No artigo anterior – “Xadrez
do golpe na era da hipocrisia” – descrevemos as quatro etapas dos golpes
políticos:
01. A fase da preparação.
02. A catarse.
03. A institucionalização do golpe.
04. A era da hipocrisia, quando se
abandonam de vez os pruridos e as encenações de legalidade.
Peça 1 – o direito
penal do inimigo
Os episódios da última semana significaram a entrada no
quarto período, o equivalente ao AI-5 do golpe militar, o momento em que o
pacto do golpe se mostra eleitoralmente inviável pela ausência de um nome
competitivo para as eleições presidenciais, e radicaliza-se o direito penal do
inimigo. E tudo dominado por uma cegueira ampla, de quem não percebe as hordas
bárbaras se aproximando celeremente da cidadela.
O sinal mais agudo foi a denúncia da Procuradora Geral da
República (PGR) Raquel Dodge pedindo a aposentadoria compulsória do
desembargador Rogério Favretto - que ousou um HC em favor de Lula, depois da
juíza de execução não responder a um pedido da defesa. Foi uma atitude mais
significativa do que as posições previsíveis de Laurita Vaz, do STJ (Superior
Tribunal de Justiça), defendendo a insubordinação de Sérgio Moro contra o HC de
Favretto.
A postura de Dodge libera qualquer juiz ou procurador para a
caça aos “inimigos”, independentemente de suas prerrogativas constitucionais,
mantendo-se a blindagem dos aliados.
Cindiu-se definitivamente a Justiça entre o direito penal do
inimigo e dos amigos.
Peça 2 – o direito
penal dos amigos
Para entender o direito penal dos amigos, deve-se retroceder
até 2016, quando o ex-PGR Rodrigo Janot valeu-se da parceria com a
revista Veja para anular a delação de Léo Pinheiro, presidente da
OAS, que pegava em cheio Geraldo Alckmin, José Serra e Aécio Neves.
Na época, a colunista Mônica Bérgamo já havia identificado a
estratégia a ser adotada para livrar os próceres tucanos.
A revelação feita pela Odebrecht
sobre dinheiro de caixa dois para o PMDB, a pedido de Michel Temer, e para o
tucano José Serra (PSDB-SP) tem impacto noticioso, mas foi recebida com alívio
por aliados de ambos. Como estão, os relatos poupam os personagens de serem
enquadrados em acusações mais graves, como corrupção e formação de quadrilha.
EM CASA
Contribuição não contabilizada pode
ser enquadrada como crime eleitoral, de punição branda e chance mínima de
resultar em prisão.
CONTA MAIS
Há, porém, uma pedra no caminho: a
força-tarefa da "operação lava jato", que não aceita a versão de contribuições
desinteressadas para campanhas eleitorais via caixa dois. Os procuradores
insistem na revelação de contrapartidas, o que enquadraria a doação dos
recursos em propina pura e simples.
PROCESSO DINÂMICO
Por isso, a delação que envolve Temer
e Serra pode ainda sofrer alterações.
A delação de Léo Pinheiro atingia Lula, com a história
do triplex, mas muito mais José Serra e Geraldo Alckmin com as obras do
Rodoanel e do Metrô, e Aécio Neves, com a Cidade Administrativa, comprometendo
a versão do caixa 2.
No caso do tríplex, houve a necessidade de um amplo
contorcionismo para ligar as reformas a contratos específicos da Petrobras, que
é uma empresa de capital misto com gestão própria. No caso dos governadores,
não haveria dificuldades maiores, porque todas as obras estavam sob controle
direto dos governos de Estado.
A maneira como o PGR Rodrigo Janot trabalhou para a delação
não ser aceita é um dos clássicos da manipulação midiática do período, conforme
o GGN revelou na reportagem “Xadrez da
dança dos lobos de Janot e Gilmar para livrar Serra”.
A delação de Pinheiro caminhava normalmente. No meio do
caminho, a revista Veja publicou uma
reportagem dizendo que a delação insinuava comportamento comprometedor do
Ministro Dias Toffoli.
Era uma reportagem fake, similar ao suposto grampo da
conversa entre o Ministro Gilmar Mendes e o ex-senador Demóstenes Torres, no
qual ambos trocam mesuras e elogios recíprocos.
Segundo ela, em uma conversa informal com Leo Pinheiro,
Toffoli havia mencionado que sua casa sofria com problemas de vazamento.
Pinheiro teria sugerido uma empresa para resolver a questão. Depois do trabalho
feito, indicou técnicos para conferir se as infiltrações haviam sido
corrigidas. E só.
Com base nessa bobagem, Janot ordenou o cancelamento da
delação. Na edição seguinte, Veja contava:
VEJA teve acesso ao conteúdo integral
de sete anexos que o procurador-geral decidiu jogar no lixo. Eles mencionam o
ex-presidente Lula, a campanha à reeleição da presidente afastada Dilma
Rousseff e, ainda, dois expoentes do tucanato, o senador Aécio Neves e o
ministro José Serra. A gravidade das acusações é variável. Para Lula, por
exemplo, as revelações de Léo Pinheiro são letais.
Pinheiro não apresentou um documento sequer comprovando a
transferência do tríplex para Lula. Mas comentava-se, entre advogados que
atuavam no caso, que havia o relato de pelo menos um depósito na conta de
Verônica Serra, filha de Serra. Não apareceu na reportagem
da Veja. Nem posteriormente.
Para justificar a anulação, Janot acusou os advogados da OAS
de terem vazado parte do pré-documento, com o intuito de pressionar para que a
delação fosse aceita. Se havia resistências, era em relação ao que tinha para
contar sobre os governadores tucanos.
Como
relatou o GGN na época, Janot atribuiu o suposto vazamento aos advogados da
OAS. As 17 delações anteriores haviam sido vazadas pela Lava Jato. Por que a da
OAS não? Seguindo o brilhante raciocínio de Janot, devido ao fato da tal
denúncia não constar da delação, mas de conversas informais entre Léo Pinheiro e
os procuradores. Se os procuradores sabiam por ler ou ouvir, qual a diferença?
Para justificar a não tomada de decisão em relação ao
vazamento das delações anteriores, alegou que a de Toffoli era diferente,
“porque a informação não existia”. Ou seja, tratou drasticamente um vazamento
irrelevante (porque, segundo ele, não constava da delação) e ignorou vazamentos
graves. Com o detalhe de que o vazamento irrelevante permitiu esconder as
informações relevantes de Léo Pinheiro em relação a políticos aliados.
A delação jamais foi homologada. Mesmo assim, as declarações
de Léo Pinheiro serviram de fundamento para a sentença de Sérgio Moro que
mandou Lula para a prisão. E Pinheiro teve a pena diminuída para três anos e
seis meses em regime semi-aberto, com a condescendência do seletivamente
implacável TRF-4. O único sentido da não homologação foi não permitir que as
denúncias contra tucanos viessem à tona.
Agora informa-se que o STF deverá homologar a delação. Que
delação? A original? Ou submetida a alguma plástica jurídica?
Peça 3 – para os
amigos, caixa 2 sem propina
Graças a esse expediente, de anular, não anulando, a delação
de Pinheiro, a PGR conseguiu levar adiante a estratégia, mantida por Raquel
Dodge, de jogar o PT no fogo do inferno e o PSDB no purgatório do caixa 2.
Quando Alckmin perdeu a prerrogativa de foro, renunciando ao
governo do Estado, a seção
paulista da Lava Jato solicitou que o caso lhe fosse encaminhado. Em vez
disso, o subprocurador geral Luciano Maia remeteu o caso para o Tribunal
Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo, como se fosse apenas um caso de caixa 2,
sem contrapartidas, apesar das enormes obras tocadas no estado pelas
financiadores de Alckmin, apesar do caso Paulo Preto. Dias depois, num assomo
de sincericídio, Maia admitiu
que os TREs são órgãos eminentemente políticos e, portanto, sem isenção
para analisar casos políticos.
Mesmo assim, manteve o caso de Alckmin no TRE.
Contra Aécio, as evidências estão escancaradas nos episódios
de Furnas, da Cemig com a Andrade Gutierrez, na Cidade Administrativa, nos
pagamentos feitos a laranjas, nos R$ 500 mil em dinheiro vivo entregues a um
intermediário.
Mesmo assim, as investigações andam a passo de cágado.
Recentemente, Gilmar anulou o processo de Furnas alegando que a Polícia Federal
nada tinha acrescentado de substancioso ao inquérito. Não se duvide. A PF tem
lado.
Mas como passar por cima dos efeitos letais das delações
premiadas que, mesmo sem estarem acompanhadas de provas documentais, apressaram
o golpe do impeachment, a prisão e tentativa de inabilitação da candidatura de
Lula?
Aí entra o próximo tempo do jogo, o enquadramento das
delações premiadas daqui para frente, depois de alcançados os objetivos
políticos planejados.
Peça 4 – a mídia e a
denúncia das delações vazias
Na semana passada, um juiz de 1ª instância anulou uma
denúncia contra Lula, André Esteves, do Pactual, e o ex-senador Delcídio do
Amaral, de tentativa de obstrução da Justiça, feito em cima de uma delação
premiada acompanhada de um grampo planejado por Bernardo, filho de Nestor
Cerveró.
Como o juiz já havia sido denunciado pelo MPF por sua atuação
no caso Zelotes (que investiga a corrupção no CARF), pode ser que tenha se
impressionando com a presença de André Esteves no processo. Ou pode ser que
tenha apenas corroborado o parecer do procurador Ivan Marx pela anulação, por
falta de provas. Marx é tido como um procurador técnico e isento.
Esse mesmo grampo foi uma das peças centrais no impeachment
de Dilma, ao incendiar a opinião pública, levando o Ministro Teori Zavascki a
decretar a prisão de Delcídio. Tudo porque, maliciosamente, Janot divulgou
trechos em que o falastrão Delcídio insinuava intimidade com Ministros do STF.
Não havia nenhuma menção a suborno ou quetais, mas apenas jactâncias sobre
contatos políticos.
O pânico provocado pela caça às bruxas induziu à reação de
Teori Zavascki, autorizando a prisão de Delcídio.
Para prender Delcídio, o PGR e o STF
valeram-se de uma certa esperteza jurídica: incluíram nas investigações um
assessor de Delcídio, meramente para compor o número 4, mínimo para
caracterizar uma organização criminosa.
Com a prisão de Delcídio, abre-se
caminho para avançar sobre outros políticos. O STF assume um protagonismo, em
relação direta com as bazófias de Delcídio nas gravações, arrotando suposta
influência sobre Ministros do Supremo.
Zavascki cedeu em todos os momentos aos esbirros autoritários
da Lava Jato-mídia e morreu consagrado como isento, porque superado na
relatoria da Lava Jato pelo indescritível Luiz Edson Fachin.
Intimidado pela prisão, Delcídio fez uma enorme delação, peça
central para o golpe que se seguiu. Seu único efeito foi político. Não
conseguiu comprovar o que dizia. Mesmo assim, foi beneficiado e libertado em
pouco tempo, porque provas, ora, as provas!
Agora, após o golpe consumado, todos esses abusos são
invocados para que se proceda a uma linha de corte e não se aceite mais a
delação sem provas.
Segundo editorial de 15 de julho passado na Folha:
Ao eclodir em tons escandalosos, o
episódio acirrou as tensões de um ambiente político em que se iniciava o debate
em torno do impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). Esteves permaneceu
preso por mais de três semanas, e o banco que dirigia, o BTG, correu risco de insolvência. (...)
Por difícil que seja antecipar as
possibilidades para fundamentar a perda de liberdade, a reflexão se impõe sobre
medida tão drástica.
Quão vulgar se tornou o recurso ao
encarceramento provisório? Como autoridades podem ser responsabilizadas por
decisões açodadas e mal fundamentadas?
Colocam-se em dúvida, mais uma vez,
inquéritos amparados basicamente em delações, por fundamentais que estas sejam.
O episódio foi saudado pela defesa de Lula como sinal de que
seu caso poderá ser revisto, por se basear igualmente em relação sem
apresentação de provas.
Sugere-se que não se iludam. Ele servirá apenas para
consolidar o estado de direito, apenas quem merece por direito político: os
aliados.
Como declarou a PGR Raquel Dodge, Sérgio Moro tem atuado com
absoluta isenção na Lava Jato.
Comprova que um dos pontos centrais da crise brasileira é a
ausência de figuras públicas referenciais. Não existe a figura pública que se
guia por princípios, pela obediência à doutrina.
A onda obscurantista abriu espaço para três tipos daninhos de
caráteres públicos:
01. Os espertos.
02. Os medrosos.
03. Os convictos.
O grande desafio dos legalistas, hoje em dia, é não
esmorecer. Atravessa-se um período global de desmonte de todas as conquistas
civilizatórias. Não se trata mais de uma disputa ideológica, mas de uma
resistência sem quartel à barbárie que está avançando em cima da tibieza das
pessoas que deveriam representar condignamente as instituições e a imprensa.
Do GGN
0 comments:
Postar um comentário