A implosão
sistêmica e o agravamento da crise, por Aldo Fornazieri (título original).
A publicação
das delações dos executivos da Odebrecht não foi uma mera revelação de algo que
já se sabia. Claro, havia uma suspeita generalizada de que no Brasil existia
uma corrupção empresarial e política sistêmica, que vicejava desde sempre. O
que as delações revelaram, em termos políticos, é que quase tudo está a venda e
quase todos se vendem. Vendem-se medidas provisórias, licitações, leis, tempos
de TV, alianças eleitorais, perguntas em debates presidenciais, notícias, fim
de greves, impeachments etc. E se vendem o pastor, o sindicalista, o índio, a
polícia, o delegado, o prefeito, o deputado, o governador, o senador, o
presidente, o juiz. Vende-se a soberania popular e a democracia.
Se a
política é vendida e os políticas se vendem é porque há compradores. A
Odebrecht deve ser elevada à categoria de símbolo do capitalismo predatório.
Outras empreiteiras fizeram o mesmo. O agronegócio, os frigoríficos, os bancos,
enfim, da União aos municípios compram-se política e políticos e enriquecem-se
empresas com o dinheiro do povo. No vasto balcão da corrupção brasileira, a
saúde, a cultura, a educação, as creches, os direitos, a ciência e a tecnologia
esvaem-se nos imensos recursos que empresas entesouram pelas valas medonhas da
privatização da res publica.
A necessária
punição dos políticos corruptos não pode isentar a punição dos empresários. A
delação dos executivos das empresas não deve ser uma mera venda de indulgência
para salvá-los, pois os seus pecados contra o povo pobre do Brasil são
imperdoáveis.
As elites
predatórias, ao se apoderarem dos recursos do povo, seja pela corrupção direta,
seja por subsídios, isenções tributárias ou sonegação desenvolveram um modus
vivendi do capitalismo brasileiro que consiste em enriquecer sem produzir.
Esse capitalismo não sobrevive sem a sua amarração tentacular com os partidos e
com as estruturas do Estado, secretarias, ministérios, comissões etc. As
planilhas da Odebrecht mostram que o dinheiro das propinas e da corrupção
promove uma rentabilidade espetacular, exorbitante, talvez só comparável à do
narcotráfico. Somas impressionantes simplesmente passam dos cofres públicos
para as empresas estruturadas nos principais ramos de atividade do capitalismo
bastardo do nosso país.
Este modus
vivendi do capitalismo corrupto e predador que está aí é a continuidade do
dissídio colonial, do dissídio escravocrata, do dissídio da República sem povo,
do dissídio entre o capital e o trabalho, do dissídio entre os ricos e os
pobres, do dissídio entre a desigualdade e a justiça, do dissídio entre os
corruptos e o trabalhador que precisa pagar suas contas às custas da escassez
de comida na mesa.
Não há como
compactuar com esse sistema. Não há como ser condescendente com a corrupção.
Que ela seja combatida. Observando as leis e a Constituição, mas que ela seja
combatida. Que os inocentes sejam identificados, que as delações mentirosas
sejam punidas, que as manipulações sejam desmetidas e que os culpados paguem
pelos seus erros. É preciso fender as muralhas da indignidade que sugam a seiva
e a vida dos trabalhadores e do povo pobre, e que protegem uma elite
aventureira, desumana e impiedosa que está aqui desde que este país foi
descoberto pelos portugueses.
O
tubaronato, para usar uma expressão do Raymundo Faoro, cresce, engorda e se
expande pouco se importando se a sua riqueza é vista com os olhos da suspeita
de que se constituiu ilicitamente, pois o vasto sistema de proteção política,
policial e jurídica criou uma fortaleza indevassável que permite a desfaçatez
de todos nos hotéis de luxo, nos prostíbulos e nos gabinetes do poder. A contra
face de tudo isso é uma das maiores desigualdades do mundo, uma juventude sem
esperanças, uma velhice sem amparo exposta às misérias da vida e um povo sem
direitos básicos.
Independentemente
do desfecho conjuntural da atual crise, este capitalismo predatório, com seu
sistema político e partidário, com suas estruturas de sustentação no Estado e
fora dele, precisa ser queimado, salgado e enterrado para que não viceje nunca
mais se este país pretende ter algum futuro digno. Não há como pensar em ir
adiante sem um contundente ajuste de contas com tudo isto que está aí.
A crise muda de patamar
Com a lista
de Fachin, a crise mudou de patamar. Aparentemente, ocorreu um realinhamento de
forças no interior do Estado. O centro de gravidade da Lava Jato se deslocou de
Curitiba para Brasília. Parece ter havido um alinhamento de estratégias entre o
STF, a Procuradoria Geral da República, o Ministério Público, a Polícia
Federal, com possível respaldo das Forças Armadas. Ou seja, o Partido do Estado
está se unificando e se fortalecendo. Gilmar Mendes sofreu algum tipo de
interdição e de enquadramento no STF onde, ao que tudo indica, se constituiu
uma maioria em favor das investigações, apurações e julgamento das denúncias. O
próprio STF poderá constituir uma força tarefa interna, convocando juízes
auxiliares, para acelerar os processos judiciais.
O aguçamento
da crise provoca várias e complexas consequências. José Serra, Aécio Neves,
Alckmin e Lula correm riscos reais de ficarem de fora do jogo sucessório de
2018. Tudo indica também que foi posto um fim ao sistema de proteção que gozava
o PSDB e seus principais líderes. Aécio Neves, o golpista número um, foi
apresentado à opinião pública como um dos maiores corruptos do país.
Ficou clara
também uma evidência que vinha sendo denunciada: o atual governo é constituído
por uma quadrilha, chefiada por Michel Temer. Enquanto Temer e sua quadrilha
estiverem à frente do governo, estaremos vivendo num país sem dignidade, com
uma sociedade desmoralizada. A imperturbável desfaçatez e falta de caráter de
Temer e de sua turma não leva em consideração nenhuma denúncia, nenhuma
acusação, nenhuma investigação, nada. É um governo que assumiu o seu cinismo às
claras, em plena luz do dia, para que o sol empalideça diante de rostos opacos
pela ausência de qualquer traço de moralidade pública. Em vídeo desavergonhado,
onde Temer tenta justificar o injustificável, afirma que o que lhe "causa
repulsa é a mentira". Pois bem, o que causa repulsa às pessoas dignas são
os mentirosos. Temer deveria renunciar. E se o STF não quiser cometer
mais um atropelo da Constituição, deve abrir uma investigação contra o
presidente usurpador.
Reportagens
da imprensa vêm especulando que estaria sendo articulado um acordo envolvendo
Lula, FHC e Temer para buscar uma saída política para a crise. É certo que o
sistema tentará reagir e que saídas políticas podem ser buscadas. Mas existem
saídas e saídas. A melhor saída para o PT e para Lula é assumir suas
responsabilidades e propor uma ampla reforma política como caminho de superação
efetiva da crise. Claro está, existem tempos exíguos, calendários apertados,
ameaças de todos os lados. É preciso sopesar a possibilidade de convocação de
uma Constituinte.
Neste
momento, Lula e o PT precisam ter toda a franqueza e toda a transparência para
com a sociedade se quiserem ter um futuro político e um resgate histórico.
Nenhuma salvação virá de negociatas com aqueles que agrediram a democracia. Nem
a sociedade e nem a militância acompanhariam esses acordos. Nem a anistia ao
caixa 2, nem a lista fechada, nada, nestes termos, neste momento, salvará coisa
alguma. Somente a franqueza, a honestidade de propósitos e uma sólida, realista
e ampla proposta de reforma política podem ensejar alguma salvação.
Do GGN, por Aldo
Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política.