A
Lava Jato como agente da desconstrução de um projeto nacional:
A
Operação Lava Jato, iniciada em março de 2014, caminha para o seu quarto ano
próxima de enfrentar um de seus maiores testes no próximo dia 24 de janeiro: o
julgamento em segunda instância do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.
O
combate e a prevenção contra a corrupção são desafios fundamentais para a
construção de uma sociedade efetivamente republicana no Brasil. Entretanto, os
desembargadores, juízes, procuradores e policiais que atuam na Operação Lava
Jato não tem o direito, tampouco mandato, para se apresentarem como detentores
de um monopólio moral cuja suposta finalidade seria higienizar o Estado e a
política no país.
Aliás,
as contradições da Operação emergem de sua visão simplista e esquemática sobre
o problema da corrupção, ao tratar a questão como mera manifestação do
patrimonialismo enquanto peculiaridade brasileira, deixa-se de ir ao cerne do
problema: a mistura entre público e privado não é uma singularidade nacional, é
antes e sobretudo um traço da economia capitalista como um todo. Ao
negligenciar esse diagnóstico fundamental os operadores da Lava Jato tratam uma
questão sistêmica como um problema localizado, ou seja, como uma questão
particular do setor petróleo, buscando desconstruir e distorcer o papel central
da Petrobras no desenvolvimento econômico brasileiro. Com isso a Operação se
mostra ineficiente sob três aspectos: político, econômico e mesmo ético.
Vejamos cada um desses pontos.
Do
ponto de vista político, não há nada que justifique o desmonte do Estado e da
Petrobras como resposta à ilícitos, os rankings da Transparência Internacional
e do próprio Fórum Econômico Mundial evidenciam: não há uma correlação entre
prevenção da corrupção, redução do tamanho do Estado e transferência do
patrimônio público para a iniciativa privada, seja ela nacional ou
internacional. Até mesmo porque grandes petrolíferas estatais, como a Statoil,
e privadas, como a Shell e a Total, enfrentaram casos graves de corrupção,
respectivamente, na Líbia, Angola e Nigéria e em nenhum momento isso serviu
como argumento para encolher os planos estratégicos de investimento dessas
companhias.
Do
ponto de vista econômico, por seu turno, quando se iniciou a Operação Lava
Jato, o segmento industrial de petróleo e gás natural representava cerca de 13%
do PIB brasileiro e a Petrobras previa um pacote de investimentos de US$ 220,6
bilhões para o período 2014-2018. No entanto, a drástica mudança de rota fez
com que em 2016 e 2017 a Petrobras e a cadeia de óleo e gás fossem responsáveis
por mais da metade da queda do PIB afetando duramente sua lista de mais de
vinte mil fornecedores, muitos deles foram judicialmente impossibilitados de
participar de licitações junto a governos e de acessar fontes de financiamento
público, deixando atrás de si um rastro de obras interrompidas, aumento no
desemprego, diminuição na arrecadação fiscal e, consequentemente, piora no
quadro econômico do país.
Um
dos setores mais afetados foi o das empreiteiras, construção civil e engenharia
pesada. Para usar um exemplo ilustrativo, em 2014 a Odebrecht auferiu mais de
R$ 109 bilhões em receita bruta contando com 276.224 trabalhadores próprios, já
em 2016 a receita sofreu uma queda significativa alcançando R$ 89 bilhões e
diminuindo seu quadro de trabalhadores para 79.616, o cenário é análogo para as
dez maiores empreiteiras do país: Queiroz Galvão, Camargo Corrêa, Andrade
Gutierrez, Galvão Engenharia, MRV, Construcap, Direcional, A.R.G e Mendes
Júnior. Nesse período, em média, as receitas brutas das empresas caíram 18%,
mas os postos de trabalho foram reduzidos em 72%, é flagrante a diferença de
punição: nesse setor a perda dos trabalhadores tem sido quatro vezes maior do
que a dos empresários.
Do
ponto de vista ético-moral, por fim, a Lava Jato também pode ser interrogada.
No final de 2017 o Ministério Público apresentou a última sistematização dos
dados da Operação, a equipe de Curitiba ostentou como mérito a realização de
222 conduções coercitivas, 163 delações premiadas, mas apenas 10 acordos de
leniência. Ao que tudo indica, há um verdadeiro exagero no uso de procedimentos
jurídicos pouco convencionais. Entretanto, por trás de tais números há
elementos pouco debatidos pela opinião pública. A legislação brasileira da
colaboração premiada prevê a aplicação de um elemento chamado “cláusula de
performance”, trata-se de uma vantagem financeira, pois cada delator pode
negociar para si um percentual do dinheiro recuperado a partir de sua delação,
infelizmente a maior parte dessas cláusulas ficam sob segredo de justiça.
Entretanto,
em 2015, a imprensa publicizou parte dos termos do acordo firmado pela defesa
de Alberto Youssef, que foi agraciado com uma cláusula de desempenho de 2%.
Considerando a própria hipótese do Ministério Público, de que esta delação
poderia revelar a existência de até R$ 1 bilhão em paraísos fiscais, Youssef
poderia embolsar até R$ 20 milhões. Se o nosso delator tivesse apenas guardado
seus milhões na poupança, que em 2017 teve retorno real médio de 0,3% ao mês,
ele poderia ter um rendimento mensal de RS 60 mil por mês, continuando a fazer
parte daquele 1% mais endinheirado da população brasileira. Nada mal para quem,
além disso, foi sentenciado a cumprir 121 anos de prisão em regime fechado, mas
no mesmo acordo de delação premiada negociou migrar para a prisão domiciliar
após apenas 3 anos, cumprindo sua pena em uma cobertura de luxo em um bairro
nobre de São Paulo enquanto os 2% negociados com a Lava Jato continuam sendo
creditados em alguma de suas contas bancárias.
Não
surpreende a existência de inúmeros casos análogos a este, até mesmo porque a
negociação das delação premiadas tornou-se um mercado de fraudes e extorsões,
como dão notícias os depoimentos do advogado Rodrigo Tacla Duran, infelizmente
pouco divulgadas pela grnade imprensa.
O
Ministério Público do Paraná aponta que o valor dos ressarcimentos aos cofres
públicos, acrescidos de multas, totalizam R$ 38,1 bilhões. Em um exercício
hipotético, se supusermos que todo esse dinheiro foi auferido por meio das mais
de 160 delações premiadas, e se considerarmos 2% como parâmetro para as
cláusulas de performance de cada delator, poderemos chegar a conclusão de que talvez
a Operação Lava Jato possa chegar a redistribuir cerca de R$ 760 milhões em
dinheiro – agora limpo – entre corruptos e corruptores confessos.
Tal
fato evidencia porque é possível dizer que a Lava Jata pune as empresas, mas
não necessariamente ela pune de forma efetiva os empresários.
O
alto número e a intensa celeridade das delações premiadas contrastam com o
baixo número e a vagareza dos acordos de leniência, sem os quais as empresas
ficam impedidas de levar adiante projetos já iniciados e precisam cancelar
investimentos eventualmente já previstos. Em quatro anos de Operação, como já
foi dito, apenas dez acordos de leniência foram firmados.
O
clima de incerteza e as más expectativas acabam, fatalmente, impactando de
forma negativa as decisões de gasto e investimento, criando obstáculos para a
retomada do desenvolvimento econômico. É nesse sentido que a Operação Lava
Jato, voluntária ou involuntariamente, direta ou indiretamente, acaba
contribuindo para o avanço do desmonte temerário do Estado-nacional e da
economia brasileira. Ao criminalizar empresas estatais e ao inviabilizar
empresas privadas nacionais o resultado é o fortalecimento relativo do poder
das grandes corporações internacionais que atuam no país, muitas delas com
interesses financeirizados. Em última instância trata-se de desmontar e
desnacionalizar o arranjo institucional que viabilizou a modernização da
estrutura produtiva e social do país.
A Lava Jato como instrumento de um
projeto de desnacionalização do país:
Desde
2015 quando a Petrobras iniciou seu processo de desinvestimentos, os movimentos
estrangeiros em relação ao setor petróleo ficaram ainda mais claros. A Franca,
por exemplo, iniciou um processo de compras de ativos brasileiros que
representa um ingresso integrado na cadeia de energia nacional. A Total comprou
participações no pré-sal dos campos de Libra (20%), de Iara (22,5%) e realizou
uma “parceria estratégica” para atuar no setor de refino e do gás, a Entrepose,
com a compra da empresa de engenharia Intech, entrou no mercado de fornecedores
locais e a Tereos ampliou sua participação no mercado de biocombustíveis.
Nesse
mesmo intervalo, a chinesa CNPC um conjunto de conversas com a Petrobras e com
o governa estadual de São Paulo a fim de articular a compra de ativos na Bacia
de Santos, desde então a China tem se tornado uma das principais compradoras de
campos do pré-sal.
Outro
exemplo emblemático se deu em 2017 com a nebulosa historia do lobby britânico
para a mudança da legislação de petróleo no Brasil que visava principalmente
acabar com a politica de conteúdo local existente no país.
Sendo
assim, os calendários da Lava Jato e do Golpe devem ser observados em conjunto
e o epicentro que os articula passa necessariamente pela Petrobras, mais
especificamente pela convergência entre (i) o apetite de governos e
petrolíferas estrangeiras no pré-sal, (ii) o moralismo de corporações e castas
do Estado que elegeram a petrolífera brasileira como exemplo de ilicitude a ser
combatida e (iii) o coesionamento de forças políticas interessadas em manter
sua auto-preservação às custas do desmonte do Estado e das empresas estatais
brasileiras, claro, tudo bem regado com alguns temperos: derrapadas do governo
na gestão da política econômica, campanhas virulentas propagadas pela grande
imprensa e pelas redes sociais, além de uma opinião pública oscilando entre a
intolerância e a apatia, dardejada que foi por uma profusão de informações que
de tão chocantes provocam aquele instante de silêncio que pode anteceder um
grito de revolta ou uma mudez de anomia.
O
ápice dessa desnacionalização pode ser catalisado pela combinação fatal entre a
diminuição dos índices de conteúdo local prejudicando empresas nacionais e a
renúncia fiscal favorecendo petrolíferas estrangeiras; ao passo que o auge da
contradição do discurso de combate à corrupção emerge de uma decisão recente da
atual direção da Petrobras: a companhia declara em seus balanços uma perda de
cerca de R$ 6,2 bilhões com os ilícitos investigados pela Lava Jato, mas
aceitou negociar e pagar voluntariamente aos investidores norte-americanos
cerca de R$ 9,7 bilhões. Até dezembro de 2017, a Lava Jato devolveu
efetivamente cerca de R$ 1,5 bilhão aos cofres públicos, dos quais R$ 821
milhões foram ressarcidos à Petrobras. Ou seja: o valor pago para os investidores
norte-americanos é quase quatro vezes maior do que o total recuperado pela Lava
Jato e é quase doze vezes maior do que o já devolvido a Petrobras. A pergunta
que fica é: quanto os EUA vão pagar por terem feito espionagem industrial do
pré-sal em 2008, por terem cooptado juízes e procuradores em 2009, por terem
tentado bloquear o regime de partilha do pré-sal em 2010 e por terem grampeado
telefones da presidenta da República e de altos executivos da Petrobras?
Nunca
é demais lembrar: em 2012 o governo norte-americano publicizou suas diretrizes
para a política energética, neste documento o Brasil aparece em três das sete
linhas estratégicas como um país cujas tecnologias nas áreas do pré-sal, de
biocombustíveis e de hidrocarbonetos não-convencionais deveriam ser observadas
com atenção (ve em Blueprint
for a Secure Energy Future). Já em 2017 o governo dos EUA publicou suas
novas orientações para a política de defesa, o documento enuncia
explicitamente: “instrumentos econômicos – incluindo sanções, medidas de
combate à corrupção e ações jurídicas contra empresas – podem ser elementos
importantes de estratégias mais amplas para dissuadir, coagir e restringir
adversários” (ver em National Security
Strategy of the USA). Há importantes interesses internacionais por trás da
instabilidade brasileira, não se trata de teoria da conspiração, até mesmo
porque a conspiração não é uma teoria, e sim uma prática que compõe a gramática
de qualquer estratégia geopolítica e geoeconômica.
Julgamento
de Lula ou julgamento da Lava Jato?
O
passo do Golpe ora em curso consiste na tentativa de condenação da mais
importante liderança popular do Brasil, sem crime, sem provas, em um processo
marcado do início ao fim por vícios e parcialidades. Lula tem hoje a ampla
maioria das intenções de voto em todos os cenários testados pelas pesquisas,
subtrair o nome do ex-presidente da urna eleitoral significa impedir que uma
parcela importante da população brasileira expresse sua vontade, trata-se,
portanto, de mais um cerceamento grave contra a soberania popular.
O
Tribunal Regional Federal da 4ª Região em Porto Alegre (TRF-4) pode reafirmar
ou reformar a sentença proferida pela 13ª Vara Federal de Curitiba, condenando
o presidente Lula a nove anos e seis meses de prisão. Como sabemos, nessa arena
os supostos justiceiros e os vorazes moedeiros levam vantagem, o processo de
criminalização das políticas pró-desenvolvimento e anti-desigualdade, o
fechamento do cerco contra partidos, movimentos, lideranças, militantes,
intelectuais e artistas do campo progressista de esquerda e centro-esquerda,
bem como a tentativa de desmoralizar Lula material e simbolicamente, não parece
ser um projeto de curto-prazo, muito embora os ilícitos e trapalhadas dos
golpistas mantenham o desfecho do cenário em aberto, até mesmo alimentando
vitórias pontuais dos críticos e opositores do governo Temer.
Entretanto,
diante das ruas e da opinião pública, as diversas instâncias do Poder
Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal, vão ter que se haver
com um cenário ainda incerto. Em 2016, quando da condução coercitiva de Lula, A
Lava Jato e Sérgio Moro eram rejeitados por 33% da população, no final de 2017
a rejeição do juiz e da Operação subiram para cerca de 45%, segundo dados do
Instituto Ipsos. Além disso, nesse mesmo intervalo o PT ressurgiu como o
partido favorito da população, aprovado por 18% do povo brasileiro, enquanto
isso o governo Temer atingiu um recorde e conseguiu angariar a desaprovação de
95% da população, segundo dados do Instituto Datafolha.
Mais
ainda, nesse período ao menos cinco episódios contribuíram para aumentar o
sentimento de impunidade na opinião pública: (i) a delação premiada dos irmãos
Joesley e Wesley Batista; (ii) a mala com R$ 500 mil transportada pelo
ex-deputado e assessor de Temer, Rodrigo Rocha Loures; (iii) as caixas com R$
51 milhões encontradas no apartamento do ex-ministro Geddel Vieira Lima; (iv) a
gravação sobre desvios, propinas e outros ilícitos que incriminaram o senador
Aécio Neves e (v) as duas denúncias de corrupção passiva e organização
criminosa contra Michel Temer.
Por
tudo isso se pode concluir: o grande crime cometido contra o Brasil não foi
perpetrado por Lula, mas por aqueles que estão inviabilizando a construção de
um projeto de nação internacionalmente soberana, politicamente democrática,
economicamente desenvolvida, socialmente inclusiva e culturalmente plural. No
próximo dia 24 de janeiro Lula estará no banco dos réus, sendo observado com
atenção e suspeição por uma parte da população, mas quem estará sendo
silenciosamente julgada pelo conjunto da opinião pública é a Operação Lava
Jato.
William
Nozaki - Professor de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo, integrante do Grupo de Estudos Estratégicos
e Propostas da Federação Única dos Petroleiros (GEEP-FUP).
GGN