Requisito para participar, como agente público, do
funcionamento das instituições do Estado democrático de direito é a íntima
convicção sobre o dever de respeitar e fazer respeitar a Constituição da
República. Essa vinculação, mais do que no plano formal, no plano ideológico,
de sua cosmovisão, ao valor jurídico e político da Constituição é o que se
chama na doutrina alemã “Verfassungstreue” – ou fidelidade, lealdade à
Constituição.
É assustador verificar que alguns atores-chave de nosso
Estado não têm clara noção sobre seu lugar no mapa constitucional e, se
confundem esse lugar, fica difícil dizer que podem ser leais à Constituição.
A presidenta do STF, por exemplo. Em entrevista ao Sistema
Globo disse que seria papel do judiciário “combater a corrupção”. Nada mais
equivocado do que essa afirmação. O papel do judiciário num Estado de Direito
não é “combater”, mas, sim, uma vez provocado, zelar por que os que
eventualmente decidam “combater” sejam enquadrados na lei quando atravessam os
limites do permitido. Se o judiciário se confunde com os “combatentes”, quem
vai controlá-los? Teremos um “combate” sem regras e sem limites? Porque de uma
coisa já sabemos: ninguém controla o judiciário brasileiro. Não há, entre nós,
freios e contrapesos aptos a limitar sua atuação quando transborda da
jurisdição.
É deveras preocupante que a presidenta do STF aparenta não
conhecer o lugar de seu tribunal na arquitetura institucional do país. E, se o
órgão máximo de controle da constitucionalidade está perdido no cipoal das
normas do direito brasileiro, imaginem o resto!
Não há fidelidade à Constituição possível, onde não há
conhecimento dela.
Grande parte de nossa crise é uma crise de legitimidade. A
lei maior do Estado, que deveria dar sentido a suas estruturas e funções,
regrar o consenso fundamental na sociedade e permitir o convívio pacífico dos
diversos grupos e das diversas tendências antagônicas na complexidade
pós-moderna, deixou de significar. Só isso explica como uma senadora da direita
do espectro político institucionalizado se dá ao desplante de aplaudir
publicamente a ação violenta de falta de tolerância de grupos fascistas contra
uma liderança nacional como Lula.
Se o STF ignora seu papel no quadro constitucional, o que
dizer dos gorilas toscos que têm saudade da ditadura militar, de seus
torturadores e executores? O que dizer de meganhas fardados na sedizente
polícia militar de Santa Catarina que riem ostensivamente diante da agressão
física a um ex-chefe de Estado com elevadíssimo índice de popularidade apesar
de toda injustiça contra si cometida por operadores do direito contaminados
pela febre fascista?
A volta ao leito da Constituição urge para salvar o Brasil da
barbárie, pois violência chama violência e, sem lei nem legitimidade, as
instituições nada podem, nada valem. Sem o consenso jurídico mínimo, instala-se
entre nós a guerra civil, em que grupos e tendências antagônicas passarão a
escolher a força bruta ao invés do diálogo e do discurso argumentativo para se
impor sobre os adversários.
O sinal mais inquietante desse novo estágio político é o fato
de ninguém mais fazer questão de sequer manter as aparências da autocontenção.
Os fascistas saíram do armário glorificando a mesquinharia, o ódio social e
político e a intolerância aos divergentes. Por sua vez, a justiça de classe se
desnuda com o discurso falso-moralista e seletivo contra os representantes das
forças democráticas. A propósito, lembro-me da advertência de Leon Trotski
sobre o avanço revolucionário: quanto mais perto o embate decisivo, mais claras
e transparentes se tornam as condutas e as opiniões das classes em confronto.
Só na democracia liberal se cultiva a disciplina verbal como forma de
escamotear conflitos latentes. Quando essa decai, a escamoteação se desfaz e os
monstros se apresentam sem disfarces.
Talvez estejamos na undécima hora para o STF dar o exemplo de
altivez e autoridade e fazer cumprir a Constituição, mostrar lhe ser fiel, a
começar por suas garantias fundamentais, como a que estabelece a presunção de
inocência dos acusados até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória. Somente será bem sucedido se lograr bloquear a prematura
violência contra Lula que inspira as outras violências, físicas e verbais,
partidas de quem não respeita à Constituição, não respeita o STF e a este,
prefere, porque conveniente para dar guarida a seus abusos, um juizinho de
província exibicionista, sem eira nem beira, a quem ostensivamente falece
qualquer respeito e, que dirá, fidelidade à lei maior.
É essa atitude que brasileiras e brasileiros democráticos e
amantes da paz esperam do STF. Ainda é tempo de fazer seu dever de casa, mas as
horas se esvaem rapidamente na tempestade de intolerância política criminosa e
organizada daqueles que têm desprezo e ódio pela Constituição cidadã. Parece
que estão esperando um corpo, um mártir, apenas, para projetar o País do
precipício para a incerteza da aventura.
Definitivamente, não merecemos isso. Não merecemos que forças
sem nenhum compromisso com o Estado democrático de Direito nos retirem toda a
esperança numa solução parcimoniosa, justa e, sobretudo, constitucional para a
crise que criaram para desempoderar a sociedade e reinstalar a ditadura.
DCM