lava Jato como íntegra e profissional. De uma forma ou de
outra, terá ainda muitas explicações a dar.
Por
sinal, curioso é o tratamento diferenciado dado a Marcelo Miller, se comparado
com o que foi emprestado a outro colega, o Doutor Ângelo Goulart. Ângelo nunca
pediu aperitivos ilícitos de prospectivos delatores; nunca plantou escutas em
domicílios alheios sem autorização judicial; nunca negociou passe com
escritório de advocacia para atuar em prol dos investigados depois de exonerado
do ministério público. E nada se provou de concreto contra Ângelo. Disse o
falastrão Joesley, na conversa plantada no Jaburu, que tinha um procurador e um
juiz no bolso. Depois disse, em delação premiada – sabe-se lá instigado por
quem – que Ângelo estaria a receber 50 mil reais para auxiliá-lo. Não acharam
um tostão com Ângelo. Sua casa, seu carro, tudo foi revirado. Suas
movimentações financeiras foram absolutamente regulares.
Mas
ele foi tachado de corrupto aos olhos da Nação, com direito a transmissão pelo
programa dominical "Fantástico" da Rede Globo e ficou preso por mais
de setenta dias sem poder contar sua versão dos fatos a ninguém. Mais
recentemente, em outra entrevista, mesmo sem nenhum avanço na investigação
contra Ângelo, Rodrigo Janot voltou a expô-lo como colega envolvido "em
corrupção". O que fez Ângelo? Passou uma gravação de uma audiência entre
um colega e diretores da Eldorado Celulose para um advogado de Joesley Batista.
A entrega da gravação nada tinha de ilícita, porque tomada de ato que deveria
ser público, a bem da higidez do trato do ministério público com as partes. A
gravação servia, ao que tudo indica, para convencer Joesley a aceitar fazer
delação premiada para evitar a derrocada de seu império empresarial. Mal sabia
Ângelo que as negociações sobre a delação já estavam em curso e adiantadas, com
Marcelo Miller à sua frente.
Já
Marcelo Miller, exposto nas novas gravações de Joesley, após ter abandonado o ministério
público para se lançar em mais rentável carreira de advogado, defendendo o
império empresarial de Joesley, recebe o benefício da dúvida. Nada de pedido de
prisão. Nada de acusação de corrupção. Ele pode prestar suas declarações, sua
versão, até próxima sexta feira, sem nada temer. Para os lavajateiros, a
atuação de Marcelo merece ser prestigiada e honrada. Diferente de Ângelo,
diretor da associação de classe, que teria se aproximado perigosamente da
candidatura de Raquel Dodge ao cargo de Procuradora-Geral da República e merece
ser publicamente apedrejado e ter sua reputação destroçada. "Nu d'ês é
bão".
Mas,
por erro de cálculo estrutural, desabou o edifício que homiziava a política da
"técnica" de Janot. Ficou exposta à curiosidade coletiva. Fez tudo
errado. Confiou em quem não devia ter confiado. Omitiu-se na defesa da
democracia e deixou de exercer o que a Constituição lhe atribuiu – ser
"Chefe do Ministério Público da União" (art. 128). Preferiu as
intrigas da politicagem interna e o discurso corporativo fácil. Revelou-se um
ignorante no jogo da macropolítica. Traiu quem lhe dera a mão, não para
beneficiar quem quer que seja, mas para tirar o país da polarização inaugurada
com o processo do chamado "Mensalão". Não o tirou e acirrou o conflito.
Permitiu que jovens procuradores partidariamente motivados destruíssem a
economia e levassem o moralismo doente ao judiciário. E nem conseguiu tratar os
colegas com dignidade. Ângelo Goulart que o diga.
A
"lei da nudez" falhou e não tem como salvar o do Rodrigo Janot.
Do
GGN
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