Mostrando postagens com marcador golpe parlamentar-jurídico-midiático. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador golpe parlamentar-jurídico-midiático. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Aldo Fornazieri: A dinâmica parlamentar da crise e a omissão da esquerda

A dinâmica parlamentar da crise e a omissão da esquerda

Em termos políticos, o Brasil é um dos países mais esquisitos do mundo. Ocupa uma das primeiras posições no ranking das desigualdades sociais e, contudo, essa ignominiosa condição não se traduz em indignação, em ação em luta política. Nunca fomos capazes de fazer uma revolução social e nem uma revolução política. Somos uma sociedade acostumada ao mando. Primeiro, ao mando dos colonizadores, dos senhores de engenho; depois, ao mando dos coronéis das oligarquias estaduais, enfim, ao mando de um rosário de chefes, delegados, empresários, empreiteiros, prefeitos, paramentares, padres, pastores, doutores etc. Uma visceral disposição para mandar de alguns e de obedecer dos muitos.
As lutas sindicais, com uma exceção aqui outra acolá, terminam em bom convívio entre o trabalho e o capital. No campo, em que pese toda a violência, prevalece o mando do senhor das terras. Quando os representantes dos trabalhadores chegam ao poder, verifica-se o bom convívio, os bons modos, a conciliação.

No Brasil, o Estado sempre foi tudo: criou, serviu e serve o capital; mais dele do que das lutas sociais descenderam alguns parcos direitos e políticas sociais; fez banqueiros, empreiteiros e os grandes conglomerados da agroindústria (vide a JBS); salvou os cafeicultores, os usineiros e os trambiqueiros em geral. Grosso modo,  o dinheiro tem uma via única: sai do suor dos trabalhadores e dos pobres, vai para o Estado e daí para os ricos.

Em que pese as brutais desigualdades e tragédias sociais, os principais conflitos políticos se situam no teatro do Estado e nas suas instituições. Lá é o espaço onde os interesses sociais e econômicos são decididos e onde as decisões são descendidas para um povo acostumado ao mando  e resignado à obediência. O teatro do Estado expressa a aparência da tragédia real e, ao mesmo tempo, é o real que a constitui. No Brasil, a política é autônoma quase que no sentido estrito do termo. Lá os partidos representam a si mesmos, não têm lastro social, ou representam quadrilhas. Servem os diversos grupos do capital, destinam migalhas aos mais pobres. Lá indivíduos e grupos criam sublegendas dentro dos partidos, bancadas específicas que atravessam vários partidos e surgem políticos que representam a si mesmos. 

No Brasil não tivemos a impetuosidade de uma revolução burguesa, não tivemos a êxtase da fúria destruidora do jacobinismo, não tivemos uma revolta camponesa, uma rebelião de escravos, uma guerra da independência, uma revolução republicana. Não tivemos nem a fantasia e nem a poesia da emancipação proletária. Tivemos golpes, presidentes que não terminam os seus manados e quase nenhuma resistência popular.

A dinâmica parlamentar da crise e a segunda derrota das esquerdas 

Talvez a autonomia do teatro do Estado e esta tipologia do par mando/obediência expliquem, ao menos em parte, a conduta das esquerdas e das forças progressistas no processo do golpe-impeachment. Note-se, antes de tudo, que o capital ficaria com Dilma se esta tivesse mostrado capacidade de articular a governabilidade com o Congresso e se tivesse feito um ajuste fiscal que fosse satisfatório para os seus interesses. Desembarcou do governo Dilma e embarcou no governo Temer que, para se viabilizar, prometeu reformas retrógradas. Agora, pode desembarcar do governo Temer para embarcar no governo de Rodrigo Maia ou de outro qualquer, desde que haja uma continuidade da política econômica. Este mesmo capital que financiou quase todos os partidos extraindo recursos do Estado.

A dinâmica do golpe teve um elevado grau de autonomia em relação a esses interesses. Por um lado, foi articulado pelos caprichos individuais de Aécio Neves que queria "encher o saco do PT". Por outro, foi ardilosamente construído pela quadrilha do PMDB, liderada por Temer, que queria tomar o poder para continuar cometendo crimes e para garantir o foro privilegiado para alguns de seus membros.

Tudo isto se articulou, com acordos e desacordos, com o Partido do Estado, que também tem seus grupos específicos internos. O Partido do Estado é constituído pelo Ministério Público, pela PGR, pela PF, pelo STF e outros setores do Judiciário. O Partido do Estado sempre se articula quando o sistema político entra em colapso pela via da ingovernabilidade e da corrupção. Em vários momentos, o Partido do Estado foi representado pelas Forças Armadas, que agora ficaram à margem da crise.

Desde o início do processo do golpe as esquerdas e as forças progressistas ficaram na defensiva, seja por incompreensão da conjuntura, por arrogância, por incompetência ou por covardia. Perderam as ruas e, sem forças sociais organizadas e mobilizadas, o governo Dilma foi derrubado. Naquele momento, a decisão política combinou mobilização de rua e agregação de força paramentar em favor do golpe.

Consumado o golpe e com o governo ilegítimo caminhando para um isolamento social crescente, as oposições não tiveram capacidade para impor uma dinâmica das ruas para protagonizar um evento de mudança política. A partir disso, a política brasileira voltou ao seu leito tradicional, ao teatro do Estado.

O governo foi sendo sustentado pelo Congresso, aceito pelo mercado, mas acossado pelo Partido do Estado confrontado pela quadrilha de Temer, determinada a esvaziar a Lava Jato. As ruas passaram a ficar de fora desse processo, sem protagonismo, e as esquerdas, sem força congressual,  tornaram-se expectadoras das lutas e dissensões alheias. Sem as ruas, a demanda pelas diretas já está inviabilizada e FHC tornou-se quase o principal defensor dessa consigna. Se as reformas forem freadas não será pela forças das ruas, mas pelas conveniências eleitorais dos partidos e dos políticos que derrubaram Dilma. Isto fica evidente nos movimentos de Renan Calheiros, que é uma espécie de líder informal das oposições.

Independentemente de qual for o desfecho de Temer, as oposições saem derrotadas. Se Temer permanecer no governo, será a continuidade da derrota do golpe. Se Temer sair, será algo decidido sem a participação das oposições e sua substituição não passará de um rearranjo de nomes para dar continuidade à mesma política, ao mesmo bloco de poder, cada um visando se posicionar em relação a 2018.

No Brasil não há nenhuma revolução à vista, nenhuma transformação social profunda no futuro próximo, nenhum caminho promissor de justiça e de igualdade. Não temos heróis para ressuscitar para que possam glorificar novas lutas, não há fantasias para exagerar, nem espectro da revolução e menos seu espírito. O que há é uma contínua comédia política para acobertar a normalidade trágica da realidade. Normalidade trágica porque naturalizamos a tragédia social do país e seu modo violento de ser. Parece que os nossos políticos se sentem mais confortáveis com a máscara da comédia política  para dançar no baile brasiliense, fruição prazerosa que esconde o mal-estar da sociedade. E nós, que estamos nas planícies, nos entretemos, nos distraímos, com as danças cínicas dos planaltos.

Para encontrar um caminho promissor de mudanças, precisamos criticarmo-nos constantemente a nós mesmos, interrompendo esta paralisia, esta marcha para o retrocesso, este olhar fixo num passado inglório. Precisamos encarar com sobriedade e responsabilidade o fracasso das forças progressistas na história do Brasil. Fracasso que se traduz nesta desigualdade inaceitável, nos precários direitos, nos poucos avanços e nas muitas derrotas.

GGN, Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP