Estudo de caso (Logo da Rádio Coité FM)
No Brasil, as rádios
comunitárias desempenham um papel essencial na promoção e construção de
informação diversificada voltadas para as comunidades em que atuam. Estas,
normalmente, estão localizadas em regiões distantes dos grandes centros urbanos
-- e muitas vezes marginalizadas: comunidades rurais, indígenas, caiçaras e
favelas, onde aparecem como um espaço que possibilita a participação e
interação social a partir de experiências locais. Além da restrição legal para
funcionar com potência limitada -- máximo de 25 Watts -- que alcança apenas
pequenas comunidades ao redor e outras limitações que afetam o seu
funcionamento, as rádios comunitárias sofrem ainda com restrições que passam
pela face mais dura do Estado: o direito penal.
Este é o caso da Rádio
Comunitária Coité FM, localizada na cidade de Conceição de Coité, no interior da
Bahia. No último dia 8 de março, Zacarias de Almeida, mais conhecido como Piter
Junior, radialista e ex-diretor da Associação Rádio Comunitária Coité Livre FM,
foi condenado pela juíza Karin Almeida Weh de Medeiros, da Justiça Federal da
Bahia, à pena de dois anos de detenção (convertida em serviços comunitários) e
a pagar uma multa por ter mantido a rádio no ar sem autorização do Ministério
das Comunicações.
Na sentença, a juíza
não considerou que a Rádio Coité busca se regularizar há mais de 15 anos junto
ao Ministério das Comunicações e o fato de que o funcionamento da rádio não
causava nenhum dano ou interferência a outros sinais de radiodifusão. A
condenação de Piter é mais um exemplo do tratamento desproporcional que muitos
radiodifusores comunitários sofrem por exercer o direito à liberdade de
expressão.
A criminalização das
rádios comunitárias, contudo, representa grave violação à liberdade de
expressão e contraria os padrões internacionais que tratam sobre o tema.
Sabe-se que a liberdade
de expressão e informação são elementos essenciais dos sistemas democráticos e
por isso faz-se tão importante preservá-los e sempre impulsioná-los para que os
sistemas democráticos, muitas vezes frágeis, não retrocedam a regimes
autoritários.
Por esse motivo, a Relatoria
Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH), em seu relatório anual de 2014, reforçou que o uso do direito
penal para sancionar violações ao regime de radiodifusão é problemático ante a
Convenção Americana de Direitos Humanos. Sancionar criminalmente o exercício de
radiodifusão, seja comunitária ou comercial, é uma reação desproporcional do
Estado, ressalta a Relatoria[1].
Os mecanismos
internacionais apontam que devem ser utilizadas medidas menos gravosas à
liberdade de expressão para responsabilizar eventual ilícito na prática de
radiodifusão, tais como sanções administrativas ou civis. A própria Comissão
Interamericana de Direitos Humanos já declarou que muitas vezes a proteção por
vias penais de certos direitos em detrimento da liberdade de expressão são
medidas desnecessárias e desproporcionais, tendo em vista que o uso do processo
penal tem o forte e inibidor efeito de silenciar vozes essenciais ao debate
sobre assuntos de interesse social e público.
Segundo o consagrado
teste das três partes do artigo 19.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis
e Políticos, promulgado pelo Brasil em 1992, o exercício da liberdade de
expressão só pode ser sujeito a restrições expressamente previstas em lei e que
sejam necessárias em um Estado democrático para proteção dos direitos e da
reputação de outros, da segurança nacional, da ordem, da saúde ou da moral
pública.
O rol limitado de
exceções em que se considera legítimo restringir a liberdade de expressão se
justifica pois sem a possibilidade de emitir opiniões, receber informações e se
expressar livremente é impossível o exercício da cidadania. Assim, para
proteger o direito à liberdade de expressão os principais instrumentos
internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil são a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (artigo 19), o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos (artigo 19) e a Convenção Americana de Direitos Humanos
(artigo13).
O uso do Direito Penal
como forma de restringir de forma ilegítima a liberdade de expressão das rádios
comunitárias, entretanto, tem sido a regra adotada pelo Estado Brasileiro. Com
o objetivo de compreender como se dá a judicialização das questões ligadas às
rádios comunitárias no Brasil, a ARTIGO 19 realizou em 2011 uma pesquisa nos
Tribunais Regionais Federais (TRF's) das 5 regiões. Foram analisados 328
acórdãos julgados entre 01 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2010 [4].
A pesquisa evidenciou
uma predominância de processos de natureza criminal contra as rádios
comunitárias e viu-se pouquíssimos debates em torno da função essencial à
liberdade de expressão que tais rádios representam. Dos 328 acórdãos, 152 eram
de natureza penal, enquanto que 98 eram de natureza civil, 32 de natureza
administrativa e o restante discutia aspectos tanto cíveis, como
administrativos e constitucionais.
Constatou-se também que
há nos TRFs divergências quanto à legislação penal a ser aplicada aos
radiodifusores comunitários. Isto porque existem dois dispositivos penais semelhantes
que determinam penas diferentes para o exercício clandestino de
telecomunicação: o artigo 70 da Lei 4.117 de 1962, que institui o Código
Brasileiro de Telecomunicações, e que estabelece pena de 1 a 2 anos, aumentada
da metade se houver dano à terceiro, e o artigo 183 da Lei 9.427/97- a
Lei Geral de Telecomunicações (LGT), que estabelece pena de 2 a 4 anos,
aumentada da metade se houve dano a terceiro.
Em alguns TRFs o artigo
183 da LGT é aplicado pois há o entendimento de que, por ser mais recente, ele
revogou o dispositivo anterior. Foi com base neste artigo que Piter
Júnior, da Rádio Coité, foi denunciado pelo Ministério Público e condenado pela
Justiça Federal da Bahia. Em outros TRFs o entendimento é o de que se deve ser
aplicar o artigo 70 do Código Brasileiro de Telecomunicações por disciplinar
sanção mais amena aos radiodifusores que estiverem operando rádio comunitária
sem as devidas autorizações.
Uma corrente
minoritária, no entanto, entende que as rádios comunitárias não devem ser
regidas por leis penais visto que configura somente ilícito administrativo, não
se aplicando nenhum dos dispositivos citados anteriormente, já que desde 1998
existe regulamentação específica que determina o exercício das rádios
comunitárias no Brasil (Lei 9.612 de 1998), trazendo apenas sanções
administrativas em caso de ilícito. Dessa forma entendem que somente irão
aplicar-se sanções penais nos casos de rádios clandestinas (rádios comerciais
sem outorga) e não rádios comunitárias, que são aquelas que se caracterizam
pela baixa potência do rádio transmissor, pelos seus fins sociais e não
lucrativos.
Entendimento similar
foi encontrado em decisão do Supremo Tribunal Federal que defendeu a
sub-rogação das leis penais contra as rádios comunitárias tendo em vista a adesão
do Brasil ao Pacto dos Direitos Civis e Políticos. Tal fato implicaria na
necessidade de proteger a liberdade de expressão quando em conflito com outros
direitos (RE 556817 AgR, Relator(a): Ministro Eros Grau, 2ª Turma, julgado em
28/04/2009, DJe-099 DIVULG 28-05-2009 PUBLIC 29-05-2009 EMENT VOL-02362-08
PP-01517).
Decisões favoráveis às
rádios comunitárias, no entanto, não são a regra nos tribunais inferiores,
prevalecendo ainda a aplicação dos dispositivos penais, o que contraria
inclusive posicionamentos recentes do STF, que tem aplicado em diversas
ocasiões o princípio da insignificância. O entendimento é o de que não há
ofensividade na conduta ou mesmo remota possibilidade destas rádios de baixa
potência causarem prejuízos para outros meios de comunicação [5].
Apesar do princípio da
insignificância estar sendo cada vez mais adotado pelos ministros do STF, os
TRFs e juízes de primeira instância continuam desconsiderado a baixa
ofensividade da conduta para julgar ações penais contra rádios comunitárias.
No caso da rádio Coité,
a própria Anatel em seu laudo técnico reconhecia que a rádio não causava
nenhuma interferência prejudicial e nem risco à operação de qualquer outra
atividade. Mesmo assim, a juíza condenou Piter criminalmente por entender que “a
ausência de concreta potencialidade lesiva dos equipamentos utilizados na
atividade de radiodifusão não serve à descaracterização do crime”, uma vez que
seria um crime que independe de qualquer resultado naturalístico (crime de
perigo abstrato ou crime formal), na contramão do entendimento da cúpula do
Judiciário [6].
Além disso, nas
decisões analisadas na pesquisa, verifica-se que pouco se ventila a respeito da
função social que as rádio comunitárias exercem, de levar informações de
utilidade pública para as comunidades em que se inserem (como campanhas de
vacinação, por exemplo), ou sobre a sua importância para a liberdade de
expressão e participação social. A maioria das decisões é padronizada e pouco
analisam sobre a realidade das rádios e de suas comunidades.
Isto demonstra o viés
criminalizador que o poder público trata estas rádios e a não observância aos
padrões internacionais que garantem a liberdade de expressão.
Excessiva demora
A fim de promover o exercício do direito à liberdade de expressão por meio das
rádios comunitárias, as Relatorias Especiais da ONU, OEA, AU, e OSCE já
enfatizaram que "a radiodifusão comunitária deve estar expressamente
reconhecida na lei como uma forma diferenciada de meios de comunicação, deve
beneficiar-se de procedimentos equitativos e simples para a obtenção de
licenças, não deve ter que cumprir com requisitos tecnológicos ou de outra
índole severos para a obtenção de licenças, deve beneficiar-se de tarifas de
concessionária de licença e deve ter acesso a publicidade" [3].
Contudo, um dos maiores
problemas que as rádios comunitárias enfrentam para regularizar a sua situação
e evitar os processos criminais é a excessiva demora e burocracia por parte do
Ministério das Comunicações em analisar os pedidos de outorga feito por elas.
Isto explica, em parte, porque muitas dessas rádios iniciam suas atividades
antes da análise dos pedidos, que chegam a ultrapassar uma década.
A Rádio Coité possui um
histórico especialmente emblemático nesse aspecto, pois busca a sua
regularização há quase 20 anos. O primeiro pedido de outorga feito pela rádio
em 1999 foi somente analisado pelo Ministério das Comunicações(MiniCom) em
2009, quando foi informada que novo pedido deveria ser encaminhado por suposto
erro nas coordenadas geográficas.
Após o arquivamento,
mais dois pedidos de outorga foram feitos para regularizar a situação da rádio.
O último, feito em 2013, teve o seu arquivamento anunciado no início desse ano
sob a justificativa de que a rádio já estava no ar enquanto aguardava a
autorização. A Rádio Coité recorreu dessa decisão alegando que passou a
funcionar devido à omissão do Ministério em analisar o pedido de outorga e
aguarda até o momento resposta.
Neste aspecto, a
pesquisa realizada pela ARTIGO 19 revela que há entendimento comum em todos os
TRFs quanto à impossibilidade do Judiciário intervir diretamente na concessão
de outorga às rádios comunitárias diante da demora e omissão do Executivo, uma
vez, que caso interviesse, haveria invasão da competência do MiniCom por parte
do Judiciário. Os TRFs entendem, no entanto, que o Judiciário poderia
fixar um prazo para que os pedidos fossem analisados.
Esse foi o
pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça que evidenciou a configuração de
abuso de direito em hipótese de demora injustificada do MiniCom na análise do
pedido de outorga: “é fato que a análise dos requisitos para a outorga da
autorização de funcionamento de rádio comunitária não pode perdurar por tempo
indeterminado, situação que configuraria verdadeira deferência ao abuso de
direito, devendo ser fixado prazo para a completa análise do pedido formulado
administrativamente”[7].
Este quadro apresentado
demonstra que urge ao Estado brasileiro modificar sua forma de tratamento às
rádios comunitárias, a fim de concretizar os compromissos internacionalmente
firmados para a garantia da liberdade de expressão. Para isso, deve de um lado,
facilitar e responder em um prazo razoável aos pedidos de outorga, criar políticas
públicas de fomento e incentivo às rádios comunitárias; e de outro, não se
utilizar do direito penal para criminalizar as rádios comunitárias que aguardam
indefinidamente o resultado de seus pedidos.
Por Pedro
Teixeira Siqueira, Camila Marques e Karina Quintanilha - GGN
Referências:
[2] Corte I.D.H., A
Colegiación Obligatoria de Periodistas, Opinião Consultiva OC-5/85 de 13 de
novembro de 1985. Serie A No. 5, par. 31.
[5] Neste sentido o HC
104.530, Rel. Min.Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 28.09.2010, o
HC 111.250 MC, Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 23.11.2011, o HC 115.729,
Rel. Min. Ricardo Lewandoski, Segunda Turma, julgado em 18.12.2012 e o RHC
119.123, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, julgado em 13.03.2014.
[7] AgRg no Recuro
Especial Nº 1.043.779 - SC (2008/0066876-6)
***
Pedro Teixeira Siqueira
é advogado associado ao escritório Bichara Advogados
Camila Marques é
advogada e atua no Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão da
Artigo 19.
Karina Quintanilha é
advogada e integrante da organização Artigo 19