quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O tecido político está se rompendo, por Gustavo Conde

O tecido político está se rompendo. Daqui a pouco será cada um por si. Eles conseguiram sabotar a democracia brasileira na sua mais delicada essência pós ditadura: a organização social.
O rescaldo de ódio acumulado que perdura, embora menor que há dois anos, é suficiente para alimentar a fantasia da imprensa e os interesses do PSDB. Termos, portanto, que reunir forças para fazer uma travessia. Será mais uma travessia histórica duríssima que a elite brasileira nos deixa com herança.​
O julgamento de Lula mudou a realidade dos fatos. A força política da esquerda que ia se recompondo aceleradamente sofreu o seu mais duro golpe da história. Foi quase uma decapitação.
Aqui, vale um alerta e uma análise expressa. Muita gente pode estranhar a suposta e aparente "guinada" da minha posição. Na verdade, não há guinada. Quando a realidade muda, muda-se a leitura da realidade. Não tem como escapar disso, se a leitura tem como base dados empíricos e discursivos.
Em momentos assim - de inflexão da realidade sócio-política -, algumas pessoas mobilizam imediatamente seus "argumentos" tímicos: otimismo versus pessimismo. Ah, você é pessimista. Ah, você é otimista.
Se pudéssemos reunir os piores tipos de argumento de uma sociedade, certamente, eu votaria no argumento - que não é um argumento - 'pessimismo versus otimismo'. Talvez, isso seja tão óbvio que eu nem deva tocar no assunto, correndo o risco de parecer ingênuo - o que, a rigor, é outro não-argumento muito popular na praça.
Desfilar adjetivações desta cepa - ingênuo, otimista, pessimista - é um desserviço ao debate público que, se fosse dotado de desejo próprio, certamente gostaria muito de voltar a ter alguma importância estrutural num país como o nosso.
Digressão encerrada, concluo reiterando: o tecido político está se rompendo neste exato momento. Declarações confusas, falta de unidade, desespero, apatia, tensão, medo e derrotas judiciais sistemáticas (por mais infundamentadas que sejam).
Há o imponderável, claro. A questão aqui não é "acertar" uma previsão. Eu não sou vidente, sou linguista. Pode acontecer, portanto, qualquer coisa. Podemos ter uma liderança nova que surpreenda. Podemos ter o filme sobre Dilma Rousseff vencendo o Festival de Cinema de Berlim e se tornando uma denúncia mundial.
Podemos ter a imprensa estrangeira engrossando o coro contra o golpe brasileiro. Podemos ter os intelectuais e artistas americanos encampando em uníssono uma campanha global pela volta da democracia no Brasil (se houvesse um brasileiro minimamente razoável em comunicação internacional, este apoio já estaria em curso - é muito fácil construí-lo, basta algum grau de inteligência e iniciativa).
Enfim, para atender um pouco aqueles que raciocinam com base em otimismos e pessimismos, entoo um alento: tudo pode acontecer.
Mas o tecido político - insisto - foi rompido (está se rompendo). Esse é o dado empírico que pode re-orientar novas ações neste momento. O que seria esse rompimento? Trata-se, pura e simplesmente, da dispersão do discurso.
Todas as declarações de todos os líderes políticos da esquerda nesse momento estão desencontradas. Chega a assustar. Nem entrarei em detalhes, até porque é algo que me entristece.
A explicação, a rigor, é: sem Lula - o único ser político capaz de produzir enunciados dotados de sentido político e histórico - a capacidade de análise, julgamento e mobilização do campo progressista se estilhaça. O poder de Lula tem essa consequência dramática. É um poder tão imenso e onipresente, que sua proscrição do processo político provoca um vácuo assaz traumático.
Resta termos muita atenção. Mesmo a esquerda saindo vencedora destas eleições, o cenário ficará terrivelmente mais pobre sem Lula. Resta saber, também, como se dará essa "proscrição" de Lula. Ela pode nem acontecer, é verdade. Mas tudo indica que o lado 'sombrio' não vai desistir e nem poupar esforços para tal.
Tudo, realmente, pode ser muito rápido. A "iraquização" do Brasil está em curso e é também acelerada, com ministra de tribunal reunindo-se com representantes da Shell para falar mal de Lula. É algo fora do comum.
Devastação, genocídios, explosão de violência, doenças, liquidação de patrimônio público, cancelamento de contratos, tudo isso também se desenrola com extrema rapidez e amplitude avassaladora.
É o preciso e definitivo momento de reinvenção do Brasil. Ou o Brasil se reinventa ou ele deixa de existir tal como um dia foi conhecido. Uma apoteose. Uma quarta-feira de cinzas. Uma despedida em festa, como sói acontecer em nossos carnavais. 
Do GGN

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

GGN e DCM lançam DOCUMENTÁRIO exclusivo sobre INDÚSTRIA DA DELAÇÃO PREMIADA na lava jato

O Diário do Centro do Mundo e o GGN lançam nesta terça (30), no Youtube, o documentário "A Indústria da Delação Premiada", que aborda os bastidores da operação Lava Jato em Curitiba, discutindo, entre outros temas, a falta de transparência que envolve os acordos de colaboração.
No documentário, os jornalistas Luis Nassif e Joaquim de Carvalho contextualizam o uso da delação premiada pela Lava Jato e levantam uma série de questões que a imprensa marginalizou ao longo de todos os anos de cobertura da operação. 
O vídeo tem a participação exclusiva de Rodrigo Tacla Duran, o ex-advogado da Odebrecht que ganhou os holofotes após ter denunciado um suposto esquema de cobrança de propina nos acordos de delação em Curitiba. 
O documentário é fruto de uma parceria inédita entre os blogs, financiada coletivamente (crowdfunding), com início em outubro de 2017 e que produziu mais de uma dezena de reportagens especiais. Para conferir o acervo, clique aqui. Assista o vídeo:

Cármen Lúcia não é o STF, diz Eugênio Aragão

O ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão disse que Cármen Lúcia não é o Supremo Tribunal Federal, ou seja, não pode decidir sozinha o que a Corte vai ou não julgar. O comentário foi feito após a presidente do STF dizer que não vai pautar a revisão da prisão em segunda instância e que o tribunal vai se "apequenar" se alguma mudança ocorrer após a condenação de Lula.
"Se a ministra diz que seria apequenar o Supremo discutir isso em função do Lula ser preso ou não, também seria apequenar o STF deixar que esse debate se resolva em termos de incluir ou excluir Lula da corrida presidencial deste ano", disparou Aragão, citando pressão da mídia para que a prisão do ex-presidente se torne fato consumado.
Segundo Aragão, "a questão que vai se colocar é saber se existe execução provisória da pena ou não fora das hipóteses de prisão preventiva que estão no artigo 312 do Código de Processo Penal."
Por Glauco Faria
Veículos da mídia tradicional têm dado destaque à declaração da presidenta do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia, dada em um jantar com empresários e jornalistas organizado pelo site Poder360 na noite desta segunda-feira (29). "Não sei por que um caso específico (referindo-se ao ex-presidente) geraria uma pauta diferente. Seria apequenar muito o Supremo. Não conversei sobre isso com ninguém", disse a ministra.
No entanto, para o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, não se pode superdimensionar tal fala. "É a postura dela. Ela tem uma posição a respeito disso, mas não é necessariamente o que pensam os outros ministros. Já se sabe que tem ministro que quer colocar isso em pauta de qualquer jeito. Então, ela vai ter que conversar com seus pares, afinal de contas, o Supremo Tribunal Federal não é ela, é o conjunto dos 11 ministros. É preciso ter paciência."
Em fevereiro de 2016, no julgamento do Habeas Corpus 1.262.292, o STF, por 6 votos a 5, acolheu a possibilidade de execução antecipada da pena após julgamento em segunda instância, decisão ratificada em outubro após análise de ações propostas pelo PEN e pela Ordem dos Advogados do Brasil. Desde então, no entanto, a composição da Corte mudou e os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli passaram a defender que a sentença possa ser executada somente após tramitação no STJ.
"A verdade é a seguinte: o grande erro ocorre em função daquela súmula do TRF 4 que diz que, encerrada a instância, dá-se então a execução provisória. Só que essa súmula vai muito além do que a própria jurisprudência do Supremo tem adotado, que é a possibilidade da prisão, mas não necessariamente a sua execução. As pessoas andam muito ansiosas, tem que ter um pouco mais de tranquilidade", avalia Aragão.
"Essa (posição defendida por Mendes e Toffoli) de análise do STJ não altera em absolutamente nada a situação. O que está em jogo é se a execução da pena se dá apenas com o trânsito em julgado da sentença condenatória, como diz a Constituição, ou se ela pode ser executada provisoriamente antes. A questão que vai se colocar é saber se existe execução provisória da pena ou não fora das hipóteses de prisão preventiva que estão no artigo 312 do Código de Processo Penal."
De acordo com o ex-ministro da Justiça, existe uma pressão midiática em torno do caso do ex-presidente. "Infelizmente, a mídia está querendo ver a prisão do Lula como fato consumado. Há muita ansiedade por parte dessa mídia conservadora de querer, com isso, interferir no jogo eleitoral deste ano. Acredito que o Supremo Tribunal Federal também deverá levar isso em consideração, porque não vai ficar bem para o STF entrar também nesse jogo político-partidário", aponta.
"Se a ministra diz que seria apequenar o Supremo discutir isso em função do Lula ser preso ou não, também seria apequenar o STF deixar que esse debate se resolva em termos de incluir ou excluir Lula da corrida presidencial deste ano. Me parece que o Supremo Tribunal Federal, para não desmoralizar ainda mais a instituição do Judiciário – afinal, o julgamento do TRF4 não fez nenhum favor para a reputação do Judiciário –, é bom que mantenha o tom tranquilo e não se deixe levar por provocações."
GGN

Xadrez de como o TRF4 desmoralizou a Justiça brasileira, Luis Nassif

João Pedro Gebran Neto, Leandro Paulsen e Victor Luiz dos Santos Laus, os três desembargadores do TRF4 que julgaram Lula, provavelmente entrarão para a história do direito penal brasileiro.
A sentença proferida, as ginásticas processuais, expuseram de forma definitiva o poder de manipulação de juízes descomprometido com a seriedade da profissão. E, assim como receberam uma batata quente das mãos do colega Sérgio Mouro, entregarão aos tribunais superiores – que irão analisar sua sentença – um frankestein legal, capaz de consumar a desmoralização final dos operadores do direito brasileiros perante a comunidade jurídica internacional.
Partiu do ex-juiz federal, e atual governador do Maranhão Flávio Dino, as análises mais objetivas sobre a pantomima de Porto Alegre.
Diz ele que milhares de páginas de direito penal foram rasgadas.
Peça 1 – os crimes indeterminados
Na falta de provas, o juiz Sérgio Moro havia criado, para criminalizar Lula, a figura do ato de ofício indeterminado – isto é, algum ato que Lula tomou, não se sabe como, onde, mas que existiu, existiu, e não se fala mais nisso.
Seus colegas do TRF4 ampliaram a criatividade e criaram a figura do “crime de corrupção complexo”, do qual ninguém sabe a data, o local, as circunstâncias, mas que existiu, existiu.
Peça 2 – a lavagem de dinheiro
A Lava Jato conseguiu uma criatividade inédita na caracterização do crime de lavagem de dinheiro, diz Flávio Dino: a OAS lava dinheiro dela mesma. Ou seja, para disfarçar a propriedade do tríplex, mantêm-no em seu próprio nome. Moro criou; o TRF bancou.
Peça 3 – o crime de solicitar
Como não se conseguiu provar que houve qualquer espécie de recebimento, mudou-se o núcleo do crime de “receber” para “solicitar”. Para "receber" teria que haver provas da transferência do bem. Para "solicitar", bastou a palavra do delator Léo Pinheiro, cuja pena foi reduzida de 16 anos para 3 anos por conta da contribuição ao processo.
Peça 4 – a tal teoria do fato
De seus tempos de juiz, Flávio Dino se recorda de várias acusações contra magistrados, indicando que assessores negociavam sentenças em salas ao lado da sala do titular. Todos foram absolvidos sob o argumento de que não podiam adivinhar o que ocorria na sala ao lado com auxiliares corruptos.
No entanto considerou-se que um presidente da República, de um país das dimensões do Brasil, tinha que saber o que ocorria com os contratos de uma das estatais.
Peça 5 – a competência da Lava Jato
Não havia suporte para a competência da Vara de Curitiba e do TRF4. Afinal, o apartamento em questão está em Guarujá e não havia correlação nítida com nenhum ato ligado à Petrobras.
Para garantir o controle de Sérgio Moro, os procuradores ligaram o tríplex a três contratos da OAS com a Petrobras.
Na sentença, Sérgio Moro diz explicitamente que não havia relação com os três contratos. Seus colegas do TRF4 colocam a Petrobras de volta no contrato, mostrando inconsistência generalizada das acusações. 
Peça 6 – as sentenças ampliadas
Aqui se entra na parte mais bizarra da sentença, mostrando como um erro inicial, para ser mantido exige mais erros nas instâncias superiores.
Confira a malha em que se enredaram os quatro juízes – Sérgio Moro e os três desembargadores, mais os procuradores da Lava Jato.
Passo 1 - enquadraram Lula no crime de corrupção passiva.
Depois, se deram conta do engano. Corrupção passiva só se aplica a funcionário público, ou a quem estiver exercendo cargo público. Todas as acusações – tríplex, reforma no sítio de Atibaia etc – foram em cima de fatos ocorridos depois que Lula deixou a presidência.
Para corrigir o cochilo, os procuradores puxaram as denúncias para antes de 2010. E Sérgio Moro convalidou.
Passo 2 – as prescrições
Ocorre que o artigo 109 do Código Penal diz o seguinte, a respeito de prescrições de penas:
Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:                (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010).
I - em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;
II - em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze;
III - em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito;
IV - em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro;
V - em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois;
Significa o seguinte: se a pena máxima é superior a oito anos e não excede a doze (como era a pena aplicada por Moro no item corrupção passiva há prescrição se o prazo entre o malfeito e a sentença final superar 16 anos.
Mas há uma cláusula que não foi considerada pela brilhantíssima equipe da Lava Jato. Para réus com mais de 70 anos, o prazo de prescrição cai pela metade, ou oito anos.
Como a Lava Jato imputou a Lula fatos ocorridos em 2009, com mais oito anos dá 2017. E a pena estaria prescrita.
Foi por isso que os três desembargadores fecharam questão em torno da pena de 12 anos e um mês, comprovando definitivamente a marmelada. Com a variedade de itens a serem consideradas na dosimetria (o cálculo da pena) a probabilidade dos três fecharem questão em torno do mesmo valor seria mínima.
Passo 3 – das penas máximas
O crime de corrupção passiva é de 2 a 12 anos. Como réu primário e de bons antecedentes, não se poderia dar acima da pena mínima. O Código Penal tem requisitos e STF (Superior Tribunal de Justiça) e o STF (Supremo Tribunal Federal) já disseram várias vezes que, para se afastar o réu primário da pena mínima, tem que apresentar fatos específicos.
No entanto, os três desembargadores se afastaram da mínima, quase chegando à máxima de 12 anos, para impedir a prescrição, sem apresentar nenhum fato específico.
Peça 7 – os tribunais superiores
Para Flávio Dino, na força bruta empregada pelos três desembargadores reside a fraqueza maior da decisão.
Diz Dino que na comunidade dos intérpretes das leis e constituições reina maioria avassaladora que considera que o julgamento foi “atípico”.
A única exceção são aqueles que acham que foi “atípico” porque os colegas precisavam preservar Sérgio Moro. A intenção, para estes, não seria condenar Lula, mas absolver Moro das excentricidades de sua sentença. Dino considera que trata-se de leitura equivocada: o alvo era Lula, mesmo.
Segundo Dino, o julgamento significou um retrocesso de 300 anos no direito, porque assumindo feição inquisitorial, remetendo aos tempos da Inquisição, nos quais definia-se primeiro a culpa, para depois encontrar o crime.
Independentemente da linha política em jogo, Dino considera que os tribunais superiores terão que dizer se garantem ou não dois direitos fundamentais:
1.     Permitir a prisão de Lula enquanto tramitam recursos contra a decisão do TRF4. É preciso sublinhar diariamente, diz Dino: prisão antecipada tem que ser justificada com razões concretas.
2.     Buscar a aplicação da Lei da Ficha Limpa. Ela não definiu de modo absoluto que qualquer julgamento colegiado induz à inelegibilidade. Quando o direito de concorrer for plausível, com demonstrações de parcialidade das instâncias inferiores, os tribunais superiores deverão conceder liminar, por haver dano irreparável se a pessoa não concorrer.
Sejam quais forem as consequências, Gebran, Paulsen e Laus entram para a história política e do direito brasileiro, como três magistrados que sacrificaram os princípios do direito, o respeito às leis e à sua profissão, em favor de objetivos indignos.
A informação do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, de que não será possível abrir o sistema Drousy, da Odebrecht, é o ponto final na pantomima da Lava Jato.
GGN

Dependência de trajetória histórica do Brasil, por Fernando Costa

Contra os historiadores clássicos, o autor da ‘História da Riqueza no Brasil’, Jorge Caldeira, defende a hipótese de que ‘a colônia portuguesa nas Américas não era um espaço subalterno’ e contava com mercado interno autossuficiente
O livro intitulado “História da Riqueza no Brasil” (Caldeira, Jorge. Rio de Janeiro: Estação Brasil; 2017) traduziria melhor seu conteúdo caso se intitulasse História do Desgoverno do Brasil ou a História Neoliberal do Brasil. Ou mesmo a Autoconstrução do Mercado no Brasil: dos Tupis aos PhDeuses. Já desenvolvi esse argumento em outro artigo-resenha.
Neste, meu objetivo é analisar a metodologia usada por Caldeira na tentativa de provar sua tese de autossuficiência do mercado interno no período 1500-1808 do Brasil colonizado. “A noção de economia de subsistência e a consequente suposição de uma vida econômica restrita aos mínimos vitais foi empregada irrestritamente, no século XX, por economistas e historiadores de todas as tendências para descrever a produção dos povos das Terras Baixas” (p. 24) Esta é a porção a leste dos Andes no continente sul-americano. Quase todos viviam em aldeias autônomas.
O autor alega que apenas no século XX começamos a entender melhor os costumes para contar a história econômica dos governos nativos no atual território do Brasil. Isso ocorreu graças aos estudos dos sistemas de produção econômica e de governo dos indígenas realizados por “importantes intelectuais: antropólogos do porte de Darcy Ribeiro, Roberto da Matta e Eduardo Viveiros de Castro”. Outros indícios permitem aos cientistas contar a história de povos sem escrita.
Para conhecer “os índios antes do Brasil” (título do livro de Carlos Fausto) temos que recorrer às evidências fornecidas pela arqueologia e pela linguística histórica, conhecer as descrições legadas pelos colonizadores e missionários dos séculos XVI e XVII, e estudar as populações indígenas contemporâneas. Será que os sistemas sociopolíticos e cosmologias atuais guardam alguma semelhança com aqueles existentes na época da conquista? Em matéria de demografia e geografia, as dessemelhanças são notáveis: hoje há possivelmente 1/20 da população indígena de então.
Caldeira observa que “essa documentação [que, durante séculos, os historiadores recorreram para contar a história do Brasil] está fortemente enviesada pelas crenças dos escritores, revelando até mais seus preconceitos do que efetivamente dos costumes que procuravam descrever”. Ora, ele padece do mesmo viés com sua crença neoliberal.
Aquele popular aforismo – “a história é sempre a mesma, o que mudam são os historiadores” – expressa uma verdade. Os fatos são interpretados e reinterpretados, ou até mesmo ignorados “ao sabor do freguês”, isto é, em favor da tese a ser defendida.
Por exemplo, mais adiante, Caldeira sequer cita o livro clássico da historiografia brasileira Cultura e Opulência do Brasil de autoria de André João Antonil (1649-1716), que avalia detalhadamente os homens que aqui viviam e as riquezas que o Brasil poderia oferecer a Portugal, preocupando-se em compreender senhores e escravos, agentes centrais da nossa economia e vida colonial. A obra, escrita depois de 25 anos de experiência e observação em solo brasileiro, foi publicada em 1711. Porém, foi em grande parte destruída em cumprimento ao veto e sequestro régio, confisco realizado para evitar exposição das riquezas da colônia à cobiça de outras Nações, responsáveis por saques constantes na costa brasileira. França, Holanda e Inglaterra não poderiam ter o conhecimento desse potencial extrativo. Tornou-se um livro clássico de leitura obrigatória para uma boa formação histórica.
Contra os historiadores clássicos, o autor da “História da Riqueza no Brasil” opta por demarcar seu lugar na historiografia defendendo a hipótese de que “a colônia portuguesa nas Américas não era um espaço subalterno” porque:
1. as atividades econômicas são regidas pelo mercado;
2. a economia apresenta dinamismo próprio;
3. a sociedade é constituída de produtores independentes, tanto pequenos empreendedores como grandes empresários;
4. a escravidão é essencialmente de pequenos proprietários, indistintos do grupo dos produtores independentes;
5. há um domínio financeiro sobre a África (com grandes proprietários, os mais ricos do Brasil, controlando o negócio); e
6. com um ritmo de crescimento maior que o da metrópole arrecadadora.
Argumenta que a norma da divisão entre todos os herdeiros desde o início da colonização no Brasil teve consequências importantes no que se refere ao empreendedorismo. Tanto a aplicação da leitura antropológica dos costumes como os resultados da pesquisa mais recentes – sem citar as fontes – levam a Caldeira chegar a conclusões bastante diversas da interpretação tradicional, que postulava uma estrutura familiar de modelo patriarcal. As relações de gênero dominantes atribuíam à mulher papéis, tais como na sociedade Tupi-Guarani, que iam muito além da submissão.
A regra essencial da cultura Tupi-Guarani continuou observada no Brasil: homens vindos de fora tinham, pela via do casamento, a possibilidade de serem aceitos em um grupo familiar estabelecido. Assim se formou uma sociedade miscigenada principalmente a partir da descoberta do ouro.
Mesmo com a monetização progressiva da economia antes dominada pelo escambo e o maior poder dos homens com dinheiro ou bens para casar, o fiado esteve presente desde o primeiro momento e sobreviveu. Conviveu com a circulação da prata espanhola, que servia de moeda e capital nos dois primeiros séculos, e do ouro no século XVIII. Tomadores de mercadorias fiadas se ligam ao ato de empreender, aventurar, arriscar. Fiar vincula os contratantes por um laço de reciprocidade e confiança. Fiar cria uma rede de crédito informal e/ou não-bancária.
Desse efeito de rede entre os diversos componentes informais emerge um sistema complexo: uma economia garantida apenas pelo costume, pela palavra, pelo “fio do bigode”. Esta esteve “ao largo da lei, ao largo do registro escrito, ao largo dos governos, ao largo das análises” (p. 179).
Agindo com astúcia diante de um governo ávido para arrecadar tributos, o colonizado autônomo conduzia seu empreendimento recorrendo à informalidade e aos costumes desconhecidos pela autoridade régia. Interessava a invisibilidade: o mercado e o lucro que ele gerava permaneciam fora do alcance do governo.
“Os moradores do Brasil governavam-se a si mesmos basicamente de duas maneiras. Em primeiro lugar, pelos costumes gerais (como os casamentos de aliança ou o fiado), que regiam uma sociedade multiétnica, empreendedora e capaz de acumular riqueza. A aplicação parcial da lei escrita, das Ordenações do Reino, assegurou o florescimento de instituições favoráveis ao empreendedorismo. Em segundo lugar, os governos locais [paroquiais] atuavam com grande legitimidade e tinham um nível elevado de adaptação a essa sociedade aberta: as câmaras municipais e o clero secular eram as autoridades mais conspícuas e influenciadas pelos costumes” (p. 180). Para ele, empreendedores eram populares, pois “havia no Brasil um grau de soberania popular maior do que na metrópole” (p.169).
No fim das contas, conclui Caldeira, o governo-geral não atrapalhava demais o crescimento da economia pelas vias informais. “Leis civis como as relativas ao estatuto da terra, a forma de herança ou os direitos da mulher, substancialmente alteradas pelo costume, também favoreciam os empreendedores e o mercado, na comparação com o ambiente metropolitano ou mesmo europeu. Costumes da população como alianças matrimoniais ou o fiado garantiam efetivamente o desenvolvimento diferencial da colônia” (p. 181).
Argumenta que a documentação rala era fortemente marcada por visão de mundo de que a desigualdade era eterna e natural e a riqueza deveria fluir para senhores e nobres. Tal visão não permitia explicar o crescimento econômico superior da colônia em relação à metrópole sem haver exportação (e consequente tributação) que o justificasse. Ficou a impressão da falta de dinamismo econômico, quando a autoridade central não se importava com ele, mas o crescimento acontecia com o apoio de governos locais (câmaras de vereadores com analfabetos como eleitos e eleitores) e costumes diversos.
Na dependência de trajetória histórica da economia brasileira, deduz Caldeira, “os grandes processos nacionais dependiam muito pouco do governo como um todo” (p. 292). Em termos sociais, frutificou a miscigenação iniciada com a aliança oferecida pelos Tupis. Em 1890, o Censo registrou 44% de brancos, 32% de pardos, 14% de negros, 9% de índios. Uma única língua era falada e entendida em todo o território (quase ½ da América do Sul), não fragmentado como o da América espanhola, mas com apenas 641 municípios, em sua maioria litorâneos. Cerca de 82,6% da população era analfabeta. Ela triplicou de tamanho entre 1819, quando existiam 4,4 milhões de habitantes, e 1890, ano em que foram contados 14,3 milhões de habitantes.
Porém, o século XIX como um todo, em que predominou uma Monarquia semiparlamentarista, aliás, como o atual governo temeroso almeja, foi um período de estagnação da economia brasileira e de aceleração da economia mundial. O Império brasileiro não se integrou à essa expansão internacional e o mercado interno não foi mais suficiente para dar dinamismo econômico.
Depois dos decretos liberalizantes de Rui Barbosa em 1890, o governo republicano renunciou ao papel de interventor vigilante na vida econômica e criou as condições legais para que empresários pudessem atuar com liberdade. “Bastou esse ato para que os empresários se libertassem do confinamento de sua atividade à casa (isto é, seus negócios pessoais) e oferecessem os produtos de suas empresas (agora Pessoas Jurídicas legalizadas) no mercado (agora uma instituição capaz de funcionar com apoio da lei). A mudança fez toda a diferença para os industriais e financiadores do sistema de crédito que atuavam na direção do capitalismo” (p. 517).
Esta é a tese que Caldeira pretendia defender: “muito mais desenvolvimento com menos poder central”. Daí justifica seu entusiasmo com a Primeira República, quando “toda a sofisticada tentativa de uma política governamental visando acelerar o crescimento econômico foi concebida no âmbito privado e elaborada inicialmente na sociedade” (p. 520). E seu desalento com a Era do Muro (1930-2017), quando o emprego do governo central como dique nas transações externas permite um crescimento maior que a média internacional em tempos de economia fechada, mas sua manutenção leva a resultados pífios na Era da Globalização.
Ele defende com entusiasmo inaudito o “desencalhe” da Era Neoliberal com a abertura externa de Collor e a privataria tucana. E fica extremamente infeliz com o “reencalhe”, isto é, a mudança do modelo de concessão para o de partilha do petróleo do pré-sal. Como reles neoliberal, deseja que se entregue toda a riqueza brasileira, inclusive a Petrobras, à iniciativa privada, mesmo que essa seja estrangeira. Em tempos de globalização, acha que não faz mais sentido falar em Nação. Isso é coisa de gente que defende o corporativismo, que “luta para sobreviver no poder” em “uma sociedade dominada por costumes igualitários e globalizados”! Onde?! Aqui-e-agora com a brutal concentração da riqueza brasileira nas mãos da casta dos mercadores?!
Fernando Nogueira da Costa - É professor titular do IE-Unicamp. Autor de “Brasil dos Bancos” (Edusp, 2012), ex-vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007). É colunista do Brasil Debate
Crédito da imagem da página inicial: Reprodução Rugendas.
GGN

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Pesquisa aponta que Lula foi condenado injustamente

A condenação do ex-presidente Lula pelo TRF-4 no dia 24 não surpreendeu, não custa repetir. Seguiu-se o modelito recortado em Curitiba com um adendo ou dois a mais, quais sejam o aumento da pena, por unanimidade dos três julgadores, mais a possibilidade de prisão imediata do ex-presidente, tão logo julgados os embargos declaratórios – a menos que a defesa de Lula consiga o efeito suspensivo da pena, o que não parece tão fácil dado o cerco a que estão submetendo o ex-presidente.
Não deixou de surpreender também a predominância da Teoria do Domínio do Fato, usado pelo relator para justificar o aumento da pena de nove anos e seis meses para 12 anos e um mês, numa estratégia, ao que consta, para evitar a prescrição do julgado. O que também é discutível, como de resto todo esse processo é discutível e polêmico, menos para a Globonews que o tem como o mais santificado de todos os que têm passado pela justiça brasileira. A propósito, como é indisfarçável a crença dos comentaristas da Globonews na lisura de todo esse processo, tido agora como se fosse um prolongamento do mensalão de triste memória. Ora, não há a menor visão crítica do que se passou em Curitiba e Porto Alegre, sequer a equidistância se exige do comentarista ao abordar o assunto em pauta. Não se discutiu e nem se discute o que pode ter sido, por exemplo, um excesso de zelo de algum dos desembargadores – cujos nomes não vão entrar nesse texto, por desnecessário – nem a deselegância de não terem sequer levado em conta a sustentação oral do advogado Cristiano Zanin, ao menos para contestar um ponto ou outro da defesa. Não, não era necessário. Os votos estavam prontos, a decisão do relator foi obedecida por todos, portanto, por que perder tempo em ser elegante com a defesa?
Na verdade, deu-se o contrário: partes da sentença condenatória do juiz de primeiro grau, Sérgio Moro, foram lidas e relidas varias vezes ao longo do julgamento, o que também não chegou a ser uma novidade, desde que o presidente do TRF de Porto Alegre, Thompson Flores, antes mesmo de ler a sentença de Moro, ao ser tornado pública, a considerou um primor, irretocável. Era a senha para a condenação que viria a seguir, com o agravamento do aumento da pena e a possibilidade da prisão do ex-presidente, esgotados os recursos, lá mesmo no âmbito do TRF-4. Tudo isso significa dizer que a rigor o julgamento não trouxe novidades de maior monta, apenas dificulta a caminhada de Lula e do PT para que o ex-presidente volte a governar o país. Quando eu disse, no último texto aqui publicado, que o juiz era o réu, deu-se o que se previa: o juiz foi absolvido e o réu de fato foi condenado. Como estava escrito.
A propósito, como as pessoas que acompanharam não apenas o julgamento como a saga do ex-presidente viram tudo isso? Nesse sentido, é oportuna a primeira e inédita consulta que o Instituto Quaest, de Belo Horizonte, fez aos brasileiros que têm conta no Facebook, atingindo nada menos de 310 mil pessoas entre os dias 24 e 25 de janeiro agora, com perguntas formuladas pelo Vox Populi em survey face-a-face. Das 310 mil pessoas, 2.980 foram sorteadas aleatoriamente, aponta o relatório, para compor uma amostra representativa do eleitorado brasileiro. Usando dados oficiais do IBGE e do Facebook, o Quaest ponderou a amostra para garantir representatividade de atributos como sexo, idade e região. De forma que o resultado final estima as opiniões e atitudes do eleitorado brasileiro proporcional ao encontrado fora do Facebook.
O primeiro dado da pesquisa refere-se ao nível de conhecimento do que o TRF-4 estava julgando e mostra que 93,5 dos pesquisados sabiam do que se tratava e apenas 6,5 por cento não sabiam. Ao perguntar se na opinião do entrevistado o TRF-4 agiu certo ou errado ao condenar Lula, 3,1 por cento não souberam responder, 42 por cento disseram que agiu certo e 54,7 por cento sentenciaram que agiu erradamente. Perguntado se o juiz Sérgio Moro, autor da primeira condenação, provou ou não que o tríplex era mesmo de Lula, 4,3 por cento não souberam opinar, 39,0 responderam que Moro conseguiu provar e 56,6 por cento disseram que ele não conseguiu provar que o apartamento é de Lula.
O Quaest quis saber se Lula recebe o mesmo tratamento da justiça que outros políticos, como Michel Temer e Aécio Neves. 3,3 por cento não souberam opinar, 37,2 por cento acham que a justiça não trata Lula de forma  mais dura e 59,5 responderam que a justiça trata sim Lula de forma mais dura. Se Lula cometeu mais erros ou acertos quando governou o pais, os entrevistados do Quaest disseram: 3,3 por cento não opinaram, 37,4 responderam que ele errou mais do que acertou e 59,3 por cento disseram que ele cometeu erros, mas fez muito mais coisas certas do que erradas em benefício do povo e do país. Nada menos de 42,9 por cento dos consultados, diante da condenação e da inelegibilidade momentânea do ex-presidente, disseram que Lula não deveria se candidatar a presidência da República, ao passo que 55,7  por cento responderam que deveria poder ser candidato em 2018. Cerca de 1,4 por cento não souberam opinar. A consulta inédita de certa forma reflete o que as pesquisas eleitorais vêm mostrando ao longo de todo o ano passado, quando os mais diversos institutos de pesquisas, como o Ibope, o Datafolha ou o Paraná,  vêm apontando a liderança e o crescimento do ex-presidente na preferência do eleitorado – uma das razões, certamente, do resultado emanado tanto de Curitiba como de Porto Alegre, que coloca Lula hoje na condição de inelegível e sujeito à prisão, a despeito da decisão do PT de manter a sua candidatura como forma de legitimá-la na consciência popular e de enfrentar resultados judiciais que parecem feitos para tirar o ex-presidente do páreo.
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O "Pobre de direita" é o bode expiatório perfeito, por Ion de Andrade para o GGN

Tradicionalmente a esquerda política se entende como portadora da visão política do povo e entende que a eventual não adesão ideológica desse povo aos valores políticos que o beneficiariam como decorrente de uma alienação política que provem da própria dominação. Já dizia Marx que as ideias dominantes numa sociedade são as ideias da classe dominante, razão porque o voto dos oprimidos, pela própria razão de que são oprimidos é comumente um voto conservador. A “alienação política” é parte integrante do problema que deve ser solucionado.​
Historicamente a esquerda se entende, portanto, como força emancipadora, cuja missão é justamente a de enfrentar a dominação política da direita e de contribuir para a emancipação do povo, entendido aliás como o protagonista das transformações sociais.
Teoricamente um golpe de Estado, como o atual, é a ocasião incontornável para a compreensão de fenômenos difíceis de serem percebidos em tempos de normalidade política, fenômenos que, no entanto, poderão ter contribuído para viabilizá-lo, razão porque a “autocrítica” não é nenhum tipo moderno de haraquiri e sim um componente importante do processo de aprendizagem política, cujo principal benefício é o de evitar que o erro cometido se repita.
Tudo muito simples, exceto se tivermos alguém em cima de quem jogar a culpa, papel que ocupa a figura mitológica do pobre de direita, o bode expiatório perfeito.
É bom nos precavermos porque o fascismo, que produz uma espécie de redemoinho que termina por envolver contingentes gigantescos da sociedade, muito além do que poderíamos imaginar, é um fenômeno que envolve sempre a satanização de um terceiro, responsabilizado, então, por todos os males da sociedade. Hoje a esquerda está sendo satanizada, agora o mitológico “pobre de direita”.
É fato histórico muito conhecido que, desde sempre, a direita no Brasil responsabiliza e pune os pobres, sobretudo os negros, pelas mazelas sociais as mais diversas, como a violência, as más condições de saúde e higiene, a feiura das ruas, a ignorância, etc.
Atenção, o fascismo, nos estende a sua ideologia totalizante e totalitária a todos e essa se amolda a ambientes culturais bastantes variados, como um camaleão que, sem perder a forma, toma a cor de onde está.
Vamos reconhecer também que diferentemente das camadas médias mais cerebrais, o povo se politiza pela experiência vivida do projeto de sociedade e se despolitiza por sua ausência. Os nordestinos, por exemplo, são leais a Lula em virtude de que o a experiência do Projeto de Sociedade foi mais clara para eles que saíram da miséria mais profunda aos milhões.
Em contraste com o caráter cerebral da politização da classe média, a politização do povo é visceral. Essa politização não é inferior por não ser cerebral, ao contrário, ao que parece ela tende a ser mais profunda e mais difícil de ser revertida pelo fato de que não está sujeita ao convencimento das narrativas circenses, pois fala de uma verdade experimentada e vivida e entende que o discurso que não a reconhece é que é manipulatório e mentiroso. A esquerda das camadas médias vive um universo bizantino onde as ideias são fugidios pirilampos.
Tempos de autocrítica, onde falhamos? Entendo que falhamos em não ter oferecido a contingentes ainda mais expressivos do nosso povo a experiência visceral que os governos Lula e Dilma ofereceram aos nordestinos.
O que significa isso? Que jamais poderíamos sob a alegação da responsabilidade estadual ter lavado as mãos da humanização das polícias que continuam matando negros. Que jamais poderíamos ter negligenciado com a desumanização do sistema carcerário onde se encontram presos jovens sem culpa formada muitos efetivamente inocentes em convivência impiedosa com os criminosos mais violentos, locais onde experimentam o inferno. Significa que deveríamos ter envidado os nossos melhores esforços para aniquilar a violência nas periferias onde nasce, vive e morre o nosso povo. Que deveríamos ter com maior vigor incorporado essas periferias à contemporaneidade, ao acesso à cultura, à estética urbana, ao esporte e ao lazer; que deveríamos ter assegurado a essas comunidades condições dignas para velar seus mortos, pois muitos ainda têm que ser velados em casa, na sala de 6 metros quadrados, dentre inúmeras outras coisas.
Quando sinalizo isso entre amigos, é comum que haja reações, como se isso significasse que não fizemos nada. Não se trata disto. Significa que erramos.
É evidente, por exemplo, que essa experiência visceral, juntamente com a cerebral, foi experimentada por milhares de jovens nos IFs pelo Brasil a fora e eles evoluíram como os cidadãos altivos que deveriam ser. É evidente que a renda melhorou. É evidente que a desnutrição infantil quase desapareceu. Sei de tudo.
Mas eu sei também que a mãe que teve o seu filho injustamente preso e que lá na prisão vive o impublicável, ou aqueles que continuaram tendo dificuldades para obter condições mínimas de dignidade numa vida pesada e difícil para conseguir um internamento, uma cirurgia ou um medicamento, talvez não tenham conseguido enxergar, apesar do muito que foi feito, as mudanças qualitativas capazes de produzir o salto de consciência que os nordestinos foram capazes de dar, porque ali esse fenômeno libertário se exprimiu visceralmente (comida na mesa) com maior clareza relativa provavelmente porque as condições de miséria eram piores.
O “pobre de direita” é antes de tudo uma chaga que nos responsabiliza. É ele, na verdade, em sua terrível situação de desamparo e inconsciência que aponta para nós.
Do GGN

Lula segue no confronto mesmo condenado por uma farsa ou a derrota histórica, por Aldo Fornazieri para o Jornal GGN

A condenação de Lula por unanimidade pela turma do TRF-4 que o julgou, embora previsível, representou uma grave derrota para o ex-presidente, para o PT  e para as forças progressistas que defendem a democracia, a justiça e os direitos sociais. As ilusões que alguns alimentavam de que pudesse haver um dois a um ou até uma absolvição se esfumaçaram no céu tormentoso de Porto Alegre. Essas ilusões perdidas devem servir de lição, indicando que, embora se deva lutar nos tribunais superiores pela anulação do processo condenatório e pelo direito de Lula ser candidato, não se deve ter fé nos mesmos, pois amplos setores do Judiciário estão comprometidos com o golpe e com a interdição de qualquer ameaça que possa significar a vitória de forças comprometidas com os interesses do povo.​
É preciso entender que o Brasil está sendo governado por uma canalhocracia de terno e toga, onde os segundos protegem os interesses dos primeiros - os predadores do mercado - e onde os primeiros garantem ganhos extraordinários aos togados, aos procuradores e aos grandes escritórios de advocacia, que constituem um sistema jurídico nacional mafioso.  A luta central, nos tribunais e nas ruas, deve ser pela anulação do processo, pois ele viola o Artigo 5º da Constituição, já que Sérgio Moro não é juiz natural para julgar um processo que, como ele mesmo reconhece na sentença, e que os desembargadores do TRF-4 ignoram, o caso do triplex nada tem a ver com a Petrobras e com a Lava Jato. Lula precisa nomear outros defensores, que tenham renome e reputação, pois a sua defesa em Porto Alegre foi desastrosa.
A luta mais importante, no entanto, precisa ser travada nas ruas, com mobilizações, atos, caravanas, com bloqueios de rodovias e avenidas e com a construção de uma greve nacional. É claro que existe uma debilidade organizativa e frágil capacidade mobilizadora do PT, dos sindicatos e das forças de esquerda em geral. Isto ficou patente durante todo o processo de derrubada da Dilma e foi reafirmado com a condenação de Lula. Com exceção de Porto Alegre, não ocorreram atos significativos em outra cidades.
Mas não existe outra saída: a força organizada precisa ser constituída no próprio processo de mobilização. Mais do que isto. É preciso ter direção e comando. Das reuniões e plenárias de que participei a convite de militantes petistas, no Rio Grande do Sul e em São Paulo,  foi possível constatar que a militância se recente de orientação, direção e comando. Não há um sistema eficaz de comunicação entre a direção e as bases. A rigor, a militância continua como um exército sem generais, tal como ocorreu no processo do impeachment. E a direção do PT continua como um comitê de generais de caserna sem exércitos. Não há um estado maior, um comitê de crise, uma situação de prontidão permanente para enfrentar esse momento.
O maior risco que Lula corre é o de ser abandonado e trocado pelos interesses eleitorais. Não manter a candidatura de Lula até o fim, mesmo que preso, significa abandoná-lo à mercê de seus inimigos. Significa deixar que crucifiquem o seu significado e a sua força simbólica, significa enterrar-lhe o punhal da covardia e da traição em seu coração. Permitir isso significa, acima de tudo, apunhalar a democracia e povo.
Manter a candidatura Lula até o fim é a única forma de confrontar o golpe, de fazer com que ele e seus áulicos do Judiciário enfrentem o dilema de manter Lula candidato ou de validar uma eleição ilegítima, com a manutenção da instabilidade política por mais quatro anos. Os progressistas e as esquerdas precisam superar a síndrome das derrotas históricas através de uma prática e de uma pedagogia do confronto. Ninguém nunca respeitará as esquerdas se elas não forem capazes de impor medo aos seus inimigos. Lula não pode ser o "Lulinha paz e amor". Deve ser o leão, capaz de afugentar as hienas e os chacais que o querem política e simbolicamente destruído.
Dada a fragilidade e a tibieza do PT e das demais forças de esquerda, Lula deve ser o general de sua própria salvação. Deve ter o destemor de um Horácio Cocles, sabendo que a salvação de uma república do povo brasileiro pobre depende dele, acima de tudo. Lula não pode ser um Jango que se refugia no Uruguai sem lutar. Se ele conseguir trazer o povo que o apóia para as ruas, para o campo das batalhas, poderá derrotar os inimigos da república popular. Se for derrotado lutando, estará criando um novo paradigma para as forças progressistas. O paradigma da coragem e da virtude do combate, o paradigma do enfrentamento da falsa unidade, do confronto com uma elite que derrubou as frágeis estacas da democracia, de uma elite que odeia e esmaga os pobres.
É legítimo desobedecer juízes que violaram a lei
A desobediência às decisões de Moro, do TRF-4 e, eventualmente, de Tribunais Superiores, é legítima e legal, pois eles violaram as leis e a Constituição ao transformarem a 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba em tribunal de exceção, ao condenarem sem prova ao violarem o princípio constitucional de em dubio pro reo, substituindo-o pelo princípio inconstitucional da "dúvida razoável". Se restar alguma decência aos Tribunais Superiores, anularão o processo contra Lula. Ao desobedecer esses juízes e  desembargadores se estará obedecendo a lei,  pois a vontade deles não pode ser substituta da lei. Ao assim querem, se instituíram como tiranetes do Judiciário. Moro e os desembargadores não têm moral para se arrogarem paladinos do combate à corrupção. Em primeiro lugar, porque não é esta sua função. Em segundo lugar, porque recebem acima do teto constitucional, sendo este privilégio uma forma de corrupção.
A desobediência civil à vontade arbitrária dos tiranetes do Judiciário se alicerça no pensamento liberal, desde John Locke. Ele afirmou, categoricamente, que um homem "não pode submeter-se ao poder arbitrário de outro". Ao se transformar a Vara Criminal de Curitiba em tribunal de exceção e, ao juiz Moro escolher Lula como réu a ser julgado por ele, além de violar o Artigo 5º da Constituição, também se violou o princípio liberal escrito por Locke de que o poder "está na obrigação de dispensar justiça e decidir dos direitos dos súditos mediante leis promulgadas, fixas e por juízes autorizados, conhecidos". Lula foi julgado segundo "leis" nem autorizadas e nem conhecidas e por um juiz que, pelo princípio da naturalidade, não estava autorizado, quebrando-se assim a objetividade da competência jurisdicional.
Além de combater os tiranetes do Judiciário e defender Lula, duas outras lutas precisam ser travadas. A primeira, consiste em continuar o combate ao governo iníquo, cínico e ilegítimo de Temer. Governo que degrada a vida do povo e envergonha o Brasil no mundo. É preciso bloquear a continuidade do desmanche social, cultural e nacional que esse governo vem promovendo.
Em segundo lugar, Lula, os progressistas e as esquerdas precisam definir propostas e ideias que representem um novo Brasil. Trata-se de propor um programa que expresse uma revolução democrática. Não basta, apenas, propor políticas sociais focalizadas para enfrentar os graves problemas de pobreza e da falta de direitos. É preciso propor um programa reformador, capaz de remover as condições estruturais da pobreza, da desigualdade, da injustiça e da inaptidão do Brasil para o desenvolvimento sustentável - desenvolvimento humano, educacional, ambiental, científico, tecnológico e industrial.
As forças progressistas e Lula precisam mostrar que serão capazes de resolver os problemas cruciais que mantêm o Brasil preso às iniquidades humanas, ao atraso no seu desenvolvimento e a uma presença marginal no mundo globalizado. A apresentação desse programa tornará o combate ao golpe mais convincente e eficaz, pois as forças conservadoras, dado o seu caráter predatório, são incapazes de apontar qualquer caminho de futuro para o Brasil.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
 GGN

domingo, 28 de janeiro de 2018

Se depender dos ministros do STF, TRF-4 não prende Lula

Se depender dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não será preso após o julgamento do último recurso a que ele tem direito perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, conforme prescreveram os desembargadores desse mesmo tribunal na sentença que o condenou a 12 anos e 1 mês de prisão em regime inicialmente fechado. Isso porque não existe nenhuma decisão com força vinculante sobre a matéria que obrigue o Judiciário a decidir em determinado sentido, e as posições dos próprios ministros têm variado nos julgamentos mais recentes sobre a matéria.
Votos dos ministros do STF indicam que Lula não será preso após julgamento do último recurso no TRF-4. Instituto Lula
A questão sobre o momento jurídico em que Lula poderá ser preso depende do entendimento de cada juiz sobre o momento do início de cumprimento da pena. A questão está prevista no artigo 5º alínea LVII da Constituição que diz que "toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarada culpada por sentença transitada em julgado". E na legislação infraconstitucional é o Código de Processo Penal em seu artigo 283 que trata da matéria: "Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva". 
Na interpretação desses dois preceitos é que o Supremo Tribunal Federal encara a chamada execução antecipada da pena desde, pelo menos, 2009. Prevaleceu então a tese de que a Constituição, ao consagrar o princípio da presunção de inocência, veda a execução da pena antes dos recursos cabíveis nos tribunais superiores.  
A virada teve início em fevereiro de 2016, quando o Plenário acompanhou voto de Teori Zavascki no sentido de que a análise de provas e de materialidade se esgota com a confirmação da condenação por um tribunal de segundo grau, cabendo ao STJ e ao STF, a partir daí, apenas as questões de direito, em recursos que podem ser analisados durante o cumprimento da pena, sem que isso afete o princípio constitucional da presunção da inocência. No julgamento do HC 1.262.292, seis ministros acompanharam o relator, Teori Zavascki, formando a maioria: Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Ficaram vencidos Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello. 
A matéria voltou a ser abordada pelo Plenário do Supremo em duas oportunidades depois disso, mas a sólida maioria firmada então não se confirmou nas votações seguintes. Já na votação das ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, ambas propostas pela Ordem dos Advogados do Brasil e julgadas em outubro de 2016, o ministro Dias Toffoli mudou sua posição. 
Para ele a execução da pena pode ser dada antes do trânsito em julgado da sentença, mas só apenas quando esgotados os recursos ao Superior Tribunal de Justiça, por entender que o recurso especial "também se presta a corrigir ilegalidade de cunho individual". Já em novembro de 2016, ausente a ministra Rosa Weber, o resultado se repetiu no julgamento do Agravo Regimental 964.246.
Em 2017 o tema voltou ao debate no julgamento do Habeas Corpus 142.173 na 2ª Turma, em que Gilmar Mendes mudou sua posição, antes favorável à execução após a confirmação da condenação em segunda instância, e aderiu à posição de Dias Toffoli, admitindo que a pena só comece a ser cumprida após o esgotamento dos recursos ao STJ.
Durante o ano, o ministro Alexandre de Moraes, que não havia participado dos julgamentos anteriores, pôde manifestar sua posição ao encarceramento após condenação firme em segundo grau, ao julgar monocraticamente o HC 148.369.
Ultimamente, a ministra Rosa Weber, ressalvando sua posição pessoal contrária à execução pessoal, aderiu ao grupo que defende a posição contrária no Plenário. Fez isso depois que o tribunal decidiu não conceder liminar em ação que pedia a declaração de constitucionalidade do trecho do Código de Processo Penal que proíbe a prisão antes do trânsito em julgado e usou essa decisão para aplicar o entendimento num recurso extraordinário, por meio do Plenário Virtual.
Temos assim que a maioria antes consolidada em torno da execução após condenação firme em segunda instância reduziu-se de sete para cinco votos: Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia. A tese que a execução pode ocorrer após condenação pelo STJ conta dois votos: Dias Toffoli e Gilmar Mendes. E continuam ferreamente contrários à execução antes do trânsito em julgado da sentença quatro ministros: Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello. 
Na 2ª Turma, que pode ser o foro para julgar eventual recurso de Lula contra a ordem de prisão anunciada pelo TRF-4, apenas o ministro Edson Fachin defende essa posição. Gilmar Mendes e Dias Toffoli votariam para Lula ser preso só depois de julgado pelo STJ, enquanto Lewandowski e Celso de Mello, apenas depois de a sentença transitar em julgado.
Do Conjur

sábado, 27 de janeiro de 2018

A democracia risonha e franca da PGR Dodge, por Luis Nassif

Cena 1 – de onde nada se espera
Nos últimos dias, o dito comum “de onde nada se espera, nada vem” foi desmentido.
Em Londres, a Procuradora Geral da República Raquel Dodge, de quem se esperava algo, dizia, sobre a democracia brasileira: "O Brasil experimenta o período de mais longa estabilidade institucional e democrática desde a proclamação da República. As instituições brasileiras estão funcionando bem. Há uma fundamentação que é contestável e a possibilidade dessa contestação tem sido livremente garantida e exercida no Brasil", disse (https://goo.gl/dGFqE20). Em Davos, Michel Temer ensaiava o dueto: “As instituições no Brasil estão funcionando e isso aumenta a confiança no Brasil”.
Segundo a grande pensadora política Raquel Dodge, democracia é o direito que todos têm de espernear contra as decisões que são tomadas por poucos, contra o direito de todos de escolher. Depois de um Rodrigo Janot, o MPF não merecia uma chefia tão anódina. Ou será que merece?
Em Brasília, o Ministro da Justiça Torquato Jardim, de quem não se esperava nada – menos pela biografia, mais por ser Ministro de Temer – suspendeu a promoção da delegada Érika Merena. Inocentada por um inquérito camarada da Polícia Federal para apurar abusos cometidos no caso da Universidade Federal de Santa Catarina. Exigiu que seja ouvida a família do Reitor Luiz Carlos Cancellier, levado ao suicídio pela truculência da delegada. Mais que isso, ordenou à Polícia Federal que não seja tomada nenhuma medida contra o ex-presidente Lula até que o caso chegue ao STF (Supremo Tribunal Federal).
Coloque-se uma figura pública em uma sinuca. Estar em Londres, representar o Brasil, não poder falar contra as instituições, mas não poder ignorar as perguntas sobre impeachment e sobre o julgamento de Lula; principalmente, não ignorar a enxurrada de críticas da comunidade jurídica institucional à partidarização do Poder Judiciário.
Pela resposta encontrada, avalia-se o grau de esperteza ou a dimensão política da pessoa. Raquel Dodge mostra, com sua resposta, a razão de se encaramujar e se encolher no cargo: não sabe o que dizer e como se comportar..
Cena 2 – os componentes do Estado de Exceção
Vamos ver na prática como funciona a democracia enaltecida pela doutora  Raquel Dodge.
Na Papuda, o juiz Ademar Vasconcellos quase provocou a morte de José Genoíno, por recusar atendimento médico em uma crise cardíaca. O Ministério Público Federal (MPF) denunciou seu descaso. Louve-se o procurador que tomou a iniciativa. Mas foi exceção.
No Rio de Janeiro, mais de três dezenas de funcionários de carreira do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) foram conduzidos coercitivamente à Polícia Federal, tiveram bens bloqueados, equipamentos apreendidos, foram expostos em todas as redes de TV sem o menor sinal de culpa apurada. Os autores da façanha foram o juiz Ricardo Leite e o procurador da República do Distrito Federal Anselmo Lopes, com interpretações imbecis sobre financiamento à exportação e diplomacia comercial.
Em Brasília, o juiz Almir Costa de Oliveira autorizou a Polícia Civil a aplicar corretivos, ou seja, métodos de tortura, em menores de idade.
Em Florianópolis, 120 policiais da PF de todo o Brasil foram convocados para conduzir coercitivamente seis professores da Universidade Federal de Santa Catarina, impondo humilhações que acabaram provocando o suicídio do reitar Luiz Cancillier. Responsáveis: a juíza federal Janaína Machado e a delegada da PF Érika Merena. O abuso foi avalizado pelo procurador da República. Um inquérito interno da PF concluiu que a colega Erika seguiu os manuais e liberou sua promoção. Que foi suspensa pelo Ministro Jardim. A PGR não se preocupou em apurar os abusos cometidos.
Por conta da total impunidade do movimento anterior, a PF voltou a invadir um campus universitário, desta vez a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apesar da posição contrária de um procurador da República corajoso. Os responsáveis: a juíza Rachel Alves de Lima e o delegado da PF Leopoldo Lacerda. As prerrogativas das universidades foram ignoradas pela PGR.
Antes disso, a Polícia Civil de São Paulo invadiu a Escola Florestan Fernandes, do MST, aterrorizou crianças e velhos. O responsável foi o delegado Adriano Chohfi, do Paraná, que seguiu incólume.
No Rio de Janeiro, a Polícia Federal atende a uma ordem do juiz Sérgio Moro e conduz o ex-governador Sérgio Cabral com algemas e correntes no pé. Há um alarido, seguido de um jogo de cena: o juiz pede explicações ao responsável pela operação – Delegado da Lava Jato Igor de Paula -, o delegado dá uma explicação qualquer. E fica tudo por isso mesmo. Não se ouve um pio da PGR.
Antes disso, em São Paulo, 18 rapazes e moças resolvem espernear contra o golpe do impeachment. Um militar infiltrado leva-os a uma armadilha. Agora, os 18 estão sendo processados. Responsáveis: a juíza Cecília Pinheiro da Fonseca e o promotor estadual Fernando Albuquerque. Os bravos Procuradores da República que acorreram em defesa dos meninos, quando levados para a delegacia em uma verdadeira operação militar, foram admoestados pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por invadir a competência dos colegas paulistas, em defesa da integridade de jovens do outro lado. E nenhuma defesa da parte da PGR.
O Instituto Lula é sumariamente fechado pela decisão dos mesmos juiz Ricardo Leite e procurador Anselmo Lopes.
Em São Bernardo do Campo, o Museu do Trabalhador é criminalizado porque, em determinado momento, foi taxado de Museu de Lula.
Agora, a Justiça tenta proibir palestra de Lula no exterior, exigindo seu passaporte devido à sentença no TRF4, mesmo não tendo nenhuma relação nem com o processo nem com o TRF4. Os responsáveis são os de sempre: juiz Ricardo Leite e procurador Anselmo Lopes, indicando atitude persecutória.
A PGR não vai se pronunciar nem agora, nem quando os grandes temas civilizatórios chegarem ao STF (Supremo Tribunal Federal). Enfim, uma escolha à altura da dimensão de Michel Temer.
Cena 3 – a síndrome do guarda da porta do presídio
O que ocorre hoje, no Brasil, é a disseminação do Estado de Exceção através da atuação, na ponta, de juízes e procuradores, convalidade pelos esbirros de autoritários e pela timidez dos legalistas. Trata-se de uma lógica conhecida, especialmente em períodos ditatoriais.
Quebram-se os limites de atuação dos poderes. Há uma invasão de um poder por outro – apesar do país da doutora Raquel não ter dessas coisas.
Na base, os abusos são estimulados pela falta de liderança e de comando da ponta. Jovens juízes, jovens procuradores, bem remunerados, podendo ser o poder de fato na sua comunidade, é uma fórmula que tende a pegar os imaturos e a se espalhar pelas respectivas corporações.
Consolida-se a imagem do juiz punitivo, o sujeito que condena em qualquer circunstância. Cria-se a ideologia de que os grandes crimes nascem dos pequenos. E toca a punir o roubo insignificante, a criminalizar a energia política do jovem, a perseguir as ideias contrárias. Nesses tempos de opinionismo desvairado na Internet, toca a definir o que pode ou não pode em recintos públicos. E, nos quatro cantos do país, a disseminar a imagem do juiz e do procurador que, antes de respeitados, precisam ser temidos.
É um quadro dantesco, que inibe os maduros, os que têm consciência dos limites de sua atuação, expondo qualquer cidadão ao arbítrio de um poder sem referências. Porque a referência do Judiciário é uma Ministra que fala e não diz; e do MPF, uma PGR que nada fala, nada diz.
PS - O desembargador Vitor Laus, filho de preso político, foi o autor da acusação mais circular do julgamento: "Quem responde por crime tem que ter participado dele. E, para ter participado dele, alguma coisa errada ele fez". É a lógica jurídica que impera no reino de fantasia da doutora Raquel.
Do GGN