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segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A Suprema covardia do Supremo e suas conveniências, por Aldo Fornazieri

Aos golpes do oportunismo, do golpismo, da covardia, do sofismo e da falácia argumentativa, a maioria do STF derrubou a estátua da Justiça em praça pública, espatifou-a na frente da nação, rasgou a Constituição e, com ambas, estátua e Constituição, fez uma grande fogueira onde foram queimados os princípios da república, a igualdade perante a lei a punibilidade de políticos criminosos e a decência nacional. Cinco ministros, que não têm compromissos com a Constituição, mas com subserviência aos raposões corruptos do Senado, jogaram a gasolina. Carmen Lúcia acendeu o fogo e ainda jogou uma pá de cal sobre as cinzas, pintando o cinza o que já era cinza num país condenado a ser vítima de si mesmo por ser vítima de uma elite que não tem seriedade, que não tem responsabilidade e que não tem pudor.​

Carmen Lucia mostrou não ter condições de presidir um centro acadêmico de uma faculdade de direito. Para desgraça do Brasil, no entanto, preside aquilo que deveria ser a mais alta Corte Constitucional do país, cuja virtude primeira dos seus componentes deveria ser a coragem. A partir da semana passada, o STF, que já havia se curvado aos políticos da Câmara e do Senado no processo da derrubada da presidente Dilma, decidiu, em ato formal, tornar-se um poder subordinado, abrindo mão de ser a Corte que decide em última instância.

A decisão da maioria do STF fere a Constituição e não se trata de engano. Basta comparar os argumentos que os juízes usaram quando do afastamento de Eduardo Cunha e os que usaram na decisão do último dia 12. Fica claro que a maioria da Corte votou em função das conveniências políticas e não do espírito e da letra da Constituição. A OAB deveria analisar se estes cinco juízes, mais a Carmen Lucia, não cometeram crime de responsabilidade. Sob o disfarce do julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, o que decidiram foi o caso específico de Aécio Neves entregando ao Senado a prerrogativa de devolver-lhe o mandato. O mesmo Senado que não cumpriu a Constituição quando decidiu não investigar e não julgar Aécio.

O STF criou uma desordem constitucional. Para casos diferentes, mas com a mesma natureza jurídica, aplicou decisões ao sabor das conveniências: uma para Eduardo Cunha, outra para Delcídio do Amaral, uma terceira para Renan Calheiros e uma quarta para Aécio Neves. A sociedade não pode ter fé e respeito a um tribunal que age dessa forma.

Os magistrados deveriam dignificar o honroso cargo que receberam, alguns sem as competências e/ou as virtudes necessárias. Deveriam ser um exemplo para a sociedade e para os futuros juízes. Deveriam pensar em proporcionar biografias relevantes, pois o bom exemplo e a vida correta são os maiores bens que podemos deixar nesta vida. Mas quem não tem dignidade não pensa em biografia.

Um dos fundamentos adotados pela maioria do Supremo sustenta a tese de que somente os representantes podem decidir acerca de um mandato que emana da soberania popular. Para manter uma coerência lógica, as decisões que afetarem vereadores, deputados estaduais e governadores também precisariam de um aval da Casa legislativa correspondente sempre que uma decisão judicial afetar um mandato.

O STF se tornou um dos principais fomentadores da crise institucional. Note-se a absurda argumentação de Dias Tofoli: "O Supremo Tribunal Federal não pode atuar, portanto, como fomentador de tensões constitucionais, o que ao meu ver viria a ocorrer caso se suprimisse do poder Legislativo o legítimo controle político de restrições de natureza processual penal que interferem no livre exercício do mandato parlamentar".

A argumentação é absurda porque parte de um pressuposto falso: o STF deve julgar segundo a Constituição e não segundo se causa ou não causa tensões constitucionais. Ademais, em nenhum país  democrático o Legislativo tem a prerrogativa de fazer o controle político de restrições de natureza processual penal. Mesmo no processo de impeachment de um presidente, o Senado se transforma em tribunal para julgar politicamente, cabendo ao STF julgar a matéria de natureza penal.

A violação da Constituição
Para que uma Constituição seja democrática e republicana precisa fundamentar-se em alguns pressupostos: nenhum poder é ilimitado, nem mesmo a própria Constituição; Estado de Direito significa poder limitado, valendo isto para os três ramos do poder; os três poderes estão submetidos a uma relação de controles mútuos, de pesos e contrapesos, não existindo um poder soberano sem controle a acima dos outros; definidas as funções específicas de cada poder, com ingerências parciais um no outro, cabe ao tribunal constitucional as decisões últimas em matéria penal e no controle da constitucionalidade.

Uma Corte ou um tribunal constitucional são supremos exatamente porque têm a prerrogativa das decisões finais, indicadas no último item acima. Se não for assim, a Constituição deixa de ser  republicana e democrática. Foi este atentado, foi este crime contra a Constituição, que a maioria do STF perpetrou. A Corte constitucional tem a faculdade de interpretar o direito em vigor, a Constituição, as leis do Legislativo, com uma autoridade que estabelece uma obrigação constitucional dos outros dois poderes.

A prerrogativa de interpretação de uma Corte constitucional, porém, não é aberta e infinita. Ela tem dois limites: 1) a própria Constituição; 2) os princípios fundantes da Constituição republicana e democrática que não podem ser ultrapassados pelo poder constituinte soberano, por uma Corte Constitucional ou pelo poder que tem a prerrogativa de emenda constitucional - no caso, o Congresso. A maioria do STF violou a Constituição ao permitir que a Câmara e o Senado adquiram funções judiciais e possam tomar decisões finais acerca de atos delituosos de deputados e senadores.

O Brasil vive hoje uma situação insuportável do ponto de vista político, institucional e moral. Do ponto de vista político, o sistema e as instituições estão sem legitimidade e desacreditados junto à sociedade. Do ponto de vista institucional, há um  golpe em andamento, um presidente ilegítimo, o Congresso desacreditado com dezenas de políticos denunciados e um STF que viola a Constituição e não faz aquilo que as suas prerrogativas determinam. Do ponto de vista moral, o Brasil é governando por um presidente denunciado duas vezes e por um governo criminoso, que destrói os fundamentos éticos, as condições de futuro do país e  afronta a dignidade das pessoas.

O STF precisa responder à sociedade como é possível que o país seja governando por um presidente e por um governo sobre os quais recaem, não acusações vagas, mas provas evidentes de que se trata de entes delinquenciais. Nenhum país do mundo, minimamente sério e democrático, teria um governo que é expressão de inominável indignidade. O STF precisa responder à sociedade como é possível que ministros delinquentes continuam ministros; como é possível que  deputados e senadores corruptos continuam em seus cargos.


Deputados e senadores só são invioláveis, civil e penalmente, pelas suas opiniões, palavras e votos, diz a Constituição. Não o são por atos criminosos. Quando cometem crimes, precisam ser punidos na mesma condição dos demais cidadãos. Se não for assim, isto é contra os fundamentos e os princípios da Constituição. Se em algum lugar a Constituição garante proteção a políticos criminosos, isto é contra os fundamentos Constituição e o STF precisa pronunciar-se e adotar providências. Se não é assim, a nossa Constituição não é nem democrática e nem republicana. É uma Constituição refém de covardes, de sofistas e de corruptos.

GGN

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Covardia do STF ou golpe do Senado?, por Aldo Fornazieri

Nos próximos dias a política brasileira se moverá em torno da seguinte disjuntiva: covardia do STF ou golpe do Senado. O pano de fundo será o destino do mandado de Aécio Neves. Não que o STF já não tenha dado sinais de covardia ao permitir violações da Constituição, particularmente no caso do impeachment ilegal, sem crime de responsabilidade, contra Dilma Rousseff. O Senado também já se mostrou golpista, ao sacramentar o mesmo impeachment ilegal. Na hipótese de o STF mostrar alguma dignidade e manter Aécio afastado de seu mandato, se o Senado vier a sustar tal decisão, estaria perpetrando um segundo golpe, mergulhando as instituições numa crise sem precedentes, abrindo mais uma porta para os reclamos de uma intervenção militar.​
A suspensão do mandato de Aécio Neves vem suscitando enorme polêmica, inclusive no âmbito dos setores democráticos e progressistas, como foi o caso da desastrada nota da direção do PT, que criticou a decisão do STF de afastá-lo do mandato. Tudo isto mostra o grau de confusão mental, política, moral e teórica que vários políticos, jornalistas, analistas e juristas brasileiros estão metidos - uns por oportunismo e interesses, outros por incompreensão da natureza dos impasses e da crise.
A primeira confusão está na própria Constituição, no artigo 2º, que define que os poderes da União - Legislativo, Executivo e Judiciário - são independentes e harmônicos entre si. Não há como entender os fundamentos de uma constituição de um país democrático republicano presidencialista sem entender os princípios que deram origem à Constituição norte-americana, que é a matriz dessa tipologia de constituições. Quem estudou os Federalistas sabe que a relação entre os poderes não é harmônica, mas conflitiva, baseada numa relação de equilíbrios, pesos e contra-pesos, na qual, cada um dos poderes, tem meios de ataque e de defesa em relação aos outros. A ideia da harmonia é uma ideia bastarda, tipicamente brasileira, herdeira da ideologia da conciliação, que é uma ideologia da dominação das elites.
Em segundo lugar, a relação entre os poderes não é de independência absoluta, tendo cada um, um âmbito de ingerência parcial nos outros, exercendo de forma moderada e marginal, funções dos outros, sem descaracterizar a natureza específica das funções de cada um. Assim, é perfeitamente legítimo que as Supremas Cortes, no caso o STF, exerçam algum âmbito de função legislativa. Em terceiro lugar, não há nenhuma dúvida de que em matéria constitucional, as Supremas Cortes têm a última palavra, não cabendo nem ao Executivo e nem ao Legislativo avocar para si qualquer função revisora de uma decisão de uma Corte Constitucional. Além de decidir sobre conflitos constitucionais em última instância, uma Corte Constitucional pode preencher lacunas constitucionais. Foi isso que a Suprema Corte dos EUA fez no caso do aborto e que o STF fez no caso do casamento homoafetivo, dentre vários ouros casos.
A constitucionalidade da suspensão do mandato de Aécio Neves
Se há alguém que violou a Constituição, no caso do mandato de Aécio Neves, é o próprio Senado. Antes de tudo, é preciso observar que a imunidade parlamentar se refere apenas a opiniões, palavras e votos, conforme define o artigo 53 da Constituição. Na medida em que Aécio cometeu crimes comuns e feriu o decoro parlamentar, deveria perder o mandato por uma decisão do Senado. Quando sequer o Senado abre um procedimento na Comissão de Ética em face de atos  tão graves cometidos pelo senador, há uma evidente violação da Constituição por parte desta Casa. Neste caso, é preciso que o Supremo exerça o controle constitucional. Se a Constituição veda a perda do mandato por uma decisão do STF, ela não proíbe a suspensão do mandato para salvaguardar a moralidade pública e o espírito e a letra da Constituição em face de grave omissão do Senado.
Ademais, o artigo 102 da Constituição, alínea b, afirma que compete ao STF processar e julgar, originalmente "nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República". Então, acabou. A Constituição está acima do Senado e do próprio Supremo. E ela diz que cabe ao Supremo a própria guarda da Constituição.
Em matéria penal, não cabe ao Senado interferir,  pois isto viola a Constituição. Nenhum político e nem mesmo um ministro do Supremo pode estar isento de punição. Isto significa que nenhum senador, nenhum deputado e nem mesmo o presidente da República, nos casos de crimes comuns, podem ser protegidos pelo Senado, pela Câmara dos Deputados ou pela Presidência da República para isentar-se de responder juridicamente pelos seus crimes.
O golpe do Senado
Se o STF tiver coragem e dignidade, manterá a suspensão do mandato de Aécio Neves. Caso contrário, será coberto de opróbrio, de ignomínia e de vergonha eterna pela sua covardia e pela sua capitulação aos interesses corruptos do Senado. Manter a suspensão do mandato de Aécio, além de ser constitucional, significa enfrentar os marajás da corrupção incrustados no Senado. Significa confrontar os patriarcas do atraso, os supressores de direitos sociais, os denegadores da democracia, os sacramentadores do golpe.
Admitindo a hipótese de que resta um lampejo de coragem e de virtude ao STF, mantendo a suspensão do mandato de Aécio, se o Senado revisar esta decisão, será um golpe brutal no sentido e no conceito de República e na Constituição. Significa que o Senado se transformará em Supremo Senado da Federal, um poder usurpador e com uma soberania equivalente à dos monarcas absolutos que não eram passíveis de responder criminalmente e que, pela sua suposta descendência divina, eram irresponsáveis, penal e politicamente. Se o Senado fosse um poder politicamente soberano, com prerrogativa de revisão constitucional e decisão política em última instância, então, o impeachment de Dilma não teria sido golpe.
Na República Democrática não existem poderes soberanos e ilimitados. A soberania, pertencente ao povo, se expressa na Constituição. A própria Constituição é limitada e ela não pode ser modificada por nenhum poder constituinte de forma absoluta, pois ela precisa expressar um Estado de Direito. Este Estado significa que o poder deve ser limitado pelos direitos dos cidadãos e que estes não podem ser passíveis de supressão. Se o Senado confrontar o STF significa que ele se auto-instituirá como um poder político supremo e soberano. Este tipo de poder tem nome: é uma ditadura, seja ela conduzida por um general, por um ditador, por um corpo colegiado ou mesmo por um Senado.
O que se espera dos partidos progressistas (PT, PSol, PC do B, Rede, PDT, PSB etc.) é que não dêem um passo em falso se esta questão do mandato de Aécio vier a ser decidida no Senado. É preciso manter uma coerência democrática, republicana e anti-golpista. Manter Aécio Neves no Senado é uma indignidade, uma violação da Constituição, assim como é manter Temer na presidência da República. Nenhum cálculo político e eleitoral pode justificar qualquer condescendência com esses dois políticos abjetos. O aventureirismo político de Aécio foi a origem da desorganização da democracia e do próprio golpe.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).

 GGN

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

A permuta entre membros do Ministério Público, por Aragão

Permuta entre membros do Ministério Público: o órgão de controle transformando o parquet em clube nacional.

Um dos princípios basilares de nossa talvez ainda vigente constituição é o da "forma federativa de Estado", erigido como cláusula pétrea em seu art. 60, § 4°. De conformidade com este, os governos e as administrações estaduais gozam de relativa autarquia, isto é, se organizam de acordo com suas constituições, sem interferências umas nas outras, no espaço que lhes é reservado na constituição federal.

Os ministérios públicos estaduais e os ramos da União obedecem a essa lógica, pois a própria constituição, no art. 127, impõe a ordenação justaposta de instituições ministeriais dos diversos âmbitos, cada uma com sua legislação orgânica e sua disciplina de carreira. Elas não se misturam. São órgãos estabelecidos à luz da regulamentação estadual e federal própria a cada delas.

Eis que para atender anseios corporativos de mobilidade, o CNMP resolveu fazer tabula rasa do princípio federativo e permitir que membros do ministério público em seus diversos âmbitos passam usufruir do direito de serem redistribuídos entre estados e, quiçá, a União. Trata-se de mais um gritante benefício à margem da lei, mais sujeito a criar tensões do que alivia-las, sempre para atender aspirações pessoais.

Agora o ministério público passa de construto constitucional à condição de um grande Rotary, ou de uma AABB, um clube só, com presença em todo território nacional para o gáudio de seus membros.

É a isso que me referi, quando, no sítio eletrônico do Consultor Jurídico, chamei atenção para os desvios corporativos do CNMP, um órgão composto em larga margem por uma maioria de gente das próprias carreiras e, com isso, incapaz de agir criticamente contra suas pressões, seja na parte regulamentar, seja na disciplinar. E tanto isso é verdade, além deste episódio, que, quando críticas fiz, o colegiado sentindo-se ofendido, resolveu abrir processo administrativo disciplinar em causa própria, para expurgar este insolente membro de suas funções e empurra-lo para a aposentadoria. Usou o instrumento legal para promover a vindita corporativa contra a liberdade de expressão de um de seus membros.

Só rindo, se não fosse trágico. Aposentei, não pela pressão expulsória, mas pelo desgosto de participar de uma instituição que nasceu grande na Constituição de 1988 e se apequenou pelas demandas rasteiras de facilidades, vantagens, poder e prestígio próprio.

É por isso que urge reformar não só o próprio ministério público para limitar seus impulsos abusivos, mas, também, reinventar o órgão de controle, que deve ter mais representantes da sociedade e menos das carreiras, passando a se qualificar verdadeiramente como órgão de controle externo.

GGN

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Wadih Damous: O Direito brasileiro esculhambou-se tamanho o estrago causado pela promiscuidade com a política

Há poucos anos, o Brasil era o centro das atenções mundiais. Ao longo dos dois mandatos de Lula, e do primeiro de Dilma, a mídia internacional abria espaços generosos para o extraordinário avanço social, econômico e político do país, alçado à condição de ator de primeira grandeza da diplomacia global.

Um ano depois que um golpe de estado rasgou a Constituição da República, a voracidade com que as forças conservadoras se lançaram à destruição do legado da era dos governos petistas não encontra paralelo não só na história do Brasil como também de nenhuma outra nação.

Sem qualquer legitimidade, impõem um programa radical de restauração conservadora que jamais seria aprovado nas urnas. Já entregaram o pré-sal, degradaram a empresa pública de comunicação, congelaram os gastos sociais por 20 anos, feriram gravemente a CLT com a terceirização irrestrita e estão prestes a desferir-lhe o tiro de misericórdia através da reforma trabalhista. Também o direito à aposentadoria está por um triz com o avanço da reforma da previdência no Senado.

Imerso em uma espécie de atoleiro jurídico, político e moral, o direito brasileiro virou uma esculhambação. Lamento sinceramente a utilização dessa expressão, mas não encontro outra no vernáculo capaz de refletir com tamanha precisão o estrago causado pela promiscuidade entre o direito e a política.

Hoje, não importa mais a instrução e as nuances de um processo penal, e sim sua utilização para se atingir objetivos políticos. Confesso o meu estarrecimento ao ler recentemente a declaração de um juiz dando conta de que votara em sintonia com o que é melhor para o país. Juiz que se preza e honra a magistratura vota de acordo com os autos do processo, com a lei e a Constituição. Ponto.

Na realidade, o votar segundo os interesses do país serve de biombo para esconder o óbvio: o melhor para o Brasil é o que sai publicado nas cartas dos eleitores, nos editoriais dos jornalões e na linha editorial das redes de televisão.

Moro e os procuradores da República de Curitiba rezam exatamente por essa cartilha. Para eles, fazer justiça é se submeter aos ditames do monopólio midiático e ao clamor do agronegócio, das grandes corporações empresariais e dos banqueiros, apoiadores de primeira hora e financiadores do golpe.

Não resta dúvida de que o governo Temer é o mais calamitoso da história. Se não bastasse estar ocupando a presidência mercê de um golpe de estado, adota o banditismo como método de ação política, o que lhe renderá inclusive nos próximos dias uma denúncia da PGR por corrupção, organização criminosa e obstrução de justiça.

Contudo, a aversão e o sentimento de repulsa por essa quadrilha não me turvam a visão jurídica. Por isso, reputo como tecnicamente correto o julgamento do TSE que absolveu a chapa Dilma/Temer. Os fundamentos do estado de direito são claros : juiz só julga com base na prova dos autos e o direito à ampla defesa é o pilar da democracia.

Todas as tentativas de impugnar o resultado eleitoral de 2014 levadas a cabo por Aécio Neves (que depois seria flagrado confessando que o fizera sem base legal, apenas para “encher o saco do PT”) foram rejeitadas, com trânsito em julgado no TSE. No entanto, Gilmar, sempre agindo como coronel da política, violou a coisa julgada e determinou que o Ministério Público Eleitoral investigasse as contas já aprovadas.

A mídia, por sua vez, exerceu forte pressão também para inserir no processo de forma ilegal elementos extemporâneos aos autos, como as delações dos executivos da Odebrecht e dos marqueteiros, que não integravam a causa de pedir. A não aceitação desse contrabando por parte do TSE foi uma decisão acertada do ponto de vista jurídico.

Voltando ao desmanche do país, o ministro Gilmar Mendes, que fala e faz o que bem entende, agora ataca a justiça eleitoral. Só no Rio de Janeiro, 113 zonas eleitorais estão em vias de ser extintas pelo presidente do TSE. No momento em que se discute a necessidade de uma ampla reforma no sistema político-eleitoral, é uma irresponsabilidade propor o enfraquecimento da própria espinha dorsal do processo eleitoral.


Vi o Mundo, Wadih Damous é deputado federal (PT-RJ) e ex-presidente da OAB-RJ

terça-feira, 13 de junho de 2017

República, índios, direitos humanos e democracia no Brasil por um fio, afirma Paulo Maldos

O Congresso Nacional tornou-se um campo de caça aos direitos dos povos indígenas
 Foto: Celso Maldo

Índios, direitos humanos e democracia no Brasil

O Congresso Nacional tornou-se um campo de caça aos direitos dos povos indígenas, o que ficou evidente na CPI da Funai e Incra, que buscou criminalizar suas lideranças e seus aliados no Estado, no Ministério Público, nas igrejas e nas ONGs, além de propor a extinção da própria Funai e medidas que buscam inviabilizar as demarcações e os direitos dos índios

Os povos indígenas estiveram sempre presentes na história do nosso país, cujo Estado nasceu e respectivo território se desenvolveu sobre as instituições e territórios milenares dos povos originários. São 517 anos de história nacional sobreposta e em conflito permanente com 12 mil anos de diferentes histórias de centenas de povos. Documentos da Colônia, do Império e da República são testemunhos dessa tensão contínua e das tentativas cíclicas de se construir uma convivência, prevista juridicamente e de fato, entre sociedades e culturas diferentes. Resultado de uma convivência entre sociedades muito desiguais em poder de exploração econômica e destruição letal, de uma estimativa de cerca de 6 milhões de pessoas pertencentes a mil povos em 1500 temos hoje, pelo Censo Geral do IBGE de 2010, 817.963 indígenas, de 305 povos, falantes de 274 línguas.

Durante a última ditadura civil-militar (1964-1985), a burocracia estatal chegou a levantar a possibilidade de uma “solução final”, com a extinção completa dos povos indígenas no Brasil. Embora tais planos não tenham sido levados à prática, os grandes projetos econômicos e de infraestrutura na região amazônica, principalmente, foram a causa do extermínio e do genocídio que incidiram sobre inúmeros povos. A luta contra a ditadura também teve o protagonismo indígena, na forma de assembleias e mobilizações regionais e nacionais em torno da defesa do direito ao território, as quais ensejaram inclusive um processo organizativo para dar conta de uma agenda de denúncias e reivindicações.

O acúmulo de experiências de luta, de construção de propostas políticas e de criação de alianças entre os diferentes povos, e destes com segmentos da sociedade nacional, permitiu que os povos indígenas, através de centenas de representantes, tivessem uma participação significativa no Congresso Constituinte, acompanhando subcomissões, comissões, sessões plenárias e audiências públicas, e que ao final contribuíssem de maneira determinante para a consolidação dos direitos indígenas nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988.

O texto constitucional é uma vitória histórica, pois muda a orientação da relação do Estado nacional com os povos indígenas, superando a perspectiva integracionista para uma perspectiva de respeito aos seus territórios, culturas, línguas, tradições e modos de ser, viver e se reproduzir como povos etnicamente diferenciados. Além de ser um texto em sintonia com avanços nos acordos internacionais, a nova Constituição tornou-se referência para as lutas indígenas na América Latina e um novo patamar para a construção de políticas públicas específicas em saúde, educação, meio ambiente, produção e gestão ambiental e territorial.

Com base na Constituição Federal foram desencadeados novos processos de reconhecimento, identificação, demarcação e homologação das terras indígenas, que se caracterizam por serem bens da União de usufruto exclusivo dos diferentes povos. Durante os anos 90, ao longo dos governos dos presidentes Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, com o apoio de recursos internacionais da ONU, avançou-se na demarcação das terras indígenas na região amazônica, principalmente do Território Ianomâmi e de muitos outros, sempre com a participação das próprias comunidades e organizações indígenas locais. Um episódio marcante ocorreu em abril do ano 2000, em Porto Seguro, Bahia, quando das comemorações pelos 500 anos do Brasil. Os povos indígenas, com 3.600 representantes de cerca de 180 povos, ocuparam a região com as contracomemorações chamadas “Brasil, Outros 500” e, juntamente com quilombolas e movimentos sociais de todo o país, exigiram um novo modelo de desenvolvimento, baseado nos direitos dos povos indígenas, dos quilombolas e da classe trabalhadora do campo e da cidade. A repressão brutal do governo FHC que se abateu sobre os milhares de participantes daquela mobilização acabou por revelar uma sociedade ainda fortemente excludente e autoritária, teve amplo impacto negativo na mídia internacional e despertou para a luta pela demarcação dezenas de povos indígenas do sul da Bahia e de toda a região Nordeste. A partir desse evento traumático e com grande carga simbólica, as lutas indígenas e as alianças dos povos indígenas com segmentos excluídos da sociedade nacional ganharam um novo impulso e novas perspectivas.

Durante os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a questão indígena teve avanços em alguns aspectos, principalmente no que diz respeito à participação dos povos indígenas na construção e monitoramento das políticas públicas específicas, mas poucos avanços na questão territorial. Uma polêmica que marcou esse período foi a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que foi motivo de uma ação junto ao Supremo Tribunal Federal. Nessa ação era contestada a demarcação da terra indígena de forma contínua; era contestada a demarcação em faixa de fronteira “por ameaçar a segurança nacional” e “por criar a possibilidade de um separatismo indígena” e era defendida a “alta produção agrícola” dos invasores da terra indígena. O STF reconheceu a constitucionalidade da demarcação feita pelo presidente Lula e determinou a retirada dos invasores, embora tenha definido dezenove condicionantes, válidas apenas para Raposa Serra do Sol, que constrangeram os indígenas por serem limitadoras ao usufruto pleno das comunidades do seu território original.

Durante o governo Lula os povos indígenas avançaram na interlocução com o Estado brasileiro, com a realização da I Conferência Nacional dos Povos Indígenas em 2005, com a criação da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) em 2006, com a criação da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) em 2010, com a criação do Programa Nacional dos Territórios Etnoeducacionais, com o estabelecimento de cotas (com programas de acesso e permanência) para indígenas nas universidades públicas e programas de acesso das comunidades a diversas políticas públicas, como proteção ambiental e produção de alimentos. A questão territorial, no entanto, permaneceu com poucos avanços, devido ao forte lobby das forças conservadoras dentro do próprio governo federal, assim como com a judicialização dos processos de demarcação e homologação das terras indígenas. Nesse período, por exemplo, pouco avanço teve a demarcação do Território Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, cujo drama humanitário permaneceu e se agravou a cada ano, fazendo com que esse povo se transformasse no mais atingido em seus direitos humanos com assassinatos e ameaças de morte às lideranças, agressões às comunidades, suicídios e atropelamentos dos indígenas obrigados a viver nas margens das estradas.

Durante o mandato e meio da presidenta Dilma Rousseff, os avanços foram ainda mais tímidos, novamente com destaque para a participação indígena em espaços de interlocução com o Estado e de controle social e muito pouco avanço na agenda de demarcação e homologação dos territórios. Nesse sentido é importante destacar a transformação da Comissão em Conselho Nacional de Política Indigenista em 2015, agora um órgão de Estado, e a criação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI) em 2012, além da realização da I Conferência Nacional de Política Indigenista em 2015. Um forte motivo de tensionamento entre o governo federal e as lideranças, povos e organizações indígenas foi a edição da Portaria no 303 da Advocacia-Geral da União (AGU), que internalizava as dezenove condicionantes de Raposa Serra do Sol nos procedimentos da AGU, inclusive para os procuradores da Fundação Nacional do Índio (Funai), sendo que tais condicionantes ainda estavam sob embargos declaratórios no STF.

Essa portaria inviabilizou, inclusive, as tentativas do governo federal em regulamentar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre o direito à consulta prévia e informada, que significaria certo empoderamento dos povos, comunidades e organizações indígenas frente ao planejamento e realização de empreendimentos que atingissem seus territórios ou frente a decisões administrativas e legislativas que impactassem seus territórios ou suas culturas. Os indígenas se recusaram a construir uma regulamentação da Convenção 169 enquanto a Portaria no 303 não fosse revogada, o que nunca ocorreu. Um outro fator de forte tensão dos povos indígenas com o governo Dilma foi o planejamento e implementação das hidrelétricas na região amazônica, a começar pela hidrelétrica de Belo Monte e as hidrelétricas do rio Tapajós, em contraste com uma quase paralisia dos processos de reconhecimento territorial, dos processos de demarcação e homologação das terras indígenas.

Apesar desses retrocessos, na gestão da presidenta Dilma foram realizados poucos, mas importantes, processos de homologação de terras indígenas, como a Terra Indígena Kayabi, no Mato Grosso, e processos de desintrusão (retirada de invasores), como da Terra Indígena Xavante de Marãiwatsédé, também no Mato Grosso, uma dívida histórica do Estado brasileiro, e da Terra Indígena Awá-Guajá, no Maranhão, onde vive um povo indígena em situação de isolamento voluntário e de extrema vulnerabilidade frente aos madeireiros da região. O golpe parlamentar que foi executado contra a presidenta Dilma em 2016 teve como principais agentes deputados e senadores ruralistas, articulados com os interesses do agronegócio e do latifúndio mais atrasado do país. Por essa razão, a agenda dos direitos indígenas, assim como dos direitos humanos de maneira geral, encontra-se praticamente interditada e com novos golpes que configuram um retrocesso permanente. As demarcações de terras indígenas estão paralisadas; a proteção aos povos em situação de isolamento voluntário foi desmobilizada; o órgão indigenista Funai encontra-se quase inviabilizado pela falta crônica de recursos humanos e financeiros; as desintrusões não são mais realizadas; as parcerias com organizações indígenas, com organizações não governamentais ou com outros órgãos de Estado para a defesa dos direitos indígenas, quase deixaram de existir.

O Congresso Nacional tornou-se um campo de caça aos direitos dos povos indígenas, o que ficou evidente na CPI da Funai e Incra, que buscou criminalizar suas lideranças e seus aliados no Estado, no Ministério Público, nas igrejas e nas ONGs, além de propor a extinção da própria Funai como órgão de proteção dos povos indígenas e uma série de medidas que buscam inviabilizar as demarcações e os direitos dos índios. O principal instrumento que os ruralistas buscam aprovar no Congresso Nacional é a PEC 215 que, além de retroceder em todos os direitos já reconhecidos dos povos indígenas, pretende estabelecer a revisão e anulação de todas as terras indígenas demarcadas até hoje. A PEC 215 encontra-se tramitando na Câmara dos Deputados e pode a qualquer momento ir a plenário. O golpe parlamentar, no que diz respeito aos direitos indígenas e aos direitos humanos, apresenta-se como uma espécie de “vingança de classe” com relação à Constituição de 1988, revelando que as elites não aceitaram os avanços civilizatórios daquela Carta nem seus desdobramentos institucionais em termos de criação de políticas públicas nas últimas quase três décadas, sendo este momento o da busca de anulação de tais avanços e do atendimento das exigências mais radicais do latifúndio e do agronegócio.

A defesa dos direitos indígenas hoje se coloca, portanto, na perspectiva da defesa dos direitos humanos e da defesa da própria democracia. Não existe democracia num país onde os direitos de seus segmentos mais vulneráveis não estão garantidos; nesse sentido, o respeito ou não aos direitos indígenas são, ao lado dos direitos dos quilombolas e dos povos tradicionais, os melhores indicadores do nível de democracia alcançado pela sociedade brasileira. Povos que preexistiram ao Estado e à sociedade nacionais, a eles não pode ser dado o mesmo tratamento que foi dado pela metrópole à colônia séculos atrás, baseado no genocídio, no etnocídio e na incorporação forçada de territórios à lógica mercantil.

Povos resistentes, sobreviventes de ditaduras, de ciclos de violência do Estado e das frentes de expansão econômica, são sujeitos de direitos e protagonistas políticos, portadores de culturas e modos de ser e de se relacionar, dentro das comunidades e com a natureza, que podem se constituir em novos paradigmas para a sociedade brasileira. Suas histórias milenares nos enriquecem como povo e nos tornam mais aptos para a construção do futuro, no sentido inverso das características socialmente disruptivas e suicidas da nossa cultura atual e da lógica, esta sim selvagem, do capitalismo financeiro na sua fase neoliberal.

A defesa dos direitos indígenas deve estar articulada com um projeto de país democrático e respeitoso de sua sociodiversidade. Trata-se de não voltar atrás em nenhum direito humano e em nenhum direito indígena reconhecido, pelo contrário, devemos avançar e aprofundar nas regulamentações constitucionais, nas medidas legislativas, nas políticas públicas e nas decisões administrativas que garantam o direito fundamental à terra, ao território e à autonomia dos povos indígenas na participação política no presente e na construção de seu futuro. Foi o protagonismo indígena no Brasil que garantiu que centenas de povos milenares chegassem até os dias de hoje, com suas identidades e com sua imensa riqueza cultural. Esse mesmo protagonismo deve ser reconhecido e fortalecido pela luta democrática do conjunto da nossa sociedade por um novo país livre, justo e igualitário, pois estes povos têm muito a nos ensinar sobre liberdade, justiça e igualdade.

Paulo Maldos é psicólogo, conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP), trabalhou com povos e organizações indígenas de todo o país; foi secretário Nacional de Articulação Social da Secretaria Geral da Presidência da República (2010-2014) e secretário Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (2015-2016)

Do GGN

sábado, 13 de maio de 2017

A morte do Estado de direito e o fortalecimento do Estado penal

Dez de maio de 2017: o dia da vergonha. O dia em que o processo penal do espetáculo (nos dizeres de Rubens Casara) atingiu seu ponto máximo. Foi a demonstração de que o uso e a destruição da imagem de um ser humano (presumidamente inocente), para o deleite de uma plateia enfurecida pela desinformação generalizada espalhada diariamente pela grande mídia – movida unicamente por seus interesses empresariais –, em manifesta contrariedade ao que dispõe o art. 221, I, da Constituição Federal ¹, não encontram limites.

Nos últimos dias, os veículos de comunicação têm dispensado quase que 24 horas diárias de sua programação para divulgar o conteúdo de delações (que nem provas são) que supostamente incriminariam o principal réu da famosa ação penal. As informações e opiniões recorrentes dos grandes conglomerados midiáticos são todas no sentido da culpa inequívoca do acusado. Para eles, a condenação é questão de tempo. Não importam as provas, não importam os direitos ao contraditório e à ampla defesa; nada disso importa.

É nítida a intensão da mídia em manter a atenção da dita “opinião pública” (como se menos de dez famílias donas das maiores empresas de comunicação pudessem representá-la) nesse caso, pois, assim, tira-se o foco da destruição – a todo vapor – dos direitos sociais e trabalhistas levada a efeito pelo governo ilegítimo que se apossou do poder. Manter a população anestesiada, acreditando que a questão mais importante para o país é a acusação contra Lula é conveniente, para que os retrocessos intentados pelos atuais poderes da república (com iniciais minúsculas mesmo) não sejam percebidos pelos mais prejudicados.

Voltemos à operação.
Costumeiramente, operação é um nome dado a atividades policiais. Segundo nosso ordenamento jurídico, Polícia, Ministério Público e Judiciário cumprem papéis diversos na persecução penal. Se essas três estâncias agem conjuntamente, o Estado de Direito é enfraquecido. Se todos estão engajados em comprovar teses acusatórias, não há fiscalização mútua, própria de toda atividade estatal. Bem por isso, o Sub-Procurador Geral da República Eugênio Aragão defende a tese de que forças-tarefas como essa são inconstitucionais. E parece que tem razão.

O caso Lula, para uma análise séria e imparcial das práticas ilegais que passaram a ser adotadas no país, é emblemático. Outras hipóteses de arbítrio também poderiam ser citadas, como o da condução coercitiva de um jornalista para que divulgasse suas fontes (cujo sigilo é garantido constitucionalmente) ou o do empresário que ficou preso mais de seis meses preventivamente – perdendo emprego, casamento e convivência com a filha recém-nascida – para depois ser absolvido pelo Tribunal Regional Federal (apesar de isso acontecer cotidianamente com os clientes preferidos do sistema de justiça criminal) e tantos outros.

Mas para Lula, negou-se a existência do Estado de Direito. Negou-se a ele – e a sua família – a condição de cidadão, o que é gravíssimo.

A divulgação para a imprensa de conversas telefônicas – que nenhuma importância tinham para o processo –, entre o réu e a Presidente da República, entre ele e seu advogado e até mesmo entre sua esposa e um filho, foi uma das primeiras amostras do que estava por vir. Se dúvidas ainda há sobre a ilegalidade de tais providências, uma rápida leitura dos artigos 8º, 9º e 10 da Lei n. 9.296/96 espanca qualquer dúvida. O artigo 8º diz que deve ser preservado o sigilo das diligências, gravações e transcrições da interceptação, o artigo 9º estabelece que a gravação que não interessar à prova será inutilizada, e o artigo 10 prevê como crime quebrar segredo de Justiça de interceptações telefônicas, cominando pena de 2 a 4 anos de reclusão. Desnecessário recordar a opinião do falecido ministro Teori Zavascki sobre isso.

O espetáculo da condução coercitiva do acusado, sem que tivesse sido intimado anteriormente para depor, é outra demonstração do afastamento das regras processuais no feito criminal em comento. A condução coercitiva é permitida somente para o “ofendido” (art. 201, § 1º, do CPP) ou se, “regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado” (art. 218 do CPP). Não há margem para interpretação. Nada, rigorosamente nada, existe no ordenamento jurídico pátrio que permita uma condução coercitiva como as que vêm sendo realizadas. Se agentes públicos podem violar as leis, por que os investigados e acusados não podem?

Tantas arbitrariedades fizeram com que o réu perdesse sua esposa de forma triste. Graças à fúria persecutória que não enxerga seres humanos a sua frente, os últimos dias dela foram dos mais infelizes. É uma pequena amostra do que o Estado Penal (na expressão de Loic Wacquant) pode causar aos selecionados como inimigos.

Com relação aos abusos cometidos pela autointitulada “operação”, é importante lembrar da opinião de juristas do quilate de Celso Antonio Bandeira de Mello (Professor titular de direito administrativo da PUC-SP), para quem ela “está sendo conduzida com violação aos princípios fundamentais do Estado de Direito”²; de Fábio Konder Comparato (Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP), que a conceitua como um “acúmulo de ilegalidades”³; e até mesmo para o grande jurista italiano Luigi Ferrajoli, que disse, no Parlamento italiano, que a operação lava-jato não busca a verdade, mas sim “o consenso da opinião pública” (além de dizer que o processo de impeachment contra Dilma Rousseff foi “insensato e infundado”4).

Os direitos e garantias fundamentais devem estar à disposição de todos, inclusive de nossos adversários e inimigos (Lênio Streck5). Enquanto não enxergarmos o outro como uma extensão de nós mesmos, a tendência é afundarmos cada vez mais no voluntarismo daqueles que se julgam ungidos por uma força superior para salvar o país, mas, não obstante, nos estão levando para o fundo do poço.

Calar ante essa tragédia, e consequentemente compactuar com ela, é intolerável.

Gustavo Roberto Costa - Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e membro do Movimento LEAP-Brasil – Agentes da Lei contra a Proibição.

¹ Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

 Do DCM

terça-feira, 9 de maio de 2017

O brado da rua o vento leva, o da Constituição fica, Streck

Clamor da Constituição salva, o das ruas passa, diz jurista sobre caso Fachin-Palocci.

O jurista Lenio Streck avalia, em artigo publicado no Conjur, nesta terça (9), que a decisão de Edson Fachin em atender o clamor das ruas e retirar da 2ª Turma do Supremo o julgamento de recurso de Antonio Palocci foi um erro.

Para Streck, "Só o clamor da Constituição salva. O das ruas é passageiro. Clamor das ruas não tem cláusula pétrea. É volátil. Os mesmos que hoje amaldiçoam ministros que concedem habeas corpus são os mesmos que ontem os incensavam, porque era contra seus inimigos. E, sabemos, incenso queima logo. Ficam as cinzas."

"O caso Palocci instalou uma guerra midiática e jurídica. Na mídia e nas redes sociais, a questão jurídica passou a ser uma questão política. Não vou entrar nessa disputa. Fico com a parte jurídica. Como tenho feito. Assim, identificando o direito aplicável, tem-se uma questão incontroversa: quem julga HC é turma. Sim, turma do STF é juiz natural para julgar HC", apontou.

A decisão de Fachin, relator da Lava Jato no STF, ocorreu após a maioria da 2ª Turma conceder Habeas Corpus a José Dirceu, José Carlos Bumlai e João Carlos Genu, todos presos por Sergio Moro.

"Parece claro que, se não houver um padrão a ser seguido, isto é, um critério juridicamente consistente e predefinido, não pode o relator simplesmente escolher os casos que afetará ao plenário. Não é possível entender que a afetação depende de um ato discricionário", disse Streck.

Clamor das ruas ou da Constituição? Os casos Dirceu, Palocci e Bruno.
O mais importante jusfilósofo do século XX, Ronald Dworkin, perguntava, em casos de extrapolação nas decisões judiciais (ativismo), acerca de quanto estamos dispostos a pagar para que todos tenham direitos (e eu acrescento: inclusive nossos adversários ou inimigos). A minha pergunta, aqui, é a mesma que fiz no caso do juiz que resolveu, por sua conta e risco, que um pai de gêmeos podia usufruir, por conta da Viúva, 180 dias de licença paternidade. Eu indagava: quanto estamos dispostos a pagar? E agora pergunto, no caso Palocci: quanto queremos investir? Todos os nossos recursos democráticos? Vamos bancar que tipo de jogo? O jogo da Constituição ou o jogo do clamor das ruas? Ou da mídia?

Advirto a todos que, na famosíssima metáfora de Ulysses, este só se salvou das sereias porque ordenou que os marujos o amarrassem ao mastro e não obedecessem a nenhuma outra ordem em contrário. Sobreviveu. Será que sobreviveremos se continuarmos a tomar decisões ad hoc? Como bem disse o ministro Eros Grau (QO no HC 85.298-0-SP), por ocasião da tentativa do ministro Ayres Britto de levar um HC da turma ao Plenário, em situação parecida com esta do caso Palocci, comentando o argumento do “clamor público”: Para mim, o que importa é o clamor da Constituição. Isso em primeiro lugar”.

Só o clamor da Constituição salva. O das ruas é passageiro. Clamor das ruas não tem cláusula pétrea. É volátil. Os mesmos que hoje amaldiçoam ministros que concedem habeas corpus são os mesmos que ontem os incensavam, porque era contra seus inimigos. E, sabemos, incenso queima logo. Ficam as cinzas.

O caso Palocci instalou uma guerra midiática e jurídica. Na mídia e nas redes sociais, a questão jurídica passou a ser uma questão política. Não vou entrar nessa disputa. Fico com a parte jurídica. Como tenho feito. Assim, identificando o direito aplicável, tem-se uma questão incontroversa: quem julga HC é turma. Sim, turma do STF é juiz natural para julgar HC.

Portanto, para afastar a turma, teria de haver um fato novo, uma circunstância que fizesse o Plenário julgar qual tese — polêmica — prevaleceria, se a esgrimida pela 2ª ou da 1ª Turma (na sequência, explico isso). Por exemplo, a posição atual do STF (6x5 – HC 126.292 e ADCs 43 e 44) que poderia trazer um HC para o plenário seria a questão da prisão para condenado em segundo grau. Tratando-se de hipótese de HC em que ainda não há condenação em segundo grau, o próprio STF concede HC diária e normalmente. Aliás, assim foi o HC de José Dirceu. Não há condenação em segundo grau. Por isso, cada decisão depende do caso concreto. Por vezes, é a concretude do caso que define a concessão ou não. Só que o Plenário não serve para dirimir dúvidas de casos concretos.

O que quero mostrar é que a possibilidade de um habeas corpus ir ao Plenário não depende de ato discricionário do relator. Fosse assim e o relator escolheria o juízo. Só que isso transformaria o Relator em super-relator. Para resumir: o artigo 21 do RISTF, que trata dos poderes do Relator (XI – remeter habeas corpus ou recurso de habeas corpus ao julgamento do Plenário), não estabelece qualquer referência ao conteúdo do HC. Mas no artigo 22 existe a delimitação conteudística das hipóteses: relevante questão jurídica ou divergência de entendimento entre as turmas, ou entre estas e o plenário, ja existente ou a ser prevenida. Se é assim, a questão do “caso Palocci” é a seguinte: a divergência (real ou projetada) se dá com relação a qual questão juridicamente relevante? José Dirceu foi solto por questão de fato ou de direito? Quer dizer, foi solto porque se enunciou, abstratamente, “que ninguém pode ficar preso nas circunstâncias x e y” ou porque “no caso concreto não estão presentes os requisitos legais etc”? A resposta é que determinará o acerto ou o erro da afetação ao Plenário do caso Palocci.

Parece claro que, se não houver um padrão a ser seguido, isto é, um critério juridicamente consistente e predefinido, não pode o relator simplesmente escolher os casos que afetará ao plenário. Não é possível entender que a afetação depende de um ato discricionário.

Assim, a resposta adequada a Constituição vai na seguinte direção: a afetação ao Plenário pode ocorrer quando existir tese controvertida em discussão, até então não dirimida, ou se ocorrer que uma turma esteja julgando contra jurisprudência pacificada pelo Plenário (e veja-se, ainda, a importância do distinguishing agora adotado pelo novo CPC). Se não se diz a tese, não há motivo para a afetação ao Plenário. Mas não é só disso que quero tratar. Vejam a seguir.

Numa palavra: A Constituição como salvaguarda da política.
Quando no início deste artigo pergunto acerca do quanto queremos investir no direito no entremeio de uma crise política, faço-o para insistir em uma coisa na qual venho batendo há anos. Isto porque sigo uma linha de ortodoxia constitucional e legal. Uma lei só pode deixar de ser aplicada em seis hipóteses (ver aqui). Fora delas, o juiz-tribunal tem o dever de aplica-la. Não me importo de ser acusado de positivista. Quem diz isso não sabe o que é positivismo (para se ter uma ideia, no Dicionário que acabo de publicar, elenco dez tipos de positivismo, só para ver como isso é complexo).

De todo modo, os positivistas podem ajudar muito mais na preservação da democracia do que os sedizentes “pós-positivistas” brasileiros (na verdade, voluntaristas que “descobriram” que o juiz boca da lei morreu). Também não me ofendo quando me chamam de originalista. Discussão de lana-caprina. O que me importa mesmo é reafirmar que Direito não é moral. Que Direito não é política. Direito se abebera, é claro, destes elementos. Mas depois que está posto, pode sofrer interpretações a partir da aplicação a casos. O que o direito não pode é ser corrigido por argumentos políticos ou morais (“clamor das ruas” é argumento moral). Garantias e direitos constitucionais devem ser aplicados inclusive para os inimigos, se quisermos fazer uma afirmação retórica. Mas verdadeira. Alguém pode até dizer que, face ao estado de coisas em que estamos, já não se pode cumprir a Constituição e que essa só atrapalha. Bom, neste caso, vamos apostar na barbárie. Eu não quero apostar no caos.

Repetindo-me: Não posso nunca dizer, de antemão, que o réu é culpado. Em nenhum caso. Ou que o acusado deve ficar preso. Ou, de forma antecipada, que devemos negar um HC. Não tenho respostas antes das perguntas. O positivismo do século XIX é que queria ter todas as respostas antecipadas. E fracassou. De novo: Direito não pode ser aquilo que o intérprete diz que é. Aliás — e aqui vai o criptograma da dogmática processual — se digo isso, posso dispensar o processo. E assim estabeleço um paradoxo: se estou certo, ao mesmo tempo estou errado. Ou seja, se venço, perco. Por que? Simples. Porque se primeiro decido e depois fundamento, é porque o processo não importa. E se o processo não importa, estou confessando que a decisão depende só de minha opinião. E isso já não é direito.

Em síntese, nenhum réu pode depender do sorteio de relatores. E tampouco da disputa entre julgamento de uma turma e o Plenário. Aliás, cabe a pergunta: levar para o Plenário cabe também quando o HC é negado? Mais: com o saber antes se é caso de afetação? Por exemplo: o caso Bruno deveria ter sido julgado pelo Plenário? Não esqueçamos que Bruno está condenado em primeiro grau e não há condenação de segundo grau. Pois é. Querem algo mais polêmico do que dizer que a decisão do júri equivale a julgamento de segundo grau?[1] Isso não contraria o que o próprio STF decidira no HC 126.292? E quem negou o HC foi uma turma. E não o Plenário.

Para refletir, pois. E dizer em que queremos apostar: se no clamor das ruas ou no clamor da Constituição.

Do GGN