Peça 1 – os antecedentes do processo
de concentração da mídia
Em 10 de
novembro de 1996, em minha coluna na Folha, sob o título “A
globalização da mídia”, alertei para os efeitos das novas tecnologias no
mercado de mídia, e os riscos de uma concentração excessiva de poder nas mãos
da Globo.
Dizia
Nos próximos
anos, será a vez de a mídia entrar na dança da modernização e das grandes
fusões que estão marcando a imprensa, em nível mundial..
No Brasil, será um dos últimos setores a sentir na própria carne os efeitos da
globalização. E o resultado final poderá ser bom tanto para a mídia como para o
Brasil, desde que se estabeleça um equilíbrio nesse jogo.
(...) Se não
houver reação dos demais grupos, essa acumulação de forças poderá provocar o
monopólio virtual da comunicação no Brasil, algo que não interessa nem aos
concorrentes nem ao Brasil.
Mesmo que em
seu segmento de atuação, individualmente, cada concorrente tenha uma operação
específica mais competente ou, no mínimo, competitiva em relação à Globo, a
soma de forças do complexo poderá desequilibrar a competição em todas as
frentes, seja em jornal, editora ou televisão.
É essa
ameaça que deverá levar nos próximos anos, inevitavelmente, a dois processos
complexos. Numa ponta, a uma ampla política de fusões e alianças estratégicas,
entre grupos nacionais e estrangeiros, da qual resultará novos supergrupos de
comunicação.
Na outra, a
uma batalha política para colocar limites ao poder da Globo, já que há o risco
concreto de que assuma o controle virtual da mídia no país.
Houve reação
imediata de outros grupos ao meu artigo.
O presidente
do grupo Silvio Santos, Luiz Sebastião Sandoval, me contratou para uma palestra
para os principais executivos e, para minha surpresa, queria me enviar para
análise os planos estratégicos das quatro maiores empresas do grupo. Disse-lhe
que não era consultor e, além disso, trabalhava para uma emissora concorrente,
a TV Bandeirantes.
Ele me
explicou a razão do convite. Queria que eu ajudasse a levantar argumentos que
permitissem aos executivos convencer Silvio Santos sobre a necessidade de se
preparar para o novo tempo.
Do lado da
Folha, Otávio Frias de Oliveira me incumbiu de um trabalho complicado. Queria
que eu intermediasse um contato com João Saad, da TV Bandeirantes, para uma
proposta de aquisição de parte do capital da Rede Bandeirantes, pela Folha e a
Abril. Ainda não tinha havido o rompimento entre ambos, por conta da
capitalização da UOL.
Conseguiu me
indispor com herdeiros dos dois lados. Mas valeu pelo enorme prazer de
testemunhar dois pioneiros da mídia – Frias e Saad – relembrando episódios
políticos, especialmente do período Ademar.
João Saad me
ofereceu a ancoragem do Jornal da Band e o papel de consultor do filho Johnny,
que estava retornando ao grupo após um período afastado. Com problemas com
minha empresa, a Dinheiro Vivo, e porque o convite feriu suscetibilidades do
Johnny, acabei recusando a proposta. Retornando de Nova York, Paulo Henrique
Amorim assumiu a ancoragem.
Ainda fui
mensageiro de outra proposta de parceria, do jornal O Dia, que pretendia
assumir a TV Bandeirantes do Rio de Janeiro.
Enfim, conto
apenas o que testemunhei. Devem ter havido mais movimentos expressivos visando
fusões e incorporações, mas nenhum frutificou, devido ao caráter eminentemente
familiar das empresas de mídia. O fato de um simples artigo ter despertado
tantas reações era o retrato do clima do aturdimento dos grupos de mídia, ante
o novo mundo que se descortinava.
Na época,
estava no auge a tiragem dos jornais. Havia recursos em caixa para facilitar
operações de fusão e incorporação. Mas o ranço familiar falou mais alto.
Mais à
frente, a Globo acabou tomando a iniciativa e se associando aos jornais
paulistas em projetos de menor relevância, com o Estadão em um portal de
imóveis e com a Folha no jornal Valor, aproveitando a queda da Gazeta
Mercantil.
Peça 2 – a queda dos grupos de mídia
Nos anos
seguintes, a Globo avançaria em todos os níveis.
Consolidaria
a CBN no setor de rádios, dominaria o conteúdo das TVs a cabo, se apropriaria
de fatias cada vez maiores do bolo publicitário, lançaria um novo portal, o G1.
O único
grupo que conseguiu competir, ainda que em nível menor, foi a TV Record, graças
ao modelo de negócios com a religião. Para sobreviver, as demais redes tiveram
que alugar horários para religiões e se arrastar com audiências medíocres.
Na campanha
pelo impeachment – que se iniciou no longínquo 2005, quando Roberto Civita
implantou na Veja o estilo Murdoch – a Globo sempre foi o grupo mais esperto.
Deixava Veja e Folha montarem os factoides e se limitava a repercutir no Jornal
Nacional, evitando de se contaminar o estilo assumido por ambas as publicações.
Com todos os
veículos seguindo a mesma linha editorial, a Globo assumiu o comando. Nenhum
deles teve o tirocínio do velho Frias que, nos anos 80, ousou o contraponto de
tirou uma geração de leitores do Estadão.
Enquanto os
demais veículos teimavam em atacar as migalhas aos blogs independentes, a Globo
conseguia avançar com a voracidade de um ogro sobre as verbas publicitárias
públicas e privadas.
Nesse
período, a Abril foi caindo, a ponto de hoje em dia trocar uma sede monumental
na Marginal Pinheiros por um prédio pequeno no Morumbi. Perdeu o bonde da
Internet devido à resistência dos editores de papel.
O Estadão
não conseguiu se viabilizar como jornal, nem como rádio, sustentando-se agora
no pioneirismo da Agência Estado. A Folha sentiu os mesmos problemas dos demais
jornais impressos e a UOL acabou se salvando com prestação de serviços e a
grande sacada de criar seu próprio meio de pagamento.
Enquanto
isto, Google e Facebook avançam cada vez mais sobre a publicidade interna.
Alguns anos
atrás, um jornalista com acesso aos irmãos Marinho comentava sua preocupação
com o enfraquecimento dos demais grupos. Acabaria por expor de maneira perigosa
a concentração de poder em torno da Globo.
Peça 3 – o ponto de não retorno
Não se sabe
o que ocorreu de lá para cá. Os Marinho passaram a se afastar cada vez mais da
condução editorial e comercial do grupo. E o comando foi entregue a um grupo de
jornalistas que decidiu viver intensamente o presente, sem nenhuma preocupação
com a perpetuação da organização.
A Globo se
tornou uma máquina de destruição das instituições, em um processo permanente de
exibição de músculos, de construção midiática da realidade, atropelando leis,
abrindo espaço para a desmoralização dos Três Poderes, estimulando o uso
selvagem do direito penal do inimigo.
Culminou com
a iniciativa inédita de convocar a população para passeatas pró-impeachment e
de montar a dobradinha com a Lava Jato para instrumentalizar politicamente as
delações e os indícios da operação.
O aniversário
do golpe é, portanto, ocasião adequada para se analisar o papel das
Organizações Globo na destruição da ordem institucional.
Com exceção
da mídia venezuelana, não se tem notícia de um grupo de mídia que tenha abusado
tão imprudentemente de seu poder sobre a opinião pública.
Deve-se à
Globo, mais do que a qualquer outro personagem, a entronização de uma quadrilha
no poder e, com ela, as negociatas que campeiam a torto e a direito no
Congresso, as ameaças sobre a Amazônia, o desastre final das contas públicas em
função de uma política econômica irresponsável, da qual a Globo é a principal
avalista.
Nem a reação
posterior à quadrilha a absolverá do crime de uma desestabilização política tão
grande que gerou até ameaças tipo Bolsonaro. Isso porque, no plano
psicossocial, a Globo teve papel central na disseminação no ódio, que se
refletiu diretamente no comportamento da Polícia Militar e no aumento
expressivos dos autos de resistência, na consolidação do direito penal do
inimigo, na caça aos resistentes, na desmoralização final da justiça, na
destruição das principais políticas sociais, e, agora, na queima irresponsável
de ativos nacionais.
Roberto
Marinho era um empresário esperto. Quem o conheceu de perto o considerava um
comerciante pouco informado, mas que conhecia razoavelmente seu negócio. E teve
a sagacidade de entregar a TV a mãos profissionais e montar a estratégia de
negócios com conselheiros de primeiro time, os velhos lobistas e economistas
cariocas, seus contemporâneos.
Mais que
isso, contou em postos chave com chefias jornalísticas fieis ao projeto de
perpetuidade do grupo.
Aproveitou
mais do que qualquer outro grupo da proximidade com o regime militar, e foi dos
últimos a entrar na campanha das diretas. Quando percebeu a mudança de cenário,
seus principais comandantes, como o jornalista Evandro Carlos de Andrade,
trabalharam incessantemente para tentar reverter a imagem de aliada da ditadura
que marcou a Rede Globo. E tinham um cuidado especial em minimizar o papel da
Globo no golpe, na eleição de Collor.
Sobre o
futuro da política, há apenas uma certeza: seja quem assumir o poder, a Globo
terá que ser tratada como um problema nacional. O preço de se ter um país
moderno, plural, respeitador da lei e das instituições será o de enquadramento
definitivo da Globo, uma distribuição de seu poder de mercado, acabando não
apenas com a propriedade cruzada dos meios de comunicação, mas regulando o
conceito de rede nacional. Mesmo sem ter a propriedade das associadas, a Globo
controla o conteúdo, a grade e os grandes pacotes de comercialização. É esse
domínio que caracteriza o controle, não a propriedade em si.
O país
moderno só se imporá sobre o atraso no dia em que houver limites a esse poder
midiático.
GGN