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quarta-feira, 10 de abril de 2019

80% DAS APOSENTADORIAS NO CHILE ESTÃO ABAIXO DO SALÁRIO MÍNIMO, DIZ ESPECIALISTA CHILENO

Pela lógica deste sistema toda a culpa é da pessoa. Se não tem um bom emprego, a culpa é tua; se o salário é baixo, a culpa é tua; se a Bolsa caiu, a culpa é tua; se aumentou a expectativa de vida, a culpa é tua; se não há um sistema de proteção, a culpa é tua.
Foto: EFE
Por Felipe Bianchi e Leonardo Wexell Severo
Do Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul
“Apesar dos subsídios estatais, 80% das aposentadorias pagas no Chile estão abaixo do salário mínimo e 44% estão abaixo da linha da pobreza. O sistema fracassou e seria uma completa loucura implementá-lo no Brasil”, afirmou Andras Uthoff , consultor do Instituto Igualdad e professor da Universidade do Chile.
Doutor em Economia pela Universidade de Berkeley, ex-assessor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), Uthoff avalia que “o sistema de capitalização tem levado multidões às ruas, pois empobrece idosos e nega direitos, enquanto é extremamente rentável às Administradoras de Fundos de Pensão (AFP)” . Devido à “falta de transparência” e à “desinformação” ditada pelos conglomerados midiáticos, que respondem aos “poderes econômicos e financeiros”, “as pessoas não se dão conta do quão mau é este sistema até que se aposentem”.“A realidade está se impondo, demonstrando que a capitalização é um desastre. A realidade é nossa melhor aliada”.
Uthoff recebeu os jornalistas do ComunicaSul* na sede da CUT Chile, em Santiago, nesta terça-feira (9). Confira a íntegra da entrevista.
O sistema de Previdência chileno está em colapso?
É, sem dúvidas, uma crise muito forte. O sistema das AFP não cumpriu a sua promessa. A promessa era simples: o participante desse modelo poderia aposentar-se com 70% do seu último salário. A média do que o sistema paga, hoje, é de 35%. Muito abaixo do prometido. Especialistas em fundos de pensão dizem que, com a atual estrutura, o sistema não tem como melhorar, pois não superará esses números.
Estamos no meio de uma ampla discussão, no Chile, sobre qual será o futuro desse modelo. Há uma ofensiva ideológica que quer colocar ainda mais dinheiro nas AFP, para consolidá-las e aprofundá-las. Por outro lado, estamos dizendo que é necessário dar fim a este modelo e apostarmos em alternativas. É um momento crucial para falarmos sobre o assunto.
No Brasil, diríamos que isso é “privatizar os lucros e socializar os prejuízos”.
Exato. É precisamente isso o que ocorre no Chile. E uma das questões que considero muito importante para o Brasil é algo que discutimos muito aqui nos anos 1990: fazer uma transição para um modelo como o chileno é extremamente caro. Você precisa se encarregar de resolver a questão das contribuições feitas no sistema antigo, o que tem um valor altíssimo. É dívida certa. No Chile, esse passivo custou três vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do país – e o cidadão é quem paga por isso.
O que você tem a dizer sobre a prática de especulação por parte dessas empresas estrangeiras?
Não acho apropriado falarmos em especulação, pois o sistema é bem regulado em relação a investimentos por parte desses instrumentos financeiros. O que preocupa é que classificadores de risco orientam: AFP não podem fazer exatamente o que querem. O que questionamos é que o impacto real da contribuição no Chile é nulo. 40% dos fundos de pensão estão investidos no exterior, e não no Chile. Os outros 60% não são investimentos reais, mas meros instrumentos financeiros que não causam nenhum impacto na economia real do país.
O próprio ministro do Trabalho, Nicolás Monckeberg, reconhece publicamente a insustentabilidade deste sistema, apesar de sugerir remédios amargos para curar a doença. Se no Chile há uma ideia de que este modelo fracassou, o que te parece o Brasil, em 2019, propor a sua implementação?
O que tenho a dizer é que é uma completa loucura implementar um sistema nos moldes da Previdência chilena. É um sistema que vai na contramão do que significa a Seguridade Social. Você transforma um sistema baseado nos direitos do cidadão em um mercado obrigatório de contribuição. Ou seja, para quem não conseguir contribuir, o direito é negado. A grande maioria dos chilenos, hoje, não possui condições de contribuir regularmente. Apesar dos subsídios estatais, 80% das aposentadorias pagas no Chile estão abaixo do salário mínimo, e 44% estão abaixo da linha da pobreza. É um sistema que empobrece os idosos.
No Brasil, está na moda falar em “fake news”. É manipulação o superministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, classificar o modelo chileno como um sonho, uma fábula a ser copiada?
Em primeiro lugar, o modelo de Previdência do Chile é difícil de copiar, pois é um modelo que se implementa em ditaduras. Se não está numa ditadura, é muito difícil impor algo desse tipo. E eu, sinceramente, não quero e nem recomendo ao Brasil o retorno à ditadura. Em segundo lugar, também venderam muitas promessas ao povo chileno. O trabalhador receberia 70% de seu salário, algo que nunca aconteceu. É um sistema que se baseia em ilusões. Guedes pode dizer o que quiser e terá 30 anos, pelo menos, para que não seja desmentido. Mas eu posso te assegurar que não será como ele disse.
Recentemente, houve um bate-boca, na Câmara dos Deputados do Brasil, porque um parlamentar da oposição mencionou o aumento da taxa de suicídio entre idosos no Chile. Paulo Guedes foi à loucura, dizendo que era “fake news”. Guedes é íntimo da BTG Pactual, uma das intermediadoras financeiras que lucram com as AFP. Que interesses há por trás dessa reforma que Guedes defende, afinal?
Claramente, a intenção é poder administrar uma bela fatia do PIB do país, que é a contribuição dos trabalhadores. Fazê-lo através de uma intermediadora financeira como a BTG Pactual é um ótimo negócio. Não só porque você favorece seu grupo dentro da regulação estabelecida, mas também porque é um modelo puramente rentista. O trabalhador paga a sua parte independentemente se o sistema vai ou bem ou mal. Ele paga e, em consequência, a administradora sempre tem ingresso e ganha dinheiro. O investimento cai, mas a rentabilidade das AFP segue em alta.
Aqui no Chile, as AFP recuperavam seu patrimônio em quase quatro anos. Uma taxa de retorno de quase 25% ao ano. Isso, agora, está diminuindo um pouco com a concorrência. Mas esse é o grande problema: ao invés de estarmos falando sobre direitos fundamentais do cidadão, estamos discutindo como você administra uma indústria de pensões. Deixamos de falar sobre Seguridade Social há muito tempo.
Como a BTG Pactual, de Paulo Guedes, está envolvida na questão das AFP chilenas?
A BTG Pactual pertence a um dos grupos financeiros vinculados às AFP. Fazem um trabalho financeiro que é bem regulado no Chile. A questão é: qual a utilidade disso para garantir boas aposentadorias para os cidadãos chilenos? Qualquer um pode falar bem ou falar mal do papel jogado pela BTG Pactual ou qualquer outra intermediadora financeira. A questão é: o que isso colabora com a Previdência? No Chile, a resposta está longe de ser boa. A boa rentabilidade das AFP é inversamente proporcional às péssimas aposentadorias obtidas pelo cidadão chileno.
Quais os caminhos para superar este problema no Chile?
Há muita gente pensando alternativas para este modelo. Eu tenho uma proposta, mas há várias outras na mesa. Sou partidário do conceito de sistemas multipilares, mistos, típicos da social-democracia europeia. Eu creio que o Brasil tem um pouco disso. Eu não transformaria o sistema do Brasil, talvez apenas o melhoraria. Não o reestruturaria para um sistema de capitalização exclusivo, como o governo brasileiro deseja fazer.
Por outro lado, há outras propostas, como a da organização No+AFP, que vem mobilizando muita gente. Eles advogam por um modelo de repartição tripartite. As mobilizações no Chile respondem a um profundo descontentamento com o sistema, não a uma solução. Ainda não há acordo sobre qual caminho é melhor, mas há pleno consenso de que estamos empobrecendo. É um grande debate. Por ora, o desafio é responder, com argumentos técnicos, a proposta de reforma apresentada pelo governo de Sebastian Piñera.
Qual a sua visão sobre o alto índice de suicídios entre os idosos no Chile?
Para ser sincero, passei a dar mais atenção para este tema recentemente. As pesquisas mostram, de fato, que há um crescimento no índice de suicídios de idosos no Chile. As razões são bem claras. Você soma a aposentadoria ínfima paga pelo sistema chileno ao fato de se tornar dependente de alguém, isso resulta em uma pessoa pobre e vulnerável. Apesar de não ser especialista no tema, me parece óbvio que isso favorece quadros de depressão.
Os oligopólios midiáticos de nosso continente são muito íntimos dos banqueiros. Há uma campanha midiática muito forte, no Brasil, em defesa da reforma da Previdência. Qual a sua avaliação sobre o papel que os meios de comunicação tiveram e ainda têm no Chile sobre este tema?
Lamentavelmente, o Chile se encontra totalmente fragmentado – socialmente, fisicamente e intelectualmente. Se você for a um seminário sobre sistema de pensões em um lugar chamado Casa Piedra, onde só se reúnem empresários, certamente só escutaremos maravilhas sobre esse sistema, que ele deve manter-se intocado, coisas assim. No mundo do trabalho e no movimento sindical, que são os donos dos fundos de pensão, que são os trabalhadores, há um profundo descontentamento. São dois mundos que não se comunicam. Por um lado, há um bom negócio. Por outro lado, temos um problema de economia política. Há duas avaliações do sistema completamente destoantes. Estamos neste debate ideológico de seguir implementando um modelo que pode ser muito bom para um grupo ou voltar a um sistema de Seguridade Social.
O tema ganha espaço no debate público à medida em que se aprofunda o drama. A própria realidade impõe o tema na agenda.
O fato é que ao sairmos de 17 anos de uma ditadura brutal, as pessoas têm medo. E hoje as pessoas têm medo de perder emprego. Então as formas de protesto são cuidadosas, de como se expõem contrárias aos empresários. Porque isso está muito segmentado, ideologicamente segmentado, quase uma luta de classes, em que os empresários apoiam o modelo e os trabalhadores se opõem. É isso o que acontece e as pessoas têm medo.
E o papel dos meios de comunicação na falsificação e na invisibilização das informações?
Veja, este é um tema essencial. Quando existem poderes fáticos que se tornaram poderes econômicos e financeiros, percebe-se que vão pouco a pouco cooptando as pessoas. Porque falar como as coisas realmente são terá um custo, porque as pessoas têm medo de perder seu emprego, pois trabalham em um BTG Pactual ou numa instituição destas e não vão poder falar. Não se atrevem a dizer as coisas como são. Tenho colegas que em momento de eleições têm apoiado candidaturas e posteriormente em seus negócios perderam clientes.
Pensa que esta lógica consegue ser mantida por muito tempo?
Acredito que estamos começando a romper o cerco com as mobilizações, que começam a nos dar palanque, a abrir espaço para que sejamos ouvidos e não identificados como loucos. A realidade está se impondo, demonstrando que este sistema é um desastre. A realidade é nossa melhor aliada.
A maioria da classe média no Chile sente-se vitoriosa se consegue comprar uma moradia. Se vive num edifício, é preciso pagar o condomínio. Atualmente as pessoas estão tendo que sair dos seus apartamentos, ir viver com familiares ou voltar para o campo porque não conseguem pagar sequer o condomínio. Mas a imprensa não informa sobre estes fatos. Se não há mobilizações e se não há denúncias, isso passaria despercebido.
A mídia atua para desinformar.
Por esta falta de transparências as pessoas não se dão conta do quão prejudicial é este sistema até que se aposentem. Quando chegas aos 65 anos podem dizer que você juntou 150 mil dólares. Fantástico, pensa o trabalhador, que nunca viu tanto dinheiro acumulado. Então diz: me deem, vou comprar um apartamento. Não pode, não é teu para fazer qualquer coisa. É teu somente para passar à seguradora ou à AFP para que te deem uma pensão. Te dá a sensação de que eles compram o apartamento, te alugam e te baixam a pensão. E são eles que ficam com o apartamento. Então até o momento de que você se aposenta, não se dá conta da situação em que se encontra. Chegam com um montão de assessores e não há um Estado para dizer se estão te assessorando bem ou assessorando mal e que com esses 150 mil dólares vais ter uma aposentadoria que é 30% do seu salário. Com sorte. É o cúmulo.
Na última mobilização havia uma jovem com um cartaz dizendo “Não quero que o meu futuro seja como o presente de minha avó”.
Tenho acompanhado muitos debates com o Partido Socialista nas comunidades e uma jovem me disse: veja, isso não nos ensinam nas escolas nem nas universidades, a gravidade deste sistema em que nos meteram. É exatamente isso, tens que ver a forma como seus avós está vivendo para poder se dar conta do que está passando.
Pela lógica deste sistema toda a culpa é da pessoa. Se não tem um bom emprego, a culpa é tua; se o salário é baixo, a culpa é tua; se a Bolsa caiu, a culpa é tua; se aumentou a expectativa de vida, a culpa é tua; se não há um sistema de proteção, a culpa é tua. Isso precisa mudar.
* O Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul está no Chile com os seguintes apoios: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé,  Diálogos do Sul, Federação Única dos Petroleiros (FUP), Jornal Hora do Povo, Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, Sindicato dos Metroviários de São Paulo, CUT Chile e Sindicato Nacional dos Carteiros do Chile (Sinacar).
GGN

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

A CAPITALIZAÇÃO DA PREVIDÊNCIA COMO O PRIMEIRO PASSO RUMO À PRIVATIZAÇÃO

Entenda como funciona o sistema de capitalização que Paulo Guedes replicou do Chile e quais os riscos para as garantias das futuras gerações de trabalhadores brasileiros.
Por trás do discurso de “sustentabilidade econômica” para o país conseguir pagar as aposentadorias dos brasileiros, frase que resumiu a apresentação do governo Bolsonaro para a Reforma da Previdência, nesta quarta-feira (20), o pilar das modificações do sistema de previdência social está no fim do chamado “regime de solidariedade” para migrar a um sistema que funcionará pela capitalização.
Trata-se do primeiro passo neoliberal da administração das aposentadorias. O próximo é a privatização completa, perdendo a sua função social e tornando-se um jogo de sobrevivência dos trabalhadores nas mãos do mercado. 
Além de efeitos práticos de alguns pontos da reforma que impõem barreiras para aposentadorias, expostos no GGN, um trecho publicado na quarta página das mudanças apresentadas traz a dimensão da reforma:
Em outra página do texto, o modelo é explicado no artigo 201-A:

Na prática, o discurso de “sustentabilidade” defendido por Paulo Guedes e a equipe econômica de Jair Bolsonaro nesta quarta-feira é, na verdade, a tentativa de equilibrar as contas públicas, com a redução do impacto no Orçamento das quantias destinadas às aposentadorias, e a garantia de que em dezenas de anos o modelo ainda será “pagável”. O que não foi claramente dito é que o preço dessa “sustentabilidade” ou “viabilidade” será pago diretamente pela população.
Ainda que não seja um modelo completamente privado, como ocorre no Chile, por exemplo, em que o controle e a administração desses recursos destinados mês a mês pelos trabalhadores são feitos por empresas privadas, nesse modelo sugerido pela equipe de Bolsonaro o Estado se ausenta de aportar para o pagamento das aposentadorias e, por isso, é sustentável em termos de recursos públicos.
E juntamente com essa ausência de responsabilidade estatal, os cidadãos perdem automaticamente certas garantias. Para entender como funciona a experiência latino-americana de entrega do benefício social ao neoliberalismo, basta verificar o que ocorreu com o Chile, exemplo de fracasso após o sistema previdenciário ficar nas mãos do mercado.
Durante a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), o Chile tornou-se um experimento de políticas neoliberais na América Latina, entregando grande parte de suas políticas sociais a setores privados. Nessa busca por enxugar as contas públicas e instaurar o Estado mínimo, como hoje se enquadram as propostas do governo Bolsonaro, os mais de trinta anos que se passaram revelam o fracasso das tentativas.
Apesar de o Chile ter atravessado um cenário de completa falta de fiscalização, pela ausência estatal, e com o controle por meio de agências e fundos 100% privados nas finanças de cada cidadão, o que ainda não é a proposta final apresentada pela equipe de Bolsonaro, ela tem este objetivo e já usa como base o sistema de capitalização.
Nesse modelo, as contribuições obrigatórias mensais dos trabalhadores são geridas individualmente. Na experiência fracassada chilena, Paulo Guedes inclusive foi um dos mentores, ao auxiliar as mudanças no país durante a ditadura de Pinochet, a convite de técnicos da Escola de Chicago, berço do neoliberalismo.
O risco da capitalização está no fato de que se um trabalhador não conseguir angariar o suficiente para a sua aposentadoria, mesmo completando a idade determinada, os recursos serão insuficientes para sustentar o restante de sua vida, cenário que analistas acreditam ter contribuído para consolidar o Chile como um dos países recorde de suicídios entre idosos a partir de 80 anos.
Uma série de pontos na reforma apresentada hoje tenta diminuir esse efeito de falta de fundo necessário para o indivíduo sobreviver com a aposentadoria acumulada. Isso porque uma espécie de transição será implementada paralelamente à modificação completa.
Nessa transição, estão previstos, por exemplo, a “garantia de piso básico, não inferior ao salário-mínimo para benefícios que substituam o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho, por meio de fundo solidário, organizado e financiado nos termos estabelecidos na lei complementar de que trata o art. 201-A da Constituição”. Ou seja, um tipo de mistura entre o sistema solidário e o capitalizado.
Por outro lado, o cenário mais extremo não deixa de ser a clara intenção do governo de Jair Bolsonaro. Isso porque o fracasso no Chile – ainda alvo de constantes protestos no país para a sua modificação – é a proposta de Paulo Guedes para as futuras gerações de aposentados no Brasil, aqueles que ainda não estão vinculados ao sistema atual.
Diz trecho da reforma:
Como se já não estivesse claro o objetivo da migração completa, para as próximas gerações, Paulo Guedes também estabelece na reforma da Previdência que a gestão dessas contribuições individuais e capitalizadas passará a ser feita por “entidades de previdência públicas e privadas”. Ou seja, o monopólio da previdência tal como ocorre no Chile está previsto no Brasil.
O texto ainda detalha que o cidadão terá a “livre escolha da entidade [privada ou estatal] ou da modalidade de gestão das reservas, assegurada a portabilidade” e, também, a “impossibilidade de qualquer forma de uso compulsório dos recursos por parte de ente federativo”, ou seja, veda que o governo seja o administrador destes recursos, condições estas que replicam o formato do país latino-americano.
GGN

segunda-feira, 20 de março de 2017

A PF e a briga por holofotes, a carne é fraca não resiste uma câmera

A carne fica fraca mesmo é quando vê os holofotes, por Lenio Streck*
O jurista Lenio Streck avaliou como um erro a conduta da Polícia Federal ao anunciar, com estadarlhaço, a operação Carne Fraca, que investiga esquema de pagamento de propina para burlar a fiscalização do Ministério da Agricultura em empresas produtoras de carne.

Nesta segunda (20), três dias após a notícia se espalhar por jornais de todo o mundo, os produtos brasileiros já foram bloqueados na China, Coreia do Sul, Chile e está sob ameaça na Europa.

Para Lenio Streck, se a PF continuar achando que operações desse tipo estão fazendo bem ao País, vai acabar como o Rei Pirro: quebrado em função de suas próprias vitórias inúteis.

No Conjur
Para introduzir o tema, lembro um fato bizarro. Em batalha que venceu em 280 AC, o Rei Pirro disse, respondendo a um indivíduo que lhe demonstrou alegria pela vitória: "Mais uma vitória como esta e estarei arruinado completamente". E disse isso apontando para o que restou de suas tropas.

Pois no Brasil parece que logo chegaremos a uma etapa pírrica (é pírrica e não pirrônica, que é outra coisa) das operações com nomes fantásticos da Policia Federal autorizadas pela Justiça. Cá para nós, há exageros midiáticos que correm o risco de serem pírricos. Não gosto de teorias conspiratórias, mas já passamos por isso em relação ao café e às febres suínas e coisas do gênero. Querem ver? A Polícia Federal — claro que com ordem judicial — encontrou problemas em 21 unidades produtoras de carnes, num total de quase cinco mil empresas (unidades de produção), e suspeita de crimes praticados por 33 servidores, num universo de 11 mil funcionários do Ministério da Agricultura.

Resultado: pelo estardalhaço e a generalização feita, a imagem do país ficou comprometida, a ponto de o presidente da República reunir gente no domingo buscando acalmar os mercados internacionais. Dizem até que ofereceu churrasco feito com carne argentina. Mas não é disso que quero tratar.

Trago à colação o que pensa o setor agropecuário disso, nas palavras de Francisco Turra, ex-ministro da Agricultura, que disse: Não dá para a gente generalizar e vender a imagem de que tudo é ruim, de que tudo é corrupto, corrompido e corruptível. Para abrir mercado lá fora, a média tem sido de quase dez anos de luta. A maior injustiça do mundo é jogar na lata do lixo todo esse trabalho, denegrindo o esforço de muitos durante décadas.

Disse mais: somos os maiores exportadores de carne bovina. É um absurdo nivelar tudo, generalizar, vender a ideia de que no Brasil nada presta, de que tudo é podridão, é errado, nada está na conformidade da lei. Quando é justamente ao contrário: somos o país que tem a melhor biosseguridade.

Parece que, com exceção da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e do Poder judiciário, há uma quase unanimidade de que houve exagero (ver também aqui: criminalista vê irresponsabilidade nas acusações à carne brasileira) . Pergunto: por que precisa haver entrevista coletiva? Por que divulgar diálogos resultantes de escutas telefônicas, se a lei não permite essas divulgações? Não entendi também por que foi possível interceptar o ministro da Justiça (na ocasião da intercepção, era deputado federal). Ele não tinha foro por prerrogativa de foro? Como divulgaram a sua fala? Parece que a divulgação ilícita de interceptações fez e faz escola. Já não aprenderam suficiente com o episódio das escutas da ex-presidente Dilma, do ex-senador Demóstenes, tudo anulado pelo Supremo Tribunal Federal?

Depois do famoso power point, parece que há uma disputa para ver quem faz mais pirotecnia. Falta só ter trilha sonora, tipo Cavalgada das Valquírias ou Crepúsculo dos Deuses como abertura da coletiva. Imaginemos que isso vire regra e as generalizações também. Se alguns policiais forem pegos em uma operação, vale uma entrevista coletiva colocando toda a polícia na berlinda? Se pegarem juízes ou promotores envolvidos em irregularidades, vale fazer coletiva colocando todo o Poder Judiciário e o Ministério Público sob suspeita? Alguns jogadores são pegos no antidoping. Vale colocar na berlinda a lisura das disputas do Campeonato Brasileiro, a maior competição do mundo?

Se a resposta é não — e, para mim, é, efetivamente, “não, não pode fazer isso” — então também a Polícia federal não poderia ter feito o noticiamento dessa operação “carne fraca” desse modo. Parece que a carne é fraca mesmo diante de holofotes e exclusivas na GloboNews, para o gáudio dos filósofos brasileiros-alemães Birbaum (Pereira) e Kabina (Camarote).

Cuidemos para que não repitamos o “vitorioso” Rei Pirro. Temos de vencer, mas sem perder as tropas. Não precisamos jogar fora a criança junto com a água suja. Sim, o Brasil pode até ser uma chinelagem. Mas é meu país. É nosso país. Como na anedota: a mulher diz para a vizinha — sim, comadre, sei que meu marido é tudo isso que você diz; mas é meu. Em minha casa eu e ele resolvemos isso (usei o exemplo ao contrário do que se fala no imaginário popular, para evitar ser acusado de sexismo — hoje em dia isso pode dar coletiva).

Nosso sistema de fiscalização de carnes está com problemas? OK. Mas em que grau? Podemos generalizar isso, com pi(r)rotecnia, a ponto de prejudicarmos o país no mercado internacional? Pirro rima com pi(r)rotecnia.

Imaginemos uma entrevista coletiva contando quantas mortes ocorreram no final de semana nas capitais. Nem isso deve ser generalizado, embora os números assustem. Caso contrário, fizéssemos um power point disso, ninguém mais viria para o Brasil. E nós mesmos fugiríamos para as montanhas. E estocaríamos comida. Gente: vamos tocar o país para a frente.

Nota: agora, segunda-feira (20/3) à tarde, uma TV italiana, em programa de culinária, tirava onda com a carne brasileira. Estamos na boca do mundo; mientrastanto que escrevia este texto, fiquei sabendo que o Chile cancelou as importações de carne; e a União Europeia não quer carne dos frigoríficos listados na operação. Fora outras defecções. Bingo.

Como diz o Rei Pirro...

Com informações do GGN, por Lenio Luiz Streck, jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.