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sexta-feira, 2 de junho de 2017

Ségio Guedes Reis: Corrupção não se combate com moralismo

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Corrupção se combate com redução da desigualdade e não com moralismo

Talvez seja possível afirmar que o debate sobre corrupção no Brasil jamais tenha ganho tanta repercussão como agora. A Operação Lava Jato parece ter feito emergir um latente sentimento punitivista em parte da sociedade brasileira, o qual se conecta, de forma inexorável, à noção de que a corrupção se apresenta como um problema de índole comportamental ou postural, a ser corrigido a partir de sanções rígidas, capazes de reprimirem a prática desse crime a partir do “exemplo”. Não é por acaso que, na página das chamadas “Dez Medidas Contra a Corrupção”, encampada por agentes do Ministério Público que compõem a Força Tarefa dessa operação, diagnostica-se que é a “impunidade” a causa fundamental desse mal.

Quando observamos outras manifestações recentes sobre como lidar com a corrupção, vemos que essa interpretação punitivista tem força e histórico: se olharmos para o chamado “pacote anticorrupção” lançado pela então Presidenta Dilma Rousseff quando ainda parecia ter alguma margem de manobra, observaremos a predominância de medidas voltadas a tipificar novos crimes relacionados à corrupção ou a ampliar a punição para práticas ilícitas já tipificadas.

Segmentos da sociedade civil organizada parecem corroborar esse entendimento: se formos analisar as propostas vencedoras no âmbito da primeira Conferência Nacional sobre Controle Social (a CONSOCIAL, realizada em 2012), notaremos a presença de várias diretivas voltadas a tornar mais duros os crimes relacionados a corrupção. Há ideias no sentido de se transformá-los em crimes hediondos, ou mesmo de aumentar a pena máxima possível para o limite de 50 anos (acima, portanto, dos limites máximos previstos em lei para quaisquer crimes). A força da rejeição social à corrupção também aparece em pesquisas de opinião recentes, que apontam para essa questão como o principal problema do Brasil. Como entender esse aparente paradoxo entre a ojeriza à corrupção e a sua persistência como questão e como prático? Esse é um dos debates clássicos sobre a condição brasileira. Pretendo apresentar algumas proposições para apoiar o debate, a partir de uma leitura que se quer progressista.

A hipótese básica que apresento é a de que a República é um projeto nacional bastante incompleto, na melhor das hipóteses

Seu melhor momento também foi aquele em que sua fraqueza constitutiva se tornou mais explícita: a Constituição de 1988, hoje sob risco de implosão. No mesmo documento em que se inserem algumas das mais ousadas tentativas de instituição de um Estado de Bem-Estar Social no Brasil estão manifestações e pontos de partida para a consolidação de corporativismos decisivos para explicar o nosso tempo – e a resiliência da corrupção.

Um componente intrínseco a uma República é a ideia da igualdade entre os sujeitos. Em uma cultura política republicana, não só a igualdade existe, mas ela é desejada pelos atores sociais. Nesse sentido, os espaços públicos – institucionais ou não – são aí marcados por uma pretensão de eticidade na qual os cidadãos avaliam suas pretensões com relação ao público a partir de apreensões individualizadas sobre o universal: o certo e o errado, o justo e o injusto, o tolerado e o não-tolerado. A ação política (em sentido amplo) é balizada nessa experiência (por vezes conflituosa) de como realizar o público a partir das sensibilidades particulares sobre esse público.

Entendo que esse tipo de encaminhamento sobre o público no Brasil se constitui como algo extremamente limitado. No lugar de uma eticidade produzida a partir das tensões concretas que encerram o processo de construção de uma sociedade igualitária (que depende de condições materiais e simbólicas de reconhecimento da alteridade para tanto), aqui vige outra lógica: a moralidade é um substituto pobre da ética, com suas máximas e seus juízos particulares. Por meio dela (ancorada em dogmatismos religiosos, mas também em sintagmas laicos, mas imateriais, como adágios e aforismos), o indivíduo julga os outros a partir de elementos absolutos e metafísicos. Como o “público” é pobre – mera negatividade do “meu” particular – eu não me insiro nesse juízo.

Nesse mecanismo, que separa a potência do ato, eu cindo a minha prática ilegal do meu próprio juízo, mas não faço a mesma operação com outras pessoas. Abre-se espaço para a incoerência, para a indignação seletiva – ou, se quiserem, para a hipocrisia. Não é difícil perceber como o punitivismo encontra guarida no interior desse raciocínio: é impossível a partir dele tratar o problema de forma sistêmica – o desvio é individual, comportamental, postural, de natureza humana, e precisa ser reprimido como tal.

No bojo desse processo está o que mais importa nesta hipótese: a aceitação popular da injustiça. Se no espaço público ético a justiça se consubstancia no desejo (e na busca pela produção de) igualdade, no espaço moral não há um universal concreto contra o qual a minha ação particular possa ser cotejada, a não ser o meu próprio juízo metafísico. Se cada um faz o mesmo, então temos infinitos juízos particulares os quais, ao fim, realizam um público sem métrica de equidade (ainda que haja leis). A desigualdade se torna modus operandi de realização do público. E a justiça possível nesse cenário é o justiçamento, que nada mais significa do que a introjeção ao juízo público dos valores morais de ocasião como critérios de deliberação.

Fundamentalmente, a desigualdade (em sentido amplo) é causa basilar da corrupção

E esse é, provavelmente, o fator mais negligenciado no debate sobre a questão, seja normativamente, seja como prática de política pública. Esse lapso é surpreendente se levarmos em conta que a desigualdade é, provavelmente, a preocupação normativa mais relevante em qualquer questão pública abordada por um prisma progressista. Lamentavelmente, em face de toda a crise política nacional montada a partir da publicização de escândalos de propina envolvendo a Petrobrás – fundamentais para derrubar Dilma Rousseff, ainda que formalmente sua queda tenha ocorrido a partir do sofrível argumento das “pedaladas” – há pensadores importantes que ainda concebem que a corrupção seja mero “discurso da direita” para enfraquecer a esquerda, sendo a desigualdade um fator muito mais relevante a ser considerado no debate público. Aqui, no entanto, consideramos que a conexão entre ambos é intrínseca – e é fundamental que a esquerda seja capaz de apresentar uma interpretação própria sobre a corrupção, sob pena de emular soluções conservadoras se estiver no governo, ou de não ser levada a sério por se abster de debater criticamente a questão.

Como causa explicativa, a desigualdade naturalizada (não apenas de classe, mas étnica, de gênero, religiosa, de poder, entre tantas outras clivagens) cria o caldo para a aceitação da injustiça e, portanto, para a estruturação de práticas sociais que adotem a ilegalidade ou para compensar a desigualdade, ou para reforçá-la – daí a ambiguidade, por exemplo, do chamado “jeitinho”, por tantas vezes compreendido como a razão da corrupção (e aqui admitido como possível sintoma dele). Se as instituições reproduzem essa falta de tratamento equânime, então não há porque acreditar na equidade como um caminho, e no público como um espaço desejável. Pelo contrário, o privado é aí o porto seguro das virtudes – repete-se aí o mesmo mecanismo de julgamento moral comentado antes: o público não é também “meu” ou de todos, mas simplesmente de “ninguém”. Na literatura internacional, são reiterados os estudos que apontam para o quanto a desigualdade impacta severamente a descrença social no governo e, mais amplamente, nas instituições, e o quanto ela estimula a racionalização da corrupção como uma prática legítima. O ímpeto que a desigualdade causa para a corrupção extravasa classes sociais: como cita Gunnar Stetler, ex-diretor da agência anticorrupção sueca em entrevista para a jornalista Claudia Wallin, “chega um momento em que o cidadão não se contenta com um Volvo e deseja um Porsche”.

Uma hipótese a ser testada é a de que a desigualdade no Brasil adquiriu força considerável o bastante para se constituir como uma espécie de valor ou direito, algo a ser desejado. Em sendo o caso, estaríamos no exato caminho contrário daquele a ser perseguido para a constituição de uma República, como mencionado no início deste ensaio. A pesquisa “Perigos da Percepção”, feita pela Ipsos Mori (2015) com cidadãos de 33 países traz dados que podem jogar luz sobre a questão, conotando a ela a devida complexidade: os brasileiros, integrantes da quarta nação mais desigual do grupo, foram um dos seis conjuntos de cidadãos que subestimaram o nível de desigualdade existente no país. Ao mesmo tempo, nossos nacionais foram aqueles que defenderam que o 1% mais rico deveria concentrar o maior percentual da riqueza nacional dentre todos os segmentos consultados: 33%. Por curiosidade, em países como Israel, Noruega e Holanda, esse range variou entre 14 e 16%. E mesmo em países mais desiguais do que o Brasil, como Índia, Turquia e Rússia, as opiniões sobre o quanto deveria ser essa fatia oscilaram entre 21 e 30%.

Se a desigualdade é questão profunda na narrativa brasileira, o privilégio é a representação mais eloquente de sua articulação com a corrupção. Como ponto de partida para repensarmos como lidar com esse problema, por sinal, precisaríamos efetivamente redefinir a noção de corrupção, para fazer com que ela comporte em si o privilégio.

Hoje, boa parte dos privilégios são assegurados legalmente, inclusive por alguns dos atores que são responsáveis por dizer o Direito, garantir a justiça e proteger o patrimônio público. Em meio a uma sociedade que ainda luta para lidar com a miséria, a presença de salários astronômicos (muito acima do teto constitucional, já extremamente elevado), a percepção de dezenas de penduricalhos (auxílio-moradia, auxílio-creche, adicional por tempo de serviço, adicional de comarca, auxílio-educação e tantos outros) e o acesso a mordomias (no Judiciário, 60 dias de recesso, motoristas particulares, automóveis públicos luxuosos, imóveis funcionais de primeira linha, pensões para filhas solteiras, etc) constituiriam nada menos do que um insulto à dignidade. São vistos por vários de seus beneficiários e por parte da sociedade, contudo, como expressões do mérito e como medidas necessárias “para se evitar a corrupção”.

No mundo privado, por óbvio, a situação não é diferente. Ela pode ser particularmente percebida a partir do sistema tributário: lucros e dividendos, que compõem a maioria da renda dos mais ricos, são pouco ou nada taxados; iates, helicópteros e aviões não sofrem incidência do IPVA; o percentual do PIB recolhido a partir de tributações ao patrimônio é cerca de dez vezes inferior ao observado em países desenvolvidos; o imposto sobre grandes fortunas ainda é uma ficção, e aquele cobrado sobre heranças possui uma das menores tarifas do mundo. Na mesma linha, vale citar o financiamento altamente subsidiado feito pelo BNDES ao empresariado – estratégia problemática não em si mesma, mas sim diante da escolha dos beneficiários em aplicar o dinheiro no mercado financeiro em vez de torná-lo produtivo. Não seria essa prática uma forma de corrupção? 

O grande ponto é que as gestões consideradas progressistas no Brasil atuaram, na melhor das hipóteses, de modo extremamente tímido no enfrentamento da desigualdade. Parece claro hoje que Dilma – e, principalmente, Lula – encararam como desafio nacional a eliminação da pobreza, jamais a mitigação da olímpica desigualdade. Se dados mais recentes (como as pesquisas de Marcelo Medeiros) apontam que a disparidade de renda no Brasil tem sido consideravelmente subestimada (e em patamar “estável”, e não em queda), há estudos (como os de Gubetti e Orair) que mostram como o Estado brasileiro tem contribuído para o aumento da desigualdade, dada a manutenção da distinção entre a previdência pública e a privada e, principalmente, a política de salários desenvolvida nos últimos anos a médios e altos funcionários do governo (não apenas os percebidos pela Magistratura e pela própria classe política, mas também para a assim chamada elite burocrática do Poder Executivo).

Para se ter uma ideia, enquanto a inflação acumulada entre 2002 e 2016 foi da ordem de 162%, a remuneração de carreiras como a de Especialista em Políticas Públicas e Auditor de Finanças e Controle subiu 393% (inicial de R$ 17 mil); a de Delegado da Polícia Federal, 187% (inicial de R$ 21,7 mil); a de Auditor da Receita Federal, de 547% (inicial de R$ 19,2 mil mais “bônus de produtividade” estimado em R$ 5 mil mensais, aprovado em Dezembro/2016). Há diversos outros exemplos. Os dados levantados pelos autores supracitados mostram que essa política salarial acaba por mais do que compensar o redistributivismo contido nas políticas assistenciais (Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, etc). Em outras palavras, o Estado tem acentuado a já rampante desigualdade, e isso a partir de uma consciente política de valorização salarial de segmentos do funcionalismo – justamente em um dos únicos momentos da história política brasileira em que fomos governados por forças progressistas. 

Se houve algum caminho preventivo à corrupção que foi adotado como solução de política pública pelos governos progressistas no Brasil, pode-se defini-lo como o da promoção da transparência e do controle social 

Há que se dizer que essas medidas corresponderam ao estado da arte internacional no enfrentamento a esse problema – em boa medida Lula e Dilma implementaram parte substancial das convenções internacionais de combate à corrupção. Não há dúvida de que tais aspectos contribuem para que contornemos um pesado histórico autoritário por meio de medidas que aproximem Estado e Sociedade e, com isso, potencializem a geração de um “público”. Mas como tornar esse processo efetivamente sistêmico – capaz, portanto, de gerar mudança cultural – em vista da precariedade monumental de serviços públicos e de infraestrutura (inclusive Internet) que nos assola, apesar dos avanços institucionais das últimas décadas? Como também comenta Gunnar Stetler, “Se uma pessoa tem que lutar diariamente por sua sobrevivência para ter acesso à alimentação, à escola e a hospitais, a questão do combate à corrupção na sociedade certamente não estará entre seus principais interesses. Mas quando uma pessoa se sente parte da sociedade à qual pertence, passa a não aceitar os abusos do poder”. Por evidente, não se defende aqui que os hackatons, a Lei de Acesso a Informação ou os Conselhos de Políticas Públicas sejam “perfumarias”, apenas que são suportes – e não razões de ser – para uma política efetivamente sistêmica de combate à corrupção.

Há, no entanto, alguns cânones os quais, por intocados, obstaculizam o avanço do debate, particularmente a partir de uma perspectiva progressista. Um deles é o de que um caminho fundamental para o combate à corrupção no Brasil passa pela autonomização dos órgãos e agentes que praticam a justiça e defendem o patrimônio público. Qualquer questionamento que ataque esse lugar comum é naturalmente visto como uma defesa do patrimonialismo, do clientelismo ou de outras gramáticas políticas as quais, historicamente, foram empregadas para interpretar o país.

A questão é que esse caminho da meritocracia, da profissionalização do burocrata e da sua defesa como ator neutro no processo político (um dever ser ao longo do tempo convertido em análise factual) nem sempre foi o único concebível. Por um bom tempo, particularmente nos Estados Unidos, a chamada burocracia representativa vigeu como método para a ocupação dos cargos públicos do governo. Por trás desse paradigma se encontravam pressupostos como a ideia de que os postos deveriam ser preenchidos por cidadãos comuns, e que a composição da máquina pública com base nos diferentes interesses sociais que representavam a agenda do governante eleito exprimiria uma tecnologia gerencial ao mesmo tempo justa e coerente. Essa prática não era sinônima do “toma lá, dá cá”, simplesmente porque não se tratavam de negociatas ou de interesses divergentes a serem pactuados a partir de um cargo: o político e o funcionário não eram partes contrárias, mas agentes vetorizados à realização de um mesmo fim público. Por evidente, esse princípio operativo não afastava a corrupção, mas não era visto como sinônimo dela. Na verdade, esse sistema de espólio se inseria como o mecanismo de convergência possível entre burocracia e democracia à época, em meados do século XIX.

Foi principalmente com Woodrow Wilson que esses entendimentos foram transformados em nome da ideia de que política e burocracia precisam ser separados – questão que ensejou uma importante reforma administrativa nos EUA do século XIX e em praticamente todo o mundo desde então. Em vez de representação, o que informava esse novo modelo burocrático era a superioridade técnica, a meritocracia. Em paralelo, na medida em que não representavam interesses populares – pois não eram cidadãos comuns, mas sim experts – esses novos burocratas seriam neutros. Ao longo do tempo, essa neutralidade foi sendo associada ao republicanismo, sem se questionar a viabilidade em si de uma ação axiologicamente neutra, nem a real identidade entre um comportamento apolítico e uma práxis republicana. Por sinal, como comenta Cecília Olivieri em artigo sobre os controles políticos sobre a burocracia, no Brasil a relação entre política e burocracia sempre foi abordada pela literatura como sendo conflitante – nesse sentido, a autonomia dos burocratas aparece como um devir, uma estratégia a ser perseguida para se evitar a captura do Estado por interesses econômicos (ou políticos).

Foi justamente esse o encaminhamento dado pelas gestões Lula e Dilma aos setores burocráticos críticos do Estado brasileiro, notadamente aqueles voltados a combater a corrupção: prestígio e autonomização. Vimos anteriormente a extensão da política de valorização salarial adotada nos últimos anos; vale mencionar a realização de diversos concursos públicos – em oposição ao período FHC.

Outras marcas de valorização, como a nomeação de técnicos para postos-chave de Direção e Assessoramento Superior (até mesmo com a instituição de cotas mínimas de cargos a serem ocupados por servidores efetivos), a aprovação de denominações específicas como símbolos de distinção (“autoridade tributária” para Auditores Fiscais, “excelências” para Delegados da Polícia Federal, etc), também foram sancionadas nesse período. A autonomização, demanda constante dessas carreiras de Estado, também veio a cabo: listas tríplices para a seleção de Procuradores-Gerais do Ministério Público, de Diretores Gerais da Polícia Federal, entre outros cargos importantes; a desvinculação institucional da Defensoria Pública da estrutura do Poder Executivo Federal; a alocação prioritária de recursos para o desempenho de Operações Especiais, etc.

Por outro lado, essas medidas jamais foram acompanhadas por um eventual incremento do controle social sobre a burocracia. Ainda que nos governos do Partido dos Trabalhadores tenham sido desenvolvidas mais de uma centena de conferências e tenham sido criados dezenas de conselhos de políticas públicas, há que se observar que os esforços jamais estiveram direcionados para realizar accountability sobre os agentes públicos, especificamente. A alta burocracia permaneceu francamente autônoma e crescentemente empoderada. Por sinal, a disfunção entre as expectativas da literatura nacional e a realidade material atingiu seu auge quando o próprio Ministério Público, por meio de seus agentes, passou a liderar uma campanha nacional pela aprovação das supracitadas “10 medidas contra a corrupção”. O lobby pela aprovação de uma agenda que restringia direitos individuais em nome do aumento da capacidade discricionária dos próprios burocratas (uma forma de autonomização) converteu-se em “advocacy” legítimo aos olhos da mídia e de parte da sociedade.

De forma mais concreta, vimos na Operação Lava Jato o Judiciário, o Ministério Público e agentes da Polícia Federal, dentre outros, atuarem à margem da lei e em rechaço à Constituição – a qual os alçou, em sua origem, como alguns dos segmentos mais importantes a defendê-la (o que percebemos agora como um ímpeto corporativista, em face das prerrogativas e exclusividades a eles conferidas). Como razão para esses arbítrios, o “bem maior” do combate à corrupção. Sem respostas proativas, a esquerda apenas reforçou sua defesa da autonomia dos órgãos de defesa do Estado, do “apure-se o que tiver de ser apurado”, da integridade pessoal e moral da Presidenta da República (até hoje incontestável, frise-se). Ou seja, apenas seguiu adiante no caminho que acabou por levá-la à derrocada diante de uma direita muito mais articulada em evocar na esfera pública a moralidade particular como juízo.

Hoje, o Presidente da República, citado nominalmente em delações de executivos da Odebrecht, nomeia seu próprio Ministro como Ministro do STF – a julgar casos em que o próprio Chefe de Governo constará como réu –, e simplesmente não há freios e contrapesos institucionais ou “morais” para barrar essa agenda.

Talvez essa seja uma das marcas da fragilidade do legado das administrações petistas no combate à corrupção, justamente em virtude das crenças e das escolhas feitas: não reformar nevralgicamente as institucionalidades e as formas de produção dos espaços públicos, mas sim levar “ao limite” a agenda wilsoniana de profissionalização de certa burocracia.

Até encontrar, dada a inação na frente das reformas eleitorais e na frente da governabilidade, o paroxismo essencial: desenvolver e insular uma burocracia não-responsabilizável e corporativista para fiscalizar agentes políticos tão fundamentais à sustentação da base de apoio quanto versados na operacionalização da máquina “à moda antiga”. Não há legado possível aí porque nem a burocracia é neutra, nem qualquer administração mais “realista” virá a conceder o mesmo nível de independência funcional.

Quando se leva em conta a hipótese da fragilidade do republicanismo e da força constitutiva da desigualdade na formação da nossa sociedade, compreende-se quão perniciosa para o combate à corrupção é a ideia de se fortalecer e insular agentes e instituições. Se dar autonomia e salários astronômicos constituem formas de privilégio social, se os privilégios expressam o casamento entre desigualdade e corrupção, se a desigualdade brasileira é fator crucial para explicar a fragilidade dos espaços públicos, e se essa fragilidade cria obstáculos fundamentais para a produção de um desejo mínimo de equidade entre cidadãos, então transformar certos segmentos em “castas meritocráticas” parece ser a solução mais inadequada possível.

Pensar o combate à corrupção a partir de um ataque transversal à desigualdade e à injustiça tem o potencial de se constituir como um programa de governo e uma agenda de Estado possíveis para que os progressistas disputem a política institucional no contexto mais conservador das últimas décadas. Para tanto, a esquerda precisa de fato disputar o significado da corrupção, da ética e da justiça na realidade brasileira. Ela tem muito a dizer e a propor, mas precisa revisar seus conceitos e sua abordagem.

No fundo, o PT dos anos 80 e o PSOL de hoje, dentre outras forças relevantes, contiveram em seu ideário alguns elementos que dialogam com o proposto aqui. A declamação ética de agentes políticos desses partidos, contudo, é pontual, sem constituir uma agenda sistêmica: tratam de posturas individuais, de mandamentos, de comportamentos idealizados. Estão presas, na verdade, às moralidades mencionadas no início desse ensaio, ainda que eventualmente virtuosas.

É preciso ir além, propondo sistêmica e institucionalmente formas de transformação dos espaços públicos, nos domínios mais localizados (vizinhanças, parques, praças, igrejas, ônibus/metrôs, etc) e mais amplos (a grande política, as decisões judiciais, as políticas públicas, a produção da cidadania ativa etc). Trata-se de reverter com força o processo de abandono do público promovido pelo Estado ao longo dos últimos 30 anos – que deu vazão, como comentou Christian Dunker em entrevista recente para a BBC, a vazios ocupados pelo privatismo – favelas, condomínios fechados, prisões – ou meras zonas de passagem, marcadas por experiências vazias de sentido. É preciso, para isso, acreditar que a gestão pública um campo privilegiado para a produção, viabilização e potencialização de experiências de dignidade, de realização das capacidades humanas, de civismo. Algo que, lamentavelmente, boa parte da esquerda também se furtou de elaborar, preservando as velhas crenças positivistas sobre a neutralidade da técnica.

Não há como não desempenhar tais tarefas históricas sem disputar profundamente o significado da corrupção no Brasil, sem deixar de afirmar e comprovar que a corrupção é uma manifestação da desigualdade, e que a desigualdade é, sim, uma manifestação da corrupção – e isso não é uma tautologia, mas sim um círculo vicioso, que nos aponta para a profundidade do nó górdio em questão. Acreditar nessa conexão é permitir ao campo progressista ir além na crítica à meritocracia como um fim em si mesmo – ninguém pode ser bom o bastante para ser socialmente tão mais prestigiado do que os demais – e na compreensão de que o compromisso com a equidade e com a isonomia devem ser inegociáveis – meia-justiça, afinal de contas, nunca significou menos do que uma injustiça em dobro.

Sérgio Roberto Guedes Reis é mestre em Políticas públicas pela FGV e bacharel em Relações Internacionais pela USP. Atua no serviço público federal brasileiro desde 2012, como Auditor de Finanças e Controle.

GGN/Justificando, por Sérgio Guedes Reis