quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Veja o que Tacla Durán disse na CPMI que precisa ser aprofundado, por Joaquim de Carvalho

Dentro da série sobre a indústria da delação premiada da Lava Jato, feita em conjunto pelo Jornal GGN e o DCM, uma análise de Joaquim de Carvalho do depoimento de Tacla Durán à CPMI da JBS. O depoimento durou 4 horas e o alcance das declarações uma bomba no coração da Lava Jato. Outras matérias da série podem ser vistas aqui.
O depoimento do advogado Rodrigo Tacla Durán à CPMI da J&F durou três horas e 54 minutos, entre a manhã e o início da tarde de hoje. Durante pelo menos quatro horas, seu nome foi um dos assuntos mais comentados do Twitter, segundo o ranking da rede social, o Trends Topics. Mas, para quem acompanha o noticiário nacional pela velha mídia, é como se esse depoimento não tivesse existido.
Tacla Durán prestou serviços a duas empreiteiras investigadas pela Lava Jato, a UTC e a Odebrecht, mas não houve veículo da grande imprensa interessado em registrar o que ele disse. Por quê? Porque Tacla Durán nada contra a corrente e contesta a narrativa predominante de que Sergio Moro e os procuradores da república da Lava Jato são heróis, na batalha contra a corrupção.
Dar-lhe voz é contribuir para destruir mitos e, com isso, desmascarar a farsa da operação, que até aqui produziu como resultado mais expressivo o golpe contra a presidente Dilma Rousseff.
O que disse Durán que merece ser aprofundado:
1 - Ele não fez acordo de delação premiada, mesmo nas condições favoráveis que lhe teriam sido oferecidas por um amigo de Sergio Moro, o advogado Carlos Zucolotto, por considerar que estava sendo extorquido.
Observação: Pode ser mentira de Tacla Durán, mas ignorá-lo não vai esclarecer o caso. Durán apresenta como prova imagem das conversas com Zucolotto através do aplicativo Wickr - que apaga as mensagens depois de seis dias. Durán fez print screen da tela do celular. As imagens das conversas foram analisadas por um perito da Espanha e, segundo Durán, o laudo concluiu que não houve adulteração.
Durán encaminhou o laudo do perito, bem como a cópia das conversas, num anexo de 45 páginas, precedidas por um ofício (veja no final do texto do texto). Pelas conversas, não fica dúvida: Zucolotto tentou vender facilidade.
Pelas conversas, o interlocutor que seria Zucolotto diz que estava negociando o acordo com DD - é possível que seja Deltan Dallagnol. Mas Tacla Durán não quis dizer de quem eram as iniciais e sugeriu que o amigo de Moro esclareça.
Depois que Dallagnol assumiu a compra de imóveis do Minha Casa, Minha Vida, para especular, atravessando famílias que necessitam de apartamentos a preços mais baixos, uma coisa é certa: Dallagnol faz negócios.
Só para registrar: a compra de imóveis do Minha, Minha Vida, ainda que por pessoas que recebam supersalários (caso de Dallagnol), é legal. E Zucolotto também podia estar usando o nome de DD sem conhecimento deste.
Tacla Durán tem ainda a favor da sua narrativa um antecedente: Zucolotto foi correspondente de seu escritório em Curitiba, conforme documentação apresentada à Receita Federal, quando ele foi investigado, entre 2014 e 2016, sob a suspeita de crime contra a ordem tributária — simular atividade profissional para não recolher imposto.
O juiz Sergio Moro teve um comportamento estranho diante da acusação contra Zucolotto. Embora não fosse acusado de nada, saiu em defesa do amigo, em nota oficial, em que existe pelo menos uma informação que não é verdadeira: ao contrário do que disse Moro, Zucolotto teve, sim, atuação na área criminal, no caso em que Moro processou o advogado Roberto Bertholdo por calúnia, injúria e difamação, há cerca de dez aos, por ter sido acusado de favorecer réus e aceitar provas ilícitas, em acordos de colaboração da época.
O que fazer: Zucolotto teria que ser ouvido pela CPMI para dar explicações. Tacla Durán o acusa de vender facilidade em delação premiada. É uma acusação grave e precisa ser esclarecida. Depois que a jornalista Mônica Bergamo noticiou que a acusação contra Zucolotto constava no livro que Durán começou a escrever, o amigo de Moro fez alterações em seu facebook, e apagou imagens em que ele aparecia com o juiz. A imagem que circula na internet, com Zucolotto atrás de Moro, num show de Samuel Rosa, foi copiada antes que ele a deletasse. A CPMI também tem poderes para quebrar os sigilos bancários, telefônicos e de comunicações digitais de Zucolotto. Com isso, será possível saber de sua relação com os integrantes da Lava Jato. Segundo Durán, ele teria dito que precisava receber honorários por fora para pagar quem o estava ajudando no acordo de delação.
2 - A Lava Jato lhe propôs delação a la carte.
Observação: Rodrigo Tacla Durán narrou o episódio em que o então procurador Marcello Miller lhe apresentou uma alista de políticos e perguntou se podia incriminar algum deles. A colaboração tem que espontânea, não pode ser induzida.
O que fazer: a CPMI pode aprofundar o tema com um novo depoimento de Marcello Miller. Também pode denunciar o caso ao Conselho Nacional do Ministério Público e à Corregedoria do Ministério Público Federal — é quase certo que não dará em nada, mas obriga os órgãos de auto-controle a se posicionar.
3 — A Odebrecht (ou a Lava Jato) plantou provas falsas nos acordos de delação premiada e nas operações de busca da Polícia Federal.
Observação: Que provas são estas? Extratos bancários falsos do Meinl Bank, a instituição de Antígua que a Odebrecht usava para pagar propina. Isso é crime de fraude processual.
O que fazer: ouvir o ex-procurador geral Rodrigo Janot, responsável pelo Ministério Público Federal na época em que esses acordos e essas provas foram produzidos.
4 — O presidente e um diretor da UTC, Ricardo Pessoa e Walmir Pinheiro, mentiram à Procuradoria da República ao dizer que era ele, Tacla Durán, quem faziam as operações de câmbio ilegais.
Observação: essa acusação, feita bem depois do acordo de delação premiada, foi usada para vincular Tacla Durán ao caixa 2 da Odebrecht e, com isso, apertar o cerco contra o PT. Segundo os denunciantes, Tacla Durán entregava a cada dois meses pacotes de reais na garagem da sede da empresa. Mas a própria empresa diz que não tem registros de sua entrada na recepção nem imagens de vídeo. É uma acusação com jeitão de cascata. Para saber se Tacla Durán esteve ou não lá, poderia ser feita uma investigação de seu deslocamento, a partir dos registros das operadoras de telefonia. Não é difícil.
O que fazer: a CPI, além de fazer perguntas a Janot, pode chamar os diretores da UTC.
5 — Um consultor financeiro, Ivan Carratu, ligado à UTC, teria lhe recomendado contratar um advogado da "panela de Curitiba", para acertar a delação.
Observação: essa recomendação lhe teria sido feita por conversa de WhatsApp, cuja cópia foi entregue à CPMI, periciada.
O que fazer: A partir dessa prova, deve ser chamado para depor o consultor financeiro Ivan Carratu.
6 — A Lava Jato ameaçou perseguir parentes de Tacla Durán se ele não fizesse um acordo de colaboração premiada.
Observação: Em razão dessas ameaças, a mulher, a ex-mulher, os filhos, a irmã e a mãe de Tacla Durán deixaram o Brasil e foram morar com ele na Espanha.
O que fazer: É preciso ouvir Rodrigo Janot ou integrantes da Lava Jato para que respondam à acusação, muito grave, pois remonta aos períodos mais sombrios da história do Brasil, os porões da ditadura militar.
7- O Meinl Bank adulterou a contabilidade para impedir o rastreamento de recursos, para ficar com ativos que nunca seriam liberados, bem como proteger delatores.
Observação — Os publicitários João Santana e Mônica Moura tiveram receitas através de contas não reveladas pela Lava Jato — nesse caso, com a aplicação de tarjas sobre registros de movimentação bancária.
O que fazer — Tomar o depoimento dos acionistas do Meinl Bank — dois deles também ex-executivos da Odebrecht —, e de João Santana e Mônica Moura.
8 — Sergio Moro está violando acordos internacionais ao processar no Brasil quem tem outra nacionalidade.
Observação: A Espanha se dispôs a conduzir o processo contra Tacla Durán, no território espanhol, com base nas leis espanholas, mas, para isso, recomendou que o Brasil envie as provas que Moro tem da suposta conduta criminosa do advogado. Moro não fez isso e encaminhou uma citação, para que Durán tome conhecimento lá do processo que ele quer conduzir no Brasil e se defenda, sob pena de ser processado à revelia. Na prática, Moro está estendendo sua jurisdição para o território europeu. Isso nunca será aceito, mas mostra o que pode ser interpretado como comportamento abusivo do magistrado.
O que fazer: solicitar documentos que comprovem o que disse Tacla Durán — a fonte é o Ministério da Justiça e também o Ministério das Relações Exteriores, que mediam o diálogo entre as justiças da Espanha e do Brasil, com base em acordos internacionais. O resultado dessa análise deve ser registrado no relatório da CPMI. Além disso, a comissão deve oficiar o Conselho Nacional de Justiça sobre o que pode ser interpretado como comportamento abusivo de um magistrado. Jurisdição planetária não existe.
Além de aprofundar esses pontos, a CPMI tem a oportunidade de analisar todo o material que foi encaminhado por Tacla Durán. São extratos bancários, registros de conversas por aplicativo, cópias de e-mails e ofícios.
A partir daí, pode determinar diligências, perícias ou novos depoimentos. Não havendo dúvidas sobre a veracidade das informações que comprovem ou indiquem irregularidades ou ilegalidades, esse material pode ser subsidiar um capítulo do relatório.
A CPMI da JBS/J&F foi criada a partir de um fato determinado — o acordo de delação premiada que deu aos controladores e diretores da empresa imunidade judicial (na prática, já revogada, pois eles estão presos) —, mas, através dela, pode haver recomendação para mudanças que aperfeiçoem a legislação.
Até aqui, a CPMI tem demonstrado que é preciso haver controle institucional sobre quem tem a prerrogativa de investigar a tudo e a todos, naturalmente sem tirar-lhes a independência. O limite é a lei, mas parece que os integrantes do Ministério Público e o Judiciário não parecem temê-la, pois parecem contar  que, no caso deles, não há sanção. Lei sem pena é inócua.
O Brasil precisa de uma lei para punir abusos de autoridade.



Arquivo
GGN

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Quando os problemas pessoais de Moro atrapalham a defesa de Lula, por Síntia Alves para o Jornal GGN

Moro impede, de novo, que Lula use Rodrigo Tacla Duran como testemunha de defesa. Duran virou desafeto pessoal do juiz depois que revelou que Carlos Zucolotto, amigo pessoal de Moro, supostamente cobrou propina para facilitar um acordo de delação premiada
O juiz federal Sergio Moro impediu, de novo, que Rodrigo Tacla Duran seja ouvido no processo em que Lula é acusado de receber vantagem indevida da Odebrecht. Segundo informações do Uol, o juiz decidiu, na terça (28), que Tacla Dura "não é digno de crédito."
 Duran virou desafeto de Moro quando decidiu divulgar na imprensa que Carlos Zucolotto, advogado e amigo pessoal do juiz, supostamente cobrou propina para facilitar o acordo de colaboração com a Lava Jato. O GGN e DCM publicaram juntos uma série de reportagens especiais sobre a indústria da delação em Curitiba, que inclui as evidências apresentadas por Duran para sustentar sua denúncia. Entre elas, mensagens de texto trocadas com Zucolotto e um e-mail dos procuradores, com a minuta do acordo.
Moro decidiu não ouvir Duran sob o argumento de que palavra de criminoso não tem valor. 
"Rodrigo Tacla Duran é acusado de lavagem de cerca de dezoito milhões de dólares, teve a sua prisão preventiva decretada por este Juízo, fugiu, mesmo antes da decretação da prisão, e está refugiado no exterior", disse Moro ao recusar a oitiva em favor de Lula.
"A palavra de pessoa envolvida, em cognição sumária, em graves crimes e desacompanhada de quaisquer provas de corroboração não é digna de crédito, como tem reiteradamente decidido este juízo e as demais Cortes de Justiça, ainda que possa receber momentâneo crédito por matérias jornalísticas descuidades e invocadas pela defesa", acrescentou.
A decisão é contraditória justamente porque Moro já condenou Lula com base em depoimentos de empresários que pagaram propina e decidiram ajudar a acusação em busca de benefícios. Duran, por outro lado, desistiu do acordo e ainda revelou os bastidores à imprensa, expondo o amigo de Moro e virando seu desafeto.  
Quem apontou a contradição foi a defesa de Lula em resposta à reportagem do Uol. "Negar sob o argumento de que a palavra dele não merece credibilidade por estar sendo acusado da prática de crimes é absolutamente contraditório com a própria condenação imposta pelo juiz ao ex-presidente Lula no caso triplex, que está baseada na desconexa e frágil versão de um réu confesso, Léo Pinheiro", disse o advogado Cristiano Zanin.
Zanin também apontou que não há como Moro saber quais provas Duran poderia acrescentar ao processo de Lula sem ouvi-lo antes. "Somente com a coleta do depoimento da testemunha e dos elementos concretos que ela pode fornecer é que será possível avaliar o valor provatório da sua palavra. Não há razão jurídica para negar mais uma vez o depoimento de Tacla Duran."
A decisão de Moro foi uma resposta a um segundo pedido da defesa de Lula para que Duran explicasse documentos relacionados à Odebrecht que o Ministério Público Federal juntou aos autos. Os advogados do ex-presidente contestaram a veracidade de alguns deles e solicitaram o depoimento de Duran para ajudar a esclarecer os fatos. Na primeira tentativa, Moro também havia rejeitado ouvir Duran, sob o mesmo argumento.
Quando Duran veio à tona com a denúncia envolvendo Zucolotto, Moro entrou em contato com o amigo pessoal e divulgou na imprensa a sua defesa. Ela consistia em apontar que Zucolotto é advogado trabalhista e não teria atuação em área criminal, muito menos na Lava Jato. Ele também negou proximidade com os procuradores de Curitiba, mas Mônica Bergamo revelou que seu escritório representava Carlos Fernando dos Santos Lima em uma ação trabalhista. 
Zucolotto também tinha sociedade com Rosangela Moro, a esposa do juiz de Curitiba. Documentos da Receita Federal mostraram pagamentos de Duran ao escritório. A Lava Jato omitiu os papéis, possivelmente para não comprometer a jurisdição de Moro sobre os assuntos da Lava Jato.
GGN

terça-feira, 28 de novembro de 2017

É de ter vergonha do Ministério Público, diz Eugênio Aragão

Sem mais, nem menos, eis que o programa "Fantástico" da Rede Globo exibe imagens de Sérgio Cabral e Garotinho, ex-governadores do Rio de Janeiro, na prisão em que se encontram. Presos estão, sem culpa formada, porque seriam, ao ver de juízes deformados pela tal "opinião pública", tão perigosos quanto Hannibal Lecter, o assassino serial engaiolado no filme "O silêncio dos inocentes".
As imagens dos políticos preventivamente presos teriam sido obtidas com apoio imprescindível de membros do Ministério Público do Rio de Janeiro, aquela mesma instituição que convidou Kim Kataguiri para palestrar sobre "bandidolatria". Desviaram-se criminosamente de sua função de fiscalizadores da execução penal para exporem a intimidade de pessoas presas preventivamente.
Há algo de muito doentio com nossas instituições persecutórias, aí incluído o judiciário com competência penal, porque há muito deixou de ser isento para comungar, com o ministério público e a polícia, a cosmovisão falso-moralista e punitivista. Hoje, quem cai nas garras dessa troika, que não espere justiça. Não espere imparcialidade. Saiba que corre o risco de ser exposto, junto com sua família, à execração pública, conduzido de baraço e pregão diante das câmeras de televisão. Pouco interessa se o caso contra si é frágil ou forte; a gravidade da acusação que pesa é medida pela audiência que possa ser atraída, composta de um público cúpido em se deleitar com a desgraça alheia. Se o suspeito exposto é uma personalidade pública, a audiência vai ao delírio, para regozijo da mídia e, sobretudo, dos meganhas travestidos de juízes, promotores e investigadores.
A Schadenfreude virou sentimento legítimo. Nunca, depois do iluminismo, se festejou tanto, nestas terras, o suplício exposto de alvejados pelo sistema persecutório, quanto nos dias atuais, em tempos de Lava-Jato. Falta só amarrá-los na roda e esquartejá-los em praça pública. E a massa celerada ovaciona o ministério público que lhe proporciona tamanho show. Pouco lhe interessa que o próximo a cair nas malhas dessa instituição sem freio e sem critério pode ser cada um daqueles que ali estão em espasmódico orgasmo de ira descontrolada. Porque, para virar alvo de promotores ou procuradores falso-moralistas e redentoristas, basta estar no lugar errado, na hora errada.
E, em tempos de Lava-Jato, os Dallagnóis da vida assumem abertamente que "sem exposição" não seria possível responsabilizar os alvos de sua sacrossanta operação. Na falta de provas, de argumento técnico, o delírio das massas legitima a repressão. Por isso anunciam, para sua audiência de sádicos psicopatas, que 2018 será o ano da "batalha final" da Lava-Jato, um clímax imperdível, a coincidir com as eleições gerais e, claro, com prometido potencial de influenciá-la em proveito de quem, por juizecos e promotorecos, são tidos como merecedores da confiança popular.
Não escondem que o teatro sórdido montado contra personagens de visibilidade tem finalidade política. Depois de terem virado heróis nacionais por força de midiática atuação à margem da Constituição e das leis processuais, querem se assenhorar do Estado como um todo, avalizando, ou não, quem se candidate a cargo eletivo. Cria-se, assim, o index personarum prohibitorum do ministério público.
Resta-nos prantear essa instituição, que traiu sua mui promissora missão constitucional de promotora dos valores democráticos e dos direitos fundamentais, para se tornar um cínico verdugo a buscar aplauso de uma gentalha embrutecida, sem escrúpulos. Tudo em nome de um primitivo conceito de moralidade que não se sustenta diante dos abusos cometidos, da ambição desmedida e da ganância por desproporcionais vantagens pela função mal e conspiratoriamente exercida.
Triste fim do ministério público a que pertenci em atividade com tanta honra. Vulgarizou-se. Amesquinhou-se. Tornou-se um trambolho, um estorvo para as forças democráticas deste país. Gordo e autossuficiente, deleita-se no seu bem-estar, sem preocupação com milhares de brasileiras e de brasileiros impactados pela baderna política e econômica que causaram; brasileiras e brasileiros que não moram no Lago Sul de Brasília, não moram em Ipanema ou no Leblon do Rio de Janeiro e nem nos Jardins de São Paulo. Não têm recursos para planos de saúde eficientes que nem o Plan-Assiste do Ministério Público da União e nem para colocar filhos em escola privada. Será que os promotorezinhos e os procuradorezinhos pensam que essa população se alimenta de blá-blá-blá moralista? Acabaram os empregos, acabaram-se os direitos — "MAS temos o combate à corrupção!" É esse discurso que vai encher a barriga dos que foram esmagados pelo golpe do "mercado" e de seus interesseiros lacaios? Não acredito...
Um ministério público que precisa de aplauso para trabalhar descarrilhou. A repressão penal, lembra Foucault, por tangenciar perigosamente os fundamentos do Estado democrático de Direito e toda nossa autocompreensão civilizatória, precisa ser levada a efeito, em nossos dias, com discrição e até certa vergonha. Porque se houve grave lesão a bem jurídico fundamental, foi todo o sistema de prevenção que falhou. Falhou a educação, falhou a vigilância, falharam os legisladores e falhou a própria justiça que não soube cumprir seu papel de exemplo.
Claro que é muito mais fácil apontar para um culpado e extirpá-lo para deleite de um público que se diz ofendido, do que perquirir as causas do comportamento desviante e propor medidas concretas para seu enfrentamento, que não seja mais repressão midiática. Mas, preguiçoso trabalha dobrado. A sociedade que se contenta com o atalho da persecução penal e festeja seus verdugos não superará seus vícios, mas afundará na barbaridade e na ignorância e, por isso, será o terreno fértil para aproveitadores inescrupulosos. A corrupção não diminuirá, apenas se organizará para driblar os falso-moralistas. E um dia inexoravelmente cairá a máscara desse ministério público que nada fez a não ser barulho e tanto nos envergonha. Trabalharemos dobrado para nos desvencilharmos desse trambolho e enfrentarmos seriamente a tal corrupção.
GGN

Confira o que Tacla Durán deve dizer na CPI, por Joaquim de Carvalho

Mais uma postagem da série sobre a indústria da delação premiada da Lava Jato, feita em conjunto pelo Jornal GGN e o DCM. Outras matérias da série podem ser vistas aqui.
Exclusivo: O que Tacla Durán deve dizer na CPI, por Joaquim de Carvalho
A imagem da tela do smartphone com a conversa do advogado Carlos Zucolotto é apenas uma das provas que o advogado Rodrigo Tacla Durán pretende mostrar no depoimento à CPI da JBS, na próxima quinta-feira. Tacla Durán entregou o celular e notebook para um perito da Espanha, para que ele atestasse que não houve montagem nas imagens nem nas planilhas arquivadas.
A conversa com Zucolotto foi pelo apliacativo Wickr, que funciona como muitos outros programas de troca de mensagens, com a vantagem de que estas não podem ser rastreadas. Além de serem protegidas por criptografias, desaparecem depois de seis dias e não ficam armazenadas ou passam por nenhum servidor.
Tacla Durán fez print screen das telas com a conversa, e essas imagens é que foram para o perito, que já teria atestado não se tratar de montagem. No livro que Tacla Durán está escrevendo, Zucolotto transcreve o trecho de uma conversa sobre negociações para acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal:
Zucolotto: Amigo, tem como melhorar esta primeira… Não muito, mas sim um pouco.
Rodrigo Durán: Não entendo.
Zucolotto: Há uma forma de melhorar esta primeira proposta… Não muito. Está interessado?
Rodrigo Durán: Como seria?
Zucolotto: Meu amigo consegue que DD entre na negociação.
Rodrigo Durán: Correto. E o que que se pode melhorar?
Zucolotto: Vou pedir para mudar a prisão para prisão domiciliar e diminuir a multa, ok?
Rodrigo Durán: Para quanto?
Zucolotto: A ideia é diminuir para um terço do que foi pedido. E você pagaria um terço para poder resolver.
Rodrigo Durán: Ok. Pago a você os honorários?
Zucolotto: Sim, mas por fora, porque tenho que cuidar das pessoas que ajudaram com isso. Fazemos como sempre. A maior parte você me paga por fora.
Rodrigo Durán: Ok.
Zucolotto: Enviaremos um modelo com um valor alternativo, porque o valor de fora está bloqueado. Portanto, você para um terço em R$. Quando você vir (o modelo), vai entender.
Tacla Durán conta que, de fato, os procuradores Júlio Noronha e Roberson Pozzobon enviaram por e-mail um modelo de acordo com as condições alteradas por Zucolotto. “Recebi o rascunho no dia 27 de maio de 2016, e deveria estar no Brasil no dia 30, para assinar. Sozinho em casa na Flórida, pensei muito e decidi não assinar nem voltar ao Brasil. Não poderia admitir crimes que não cometi. Eu pedi ao meu advogado Leonardo Pantaleão, que me representou na reunião prévia com os procuradores, para discutir o texto e as cláusulas. Os procuradores, ao saberem da minha negativa em admitir os crimes que não havia cometido, não quiseram mais conversar comigo e as negociações terminaram. Este foi nosso último contato”, escreveu no livro que ainda não foi publicado.
Zucolotto é amigo de Sergio Moro e o site de seu escritório apresentava a esposa do juiz, Rosângela Moro, como uma das advogadas associadas. Pessoas próximas a Tacla Durán disseram não acreditar que o contato com os procuradores da Lava Jato seja feito através de Rosângela. As relações são estreitas não só através das amizades de Rosângela, mas entre outros advogados e membros do Ministério Público Federal. O irmão do procurador Diogo Castor de Mattos, Rodrigo, por exemplo, é advogado de João Santana e Mônica Moura, que fizeram acordo de delação premiada.
O procurador Orlando Martello Júnior, que atua com Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima desde a investigação do Banestado, em 2002, é muito próximo de Marlus Arns, advogado que fechou vários acordos de delação premiada em Curitiba.
Marlus também é  profissionalmente ligado a Rosângela Moro, através da APAE e também de uma antiga ação da massa falida da GVA, em Guarapuava, interior do Paraná. Por sua vez, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima já foi cliente do escritório de Zucolotto, em uma ação trabalhista.
A chamada República de Curitiba é quase uma família. Ou "panela', como teria definido o consultor financeiro Ivan Carratu, prestador de serviços da UTC, empreiteira para a qual ambos trabalharam. Tacla Durán também guardou mensagens trocadas com com Carratu quando o dono da empresa, Ricardo Pessoa, preparava um adendo a seu acordo de delação premiada.
Tacla Durán disse aos dois deputados que estiveram com ele em Madri (Wadih Damous e Paulo Pimenta) que foi  avisado por Carratu de que seria citado na delação de Ricardo Pessoa. Ivan Carratu teria lhe sugerido contratar um advogado da “panela” de Curitiba e adiantado que, com a assistência de um desses advogados, o acordo de delação premiada seria favorável.
De fato, Tacla Durán foi citado no adendo ao acordo de delação, mas em um depoimento que é estranho não apenas pelo conteúdo, mas pela forma. Quem toma o depoimento, como se fosse um procurador ou delegado da Polícia Federal, é a própria defesa de Ricardo Pessoa. Na verdade, são dois depoimentos — o de Ricardo Pessoa e o do diretor financeiro da UTC, Walmir Pinheiro Santana.
Um complementa o outro. Walmir diz que Tacla Durán é quem fazia o câmbio das propinas pagas no exterior. A cada dois meses, segundo Walmir, Tacla Durán comparecia à sede da UTC, em São Paulo, e entregava dinheiro vivo, em reais, correspondente aos dólares depositados lá fora. Pessoa diz a mesma coisa, só que nega o contato direto com Tacla Durán. Era Walmir quem recebia o dinheiro, na garagem da empreiteira.
O que enfraquece a versão é a falta de provas. Nos depoimentos, dizem que Tacla Durán não tem registro na portaria da empresa, nem houve gravação em vídeo da presença dela. Outro relato que tira credibilidade da narrativa é que, segundo Walmir Pinheiro, o dinheiro era entregue a ele e levado para ficar sob a guarda do doleiro Alberto Youssef. Não faz sentido. Por que Durán não levava o dinheiro diretamente a Youssef?
Para a defesa de Tacla Durán, essa versão de que teria havido triangulação entre doleiros, foi criada para evitar que Youssef fosse envolvido diretamente na história — ele teria que confirmar. Era mais fácil circunscrever a narrativa no âmbito de Pessoa e Walmir, um confirmando o outro.
O mais estranho no adendo à delação dos diretores da UTC é a forma como o depoimento foi registrado. É como se os advogados, pagos por Walmir e Pessoa, estivessem interrogando os clientes.
“QUE, o colaborador inicialmente gostaria de ressaltar que as informações agora reveladas de forma alguma foram escondidas ou guardadas conscientemente com a intenção de não revelar a movimentação financeira realizada”, escrevem os advogados no adendo de Walmir Pinheiro, como se fosse um depoimento tomado or autoridades constituídas.
Ricardo Pessoa, no depoimento dele, aparece complementando:
“QUE (…) o COLABORADOR solicitou a oportunidade de fazer um levantamento nos arquivos da empresa, estando agora em condições de prestar a presente declaração e documentos a respeito de fatos envolvendo a empresa de TACLA DURÁN”.
Não existe documento, apenas planilha, e o tempo que demorou para Pessoa recobrar a memória sobre a existência de Tacla Durán foi de aproximadamente um ano.
Para a defesa de Tacla Durán, o nome dele foi citado para esquentar a investigação, numa época em que os procuradores precisavam apertar o cerco à Odebrecht — Tacla Durán prestou serviços também para a Odebrecht.
Não existe prova de que Durán esteve na UTC, mas haveria um jeito de saber se houve contato entre eles. Bastaria verificar, nas datas indicadas como de entrega de dinheiro, se o advogado esteve na região da UTC. Basta quebrar o sigilo telefônico.  A torre das operadoras tem o registro do deslocamento de seus clientes. Mas isso não foi feito, porque, a rigor, não houve inquérito para apurar as operações atribuídas ao advogado.
O auto-interrogatório de Walmir Pinheiro e Ricardo Pessoa não foi homologado pela Justiça, mas tem sido citado em despachos de Sergio Moro para justificar medidas coercitivas contra o advogado. Tacla Durán deve relatar todo esse episódio à CPI da JBS, para mostrar o calcanhar de Aquiles da Lava Jato: na falta de provas para atingir um alvo, os procuradores arrumam um jeito de ajustar versões e simular cenários de crime.
 GGN

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O STF e a bandidagem política, por Aldo Fornazieri

O atual Supremo Tribunal Federal é o mais indigno da história do país. Durante o regime militar, o STF teve ministros cassados e houve uma alteração imposta pela força militar para torná-lo um órgão subserviente ao poder armado. O atual STF não sofre nenhum constrangimento armado, mas resolveu galgar os pináculos da indignidade por vontade própria. Certamente existem alguns ministros sérios, honestos e responsáveis. Contudo, seja por decisões coletivas ou seja por decisões individuais, a fisionomia que o STF foi adquirindo não é a do tabernáculo das leis, a do guardião da Constituição, mas a de casamata de corruptos, de golpistas e de criminosos do colarinho branco.
​Quando o colegiado do STF se reúne, não resplandece de lá a luz da razão, a garantia da imparcialidade, a proteção legal da Nação, a segurança jurídica de um povo. Nessas reuniões, alguns dos ministros encapotados são expressão de entes sombrios, fautores de rituais malignos, assumindo o figurino de sacerdotes de templo luciferiano. Sim, porque dali o bem público não é protegido, os princípios e fundamentos da Constituição republicana e democrática são pisoteados e a sagrada função de exercer o controle constitucional dos abusos dos outros poderes é sacrificada no altar dos conchavos, da promiscuidade e da servilidade criminosa que se justifica nas teses, igualmente criminosas, da moderação, da conciliação e da harmonia dos poderes. São teses criminosas porque são capas ideológicas para disfarçar a falta de direitos para o povo, para acobertar a extorsão recorrente do Estado que tira dos pobres para dar aos ricos.
Esse STF não merece o menor respeito. Como pode ser respeitada uma Suprema Corte cujos ministros se reúnem na calada da noite com aqueles que devem julgar? Como merece respeito quando se sabe que alguns ministros assessoram um presidente ilegítimo e denunciado de cometimento de vários crimes? Como merece respeito diante do fato de que ministros mantêm relações promíscuas com senadores e deputados acusados de vários crimes? Como merece respeito em face da omissão diante de inconstitucionalidades graves de instrumentos legais a serviço da proteção de corruptos e criminosos? Como merece respeito ao abrir mão de um princípio fundamental da Constituição e de um direito de ser a decisão em última instância para salvar o mandato de um senador corrupto como Aécio Neves? Como merece respeito quando se tem ministros que não tem a cautela e nem a prudência, não têm o senso de proporção, ao não guardarem distância de políticos e empresários a quem poderão julgar futuramente? Numa democracia descente, alguns desses ministros deveriam ser julgados por sedição, por conspiração contra o Estado.
A salvação de Aécio Neves é um caso emblemático, já que ele expressa o apogeu da indignidade do STF. Naquele ato, o STF não atravessou o Rubicão, pois quando Júlio César o atravessou, foi um ato de coragem. A salvação de Aécio foi um ato de covardia. Foi como se a maioria dos ministros, presididos pela sacerdotisa do mal, abrisse as portas da cidadela para que os corruptos a tomassem sem luta, como se fossem convidados e entrar amigavelmente.
Aquela decisão abriu as portas para que deputados estaduais e vereadores criminosos se sentissem protegidos pelas suas Casas, por raciocínio análogo. A escandalosa, criminosa e inconstitucional libertação dos três deputados no Rio de Janeiro, por decisão da Assembléia Legislativa, está implicitamente autorizada pelo ato de salvação de Aécio Neves, mesmo que naquela resolução a extensividade para as instâncias inferires dos Legislativos não esteja escrita. O fato é que o STF transformou o poder político em poder judicial, destruindo o sentido manifesto da Constituição republicana.
O STF tornou-se a casa da incoerência: o que valeu para Delcídio, não valeu para Aécio e o que não valeu para Aécio agora poderá valer para deputados estaduais e vereadores. O STF é uma casa anarquizada: não há regra clara para definir as questões que podem ser julgadas por um ministro, por uma turma ou pelo pleno. O STF é a casa da protelação: um ministro pode pedir vistas a uma questão em julgamento sem nenhum prazo para o seu retorno. Assim, as vistas se tornaram ardis inescrupulosos, usados por ministros para atender interesses forasteiros e inescrupulosos de políticos, de empresários, de grupos econômicos.
Veja-se o escandaloso caso do pedido de vistas do julgamento do Foro Privilegiado, feito pelo ministro Dias Toffoli. Ele alegou ter dúvidas sobre o tema. Ora, Toffoli foi nomeado ministro em 2009. Será que de lá para cá não percebeu que o Foro Privilegiado é uma excrescência, um câncer da nação, um tridente empunhado por políticos e autoridades corruptos para garantir a sua impunidade? Sim, Toffoli, que se tornou ministro com méritos e virtudes duvidosos, deve saber disso. Mas decidiu usar uma espécie de experiente de obstrução, não cumprindo com o dever de dar celeridade e agilidade a um caso de alto reclamo popular. Toffoli é pago pelo erário do povo e o STF custa caro ao povo. É indigno, vergonhoso, usar esses expedientes para protelar decisões, criar ineficiência e proteger corruptos.
A falsa tese da independência dos poderes
A esperteza corrupta e escorchante das elites brasileiras e dos seus áulicos intelectuais criou a tese da independência e harmonia entre os poderes, algo que nunca foi um princípio da Constituição republicana moderna. Na verdade, o fundamento dessa Constituição é o da separação do poder em três ramos distintos e a definição de equilíbrios, pesos e contrapesos na relação entre esses três ramos, com a ingerência parcial de um poder no outro. Assim, a relação não é de independência e nem de harmonia. É de conflito e de controle mútuo. Existe vasta teoria sobre o assunto e basta ler os seus formuladores, destacadamente Montesquieu e, particularmente, os Federalistas.
O que espanta, no caso da crise brasileira, é que analistas de direita e alguns de esquerda se unem para defender a tese da independência dos poderes, que se traduz em tese da impunidade e de proteção de corruptos. Curiosamente, os analistas de esquerda que assumem essa excrescência acusam os militantes dos partidos de esquerda que defendem a punição do corruptos, a exemplo de Aécio e dos deputados peemedebistas do Rio de Janeiro, de serem moralistas ingênuos etc.
A exigência de moralidade pública é um preceito das Constituições republicanas e democráticas, uma demanda ética e moral da sociedade e um dever daqueles que se dispõem a servir o bem público. A corrupção é a negação do Estado Democrático de Direito, é incompatível com um posicionamento de esquerda e não pode ser aceita por aqueles que pugnam por uma sociedade mais justa, igualitária e livre.
A corrupção é uma podridão que apodrece as condutas, a eficiência e a prudência de quem governa. Nenhum governo corrupto se habilita para produzir inovações reformadoras profundas, nem o progresso e a grandeza dos povos e das nações. A corrupção, em todos os tempos, afundou os líderes no lodo da indolência, produzindo a desorganização dos Estados e a miséria dos povos.
Estados e governantes corruptos não geram a confiança necessária nas sociedades, o que termina gerando o extravio dos governos e das políticas públicas. Nenhum governo é bem sucedido se  carece da confiança social. Ser corrupto é roubar o que é do povo, o seu remédio, a sua saúde, a sua educação, a sua cultura. Numa democracia séria, os corruptos não podem governar e políticos corruptos devem parar na cadeia.
A militância de esquerda não pode confundir o combate necessário que se deve fazer a setores do Judiciário pela sua ação parcial e persecutória contra Lula com a necessidade de combater a corrupção. Diante do governo mais corrupto da história do Brasil, diante do PMDB que é um lodaçal de corrupção, diante da impunidade de Aécio Neves e diante das tragédias e ineficiências que a corrupção gera, a militância de esquerda deve empunhar a bandeira de combate a corrupção, pois ela é o grande mal que apodrece todas as repúblicas e mantém os povos na pobreza, sem acesso aos direitos fundamentais e aos bens básicos.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
GGN

domingo, 26 de novembro de 2017

Os 300 índios guaranis que estão defendendo sua terra em Santa Catarina de tudo e de todos. Por Renan Antunes

Enseada do Brito: terra disputada por guaranis e posseiros
Perdão leitores e turistas: reapresento a história da índia guarani da mão cortada a faconaços.
É necessário para recontar as circunstâncias desta brutal agressão ocorrida em Santa Catarina no feriado de Finados – consequência da luta pela terra entre brancos e guaranis.
O ataque foi um gesto nada sutil. O objetivo da barbárie é expulsar os guaranis da Terra Indígena do Morro dos Cavalos, onde 300 deles resistem às investidas.
A vítima da hora foi mesmo a índia que mostramos com exclusividade aqui no DCM: Ivete de Souza, fotografada num leito do Hospital Regional São José na noite dessa terça, 21.
O que agora se sabe é que ela foi marcada para morrer porque é ninguém menos do que a matriarca dos guaranis da aldeia. Figura respeitadíssima e mãe da combativa cacica Eunice.
Seu verdadeiro nome é Juxiká.
Na língua deles significa “divindade das sementes” – Ivete é apenas o nome aportuguesado dela, assim registrado no BO da polícia e no hospital.
Juxiká é de poucas palavras. Sua voz é só um murmúrio, cada frase soa como um suspiro.
Ela já estava na aldeia quando a reencontrei na quinta, dia 23. O coto da mão cortada estava enrolado em bandagens encardidas. Tinha os cabelos desgrenhados, vestia roupas surradas, o esmalte vermelho descascando das unhas da mão que lhe sobrou.
Não foi fácil chegar ao esconderijo dela, só possível depois de negociações com lideranças guaranis em São Paulo.
Aqui não posso descrever o local, porque os índios me pediram sigilo, por segurança – vai que quem a atacou queira terminar o serviço.
Posso dizer que a sala era pobre, mas ampla e arejada, com um mapão na parede.
A velha índia contou, sem alterar a voz, que não identificou quem queria seu mal.
Descarta rixa com algum índio: “Minha vida era só carpir, plantar e cozinhar para a família”.
A família pela qual ela lutava de enxada na mão é composta pela filha cacica, uma neta (filha de cacica) e uma bebê, bisneta, quatro gerações sob o mesmo teto.
Olhando a big picture, e sabendo que Eunice é uma liderança guarani conhecida e respeitada internacionalmente, que nunca anda desprotegida, entende-se por que Juxiká se tornou alvo.
Juxiká, ou Ivete de Souza, cuja mão foi decepada num ataque
Eunice dá entrevista com a mãe. Também por segurança, pede que fotos da filha e da bebê não sejam publicadas – posso atestar que a menina era linda, saudável e irrequieta, rolando pela casa num andador cor de rosa. A danadinha interrompeu a entrevista várias vezes.
O que não percebemos na primeira reportagem foi a verdadeira natureza e a dimensão do ataque, parcialmente escondido pela grande mídia.
Notícias do conflito poderiam causar impacto negativo no turismo do Mercosur – os gringos que entram em Floripa não suspeitam do caldeirão de ódio e violência que é a paisagem idílica da janela do carro, o parque estadual da Serra do Tabuleiro, onde há décadas os 300 guaranis sobrevivem enfrentando um rosário de desigualdades.
A tribo, da qual a maioria pensa que são só os vendedores de cestos bem do alto do Morro dos Cavalos, às margens da BR101, é hostilizada pelos posseiros brancos que ocupam a terra deles.
Os posseiros têm apoio de políticos locais, no Judiciário, Legislativo, Executivo dos três níveis e da imprensa – índio não lê jornal.
Os fins de semana da tribo são de puro terror.
Nos findis os posseiros têm mais tempo livre e passeiam pela área, disparando para o alto, às vezes mandando bala no casebres da turma. 
Os relatos dos ataques são fartos, comprovados com queixas na polícia e na internet, mas pouca gente se importa.
A bela e Santa Catarina só divulga as qualidades boas de seu povo e as baladas do verão, escondendo o lado sujo dos guaranis.
Não falo aqui de direitos ancestrais às terras.
A área foi demarcada (em 2008) pelo Ministério da Justiça da Era Lula. Eis o documento:
Portaria Declaratória 771, do Ministério de Justiça, declara de posse permanente dos grupos indígenas Guarani Mbyá e Nhandéva a Terra Indígena Morro dos Cavalos, de aproximadamente 1.988 hectares. (Fonte: site do MJ)
Portanto, no papel, os 300 poderiam chamar de seu aquele cantinho.E viver ali para pescar e colher goiabas.
Estava tudo pronto para o então presidente assinar a homologação da área e despejar ajuda federal nela, quando os posseiros, organizados por prefeitos da região, foram ao STF contestando a medida.
O STF levou oito anos para decidir que os índios tinham razão.
Não adiantou: quando os posseiros perderam, foi a vez do governador Raimundo Colombo (PFL/DEM/PSD) entrar no tapetão. Eis outro documento:
O Estado de Santa Catarina pediu a anulação da demarcação da terra indígena no Morro dos Cavalos, em Palhoça, na Grande Florianópolis. Para isso, a Procuradoria Geral do Estado protocolou no STF solicitação para tornar sem efeito a Portaria Nº 771, do MJ. O governo pede mais: se perder a terra, que ao menos o STF afaste os índios do leito da BR101 (Fonte: site da PGE/SC)
Protocolar no STF é jogar o caso para as calendas.
Provocação: “Enseada é terra de gente”
E o novo pedido veio com uma barganha que os posseiros não pensaram: se os ministros mantiverem a decisão de que a terra é dos guaranis, que pelo menos eles (os índios, não os ministros) sejam chutados do alto do Morro dos Cavalos, para que se possa dar uma reformada na BR101.
FALTOU UMA CANETADA
Dilma teve uma chance para desafiar tudo e assinar a homologação. Os índios mais espertos perceberam que ela ia cair e foram ao palácio. Um dia antes do impeachment imploraram por um canetaço dela – mas ela não teve, digamos, bolas para tanto. Estava tão siderada com o golpe que deixou os índios se virarem sozinhos.
Aí, caiu na mão de quem para assinar o decreto de homologação da área indígena?
Dele, Michel Temer. Quem conhece o tema garante que ele só assinará uma homologação destas no dia em que as galinhas criarem dentes.
Mais: foi já na gestão dele que os brancos ganharam a última escaramuça, apertando o torniquete nos índios.
A ajuda do mal foi dada pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), órgão do Ministério da Agricultura. Ela cortou a cesta básica que durante anos pingava na tribo.
Chega a ser provocação: o site da empresa mostra que entre suas tarefas está “a distribuição de cestas de alimentos, compostas por 22kg de produtos da linha básica de consumo, destinadas à suplementação alimentar de segmentos da população em situação de vulnerabilidade social, tais como comunidades indígenas” – mas, neca pros guaranis do Morro dos Cavalos.
TOMARAM A TERRA, QUEREM A ÁGUA
Como é a terra disputada?
O naco dos guaranis tinha tudo para ser um pedaço do paraíso dentro do paraíso que são os 84 mil hectares do parque estadual da Serra do Tabuleiro (1% do território catarinense).
Os guaranis ocupam menos de um 1% deste 1%, mas mesmo assim incomodam. Os melhores mananciais de água limpa nascem nas terras deles – e os brancos a bebem lá embaixo.
Os 300 que vivem lá dentro dominam as terras entre os rios Maciambu e do Brito, mas 70 famílias de brancos estão enraizadas no meio deles – uns passam pelos outros de olho arregalado.
No ponto mais alto, as terras indígenas cortam a rodovia vital dos catarinenses, aquela que traz ondas de gaúchos e argentinos para o turismo. Ninguém entra em Floripa vindo do Sul sem passar pela terra deles.
Também é dos guaranis uma das praias mais lindas do litoral catarinense, a Enseada do Brito, com uma vista monumental do continente – do outro lado está Floripa, dá para ir nadando.
Para sobreviver, tudo o que os índios fazem nelas, além de suas roças de mandioca, é explorar a venda de bugigangas, cestas de palha e caldo de cana. Os posseiros têm negócios variados: postos de combustível, borracharias e puteiros.
O cocoruto do morro e o conflito pelas obras da 101 são a parte visível, sempre com os índios pintando nas páginas da maioria dos jornais como inimigos do progresso.
Os índios resistem com suas barraquinhas de suvenires pros viajantes na passagem do morro porque sabem que se forem varridos do alto, serão varridos do parque – já dá para imaginar bandeirantes modernos nos grotões caçando para deportação aos últimos vendedores de caldo de cana.
A luta continua, sem noção: hoje, as lideranças indígenas fazem periódicas peregrinações ao Planalto para pedir ao ministro Eliseu Padilha que encaminhe o decreto de homologação para assinatura do presidente Temer – os pajés sonham com o dia das galinhas dentuças.
Barraquinha de venda de suvenires às margens da BR101, no Morro dos Cavalos
Depois da judicialização do caso pelo governo de SC, o governo federal se sente confortável para deixar o caso pras calendas – tanto que ele continua dormindo no STF.
Os índios e o as autoridades já tinham acertado até como fazer para preservar os cocorutos do Morro dos Cavalos pra BR101 – o DNIT deveria fazer túneis, projeto pronto. No ano passado, o TCU vetou os túneis e reabriu a ferida de passar pela terra indígena sem se importar com os vendedores de suvenires.
Semanas atrás um grupo de políticos e empresários de Palhoça foi a Brasília pedir ao mesmo Eliseu Padilha que interceda em favor da expulsão dos índios – neste caso, é bom levar a galinha para ser examinada no dentista porque aí sim ela pode criar dentes.
INDIOZINHOS EXIBIDOS EM ESCOLAS
Um historiador local, ouvido pelo DCM, ex-presidente do conselho de moradores da Enseada do Brito, defende que não havia guaranis no pedaço “antes das ONGs” (defensoras dos índios) dizerem que eles estavam lá por séculos – conforme laudo antropológico da área, aceito pelo MJ.
Segundo a tese dele, uma família de sobrenome Moreira teria acampado no Morro dos Cavalos nos anos 60, durante a construção da 101, daí se originando o que hoje é o grupo estimado em 300 resistentes escondidos naqueles grotões.
Ele contou que até levou algumas crianças indígenas para exibi-las aos seus alunos, no tempo em que lecionava nas escolas da região.
Defende a permanência dos brancos posseiros no pedaço porque “são famílias que estão aqui desde o tempo dos açorianos”, os colonizadores da vizinha Floripa.
Explicou também que a água consumida nas casas dos moradores brancos que ocuparam a Enseada vem toda da terra indígena, através de mangueiras que captam no alto do morro: “Vamos deixar toda água com os índios”? pergunta, assustado.
Hoje a causa dos brancos é defendido por uma funcionária pública, também integrante do conselho de moradores, que não quer ter seu nome publicado.
Ela sustenta que os índios chegaram mais tarde ainda do que a tal família Moreira.
Na versão dela teria sido em 1993. Ela aposta numa vitória do governo de Santa Catarina para despejar a indiarada. De lambuja, não quer nem sua foto publicada no DCM – desejo aceito.
Ela tem a ainda uma tese “líquida” de que a tribo entrincheira no morro não tem guaranis legítimos: “Onde você viu guaranis que tomam chimarrão”?
Aqui o repórter foi obrigado a buscar esta rápida info na web sobre a erva Ilex paraguairiensis: diz a história que foram os guaranis que descobriram seu uso, passando o conhecimento aos espanhóis.
Ou seja, quando os brancos chegaram na América os guaranis já tomavam aquela beberagem.
VERSÃO OFICIAL DO ATAQUE É FANTASIA
Os dois integrantes do conselho de moradores disseram saber que são os atacantes que deram os faconaços em Juxiká.
Registro que os dois se disseram horrorizados com o acontecido.
A versão deles é a mesma versão oficial do ataque: de que ele foi perpetrado por lideranças indígenas adversárias da cacica Eunice.
O que nos leva de novo à cena do crime: Juxiká estava sozinha em seu casebre quando dois adolescentes (hoje detidos, com identidades preservadas de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente) a atraíram para uma casa vizinha.
Lá dentro havia um homem, adulto, com um facão, pronto pra suprema covardia: bater até a morte numa velhinha de 1m52, desprevenida: “Eu senti o primeiro gole na cabeça e o sangue escorrendo”, lembra Juxiká, estoica, sem derrubar nenhuma lágrima.
Não foi possível apurar mais detalhes do ataque porque ela disse que perdeu a visão com o sangue nos olhos: “Senti tudo, mas não entendi direito e só me defendi” – bem provável que se o cara deu o primeiro faconaço na cabeça dela queria mesmo era matá-la.
Sem especulações: dona Juxiká não perdeu a consciência, tentou se defender com os braços, recebeu mais golpes pelo corpo, sangrou muito e teve a mão esquerda decepada.
Caída numa poça de sangue, a “divindade das sementes” foi deixada para morrer.  É provável  que atacante tenha achado que o serviço estava pronto e sumiu, deixando-a pronta pra semear nos sete palmos.
Como vai a investigação da Polícia Civil de Santa Catarina ?
Lembremos que seu governo quer a saída dos índios do pedaço.
Na delegacia da Mulher de Palhoça, os agentes não dão prioridade ao caso. 
Eles espalham um boato, pedindo para que nada seja publicado antes do final das investigações: o atacante seria outra liderança indígena, um suposto cacique Luiz.
E aí deram uma dica para o repórter: “Procure por ele nos mesmos morros, mais para cima, num trecho perto dos garapuvus, foi visto próximo de uma roça de melancias” – eu é que não sou bobo de procurar cacique em roça de melancias, pelo que eu sei esta fruta só dá no plano.
A cacique Eunice repudia as versões genéricas: “Cada vez que um dos nossos é atacado, as pessoas pensam em desistir e mudar-se, é isto que os atacantes querem. Está óbvio que não são indígenas, nosso povo está unido. É coisa deles” – com “deles” em língua em guarani e em português, quer dizer gente de fora da aldeia, brancos.
Os 300 guaranis do Morro dos Cavalos não fazem aquelas cenas de se pintar para guerra ou usar arco e flecha na frente das câmeras.
Para resistir às provocações, todos os findis, e durante a noite, a hora mais temida, os guaranis, já acostumados com os sustos, se reúnem em vigília, em locais protegidos.
As crianças enroladas em cobertores, os cachorros soltos, pra avisar qualquer coisa.
Os guerreiros ficam no smartphone, as mulheres vendo TV.
As famílias cozinham pinhão e mandioca.
Muitos passam a noite em claro, de cuia na mão, tomando chimarrão.
Juxiká (de costas) com a filha, cacica Eunice
DCM