Pela
lógica deste sistema toda a culpa é da pessoa. Se não tem um bom emprego, a
culpa é tua; se o salário é baixo, a culpa é tua; se a Bolsa caiu, a culpa é
tua; se aumentou a expectativa de vida, a culpa é tua; se não há um sistema de
proteção, a culpa é tua.
Foto:
EFE
Por
Felipe Bianchi e Leonardo Wexell Severo
Do Coletivo
de Comunicação Colaborativa ComunicaSul
“Apesar
dos subsídios estatais, 80% das aposentadorias pagas no Chile estão abaixo do
salário mínimo e 44% estão abaixo da linha da pobreza. O sistema fracassou e
seria uma completa loucura implementá-lo no Brasil”, afirmou Andras Uthoff ,
consultor do Instituto Igualdad e professor da Universidade do Chile.
Doutor
em Economia pela Universidade de Berkeley, ex-assessor da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e da Comissão Econômica para a América Latina e
o Caribe (Cepal), Uthoff avalia que “o sistema de capitalização tem levado
multidões às ruas, pois empobrece idosos e nega direitos, enquanto é
extremamente rentável às Administradoras de Fundos de Pensão (AFP)” . Devido à
“falta de transparência” e à “desinformação” ditada pelos conglomerados
midiáticos, que respondem aos “poderes econômicos e financeiros”, “as pessoas
não se dão conta do quão mau é este sistema até que se aposentem”.“A realidade
está se impondo, demonstrando que a capitalização é um desastre. A realidade é
nossa melhor aliada”.
Uthoff
recebeu os jornalistas do ComunicaSul* na sede da CUT Chile, em Santiago, nesta
terça-feira (9). Confira a íntegra da entrevista.
O
sistema de Previdência chileno está em colapso?
É,
sem dúvidas, uma crise muito forte. O sistema das AFP não cumpriu a sua promessa.
A promessa era simples: o participante desse modelo poderia aposentar-se com
70% do seu último salário. A média do que o sistema paga, hoje, é de 35%. Muito
abaixo do prometido. Especialistas em fundos de pensão dizem que, com a atual
estrutura, o sistema não tem como melhorar, pois não superará esses números.
Estamos
no meio de uma ampla discussão, no Chile, sobre qual será o futuro desse
modelo. Há uma ofensiva ideológica que quer colocar ainda mais dinheiro nas
AFP, para consolidá-las e aprofundá-las. Por outro lado, estamos dizendo que é
necessário dar fim a este modelo e apostarmos em alternativas. É um momento
crucial para falarmos sobre o assunto.
No
Brasil, diríamos que isso é “privatizar os lucros e socializar os prejuízos”.
Exato.
É precisamente isso o que ocorre no Chile. E uma das questões que considero
muito importante para o Brasil é algo que discutimos muito aqui nos anos 1990:
fazer uma transição para um modelo como o chileno é extremamente caro. Você
precisa se encarregar de resolver a questão das contribuições feitas no sistema
antigo, o que tem um valor altíssimo. É dívida certa. No Chile, esse passivo
custou três vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do país – e o cidadão é quem
paga por isso.
O
que você tem a dizer sobre a prática de especulação por parte dessas empresas
estrangeiras?
Não
acho apropriado falarmos em especulação, pois o sistema é bem regulado em
relação a investimentos por parte desses instrumentos financeiros. O que
preocupa é que classificadores de risco orientam: AFP não podem fazer
exatamente o que querem. O que questionamos é que o impacto real da
contribuição no Chile é nulo. 40% dos fundos de pensão estão investidos no
exterior, e não no Chile. Os outros 60% não são investimentos reais, mas meros
instrumentos financeiros que não causam nenhum impacto na economia real do
país.
O
próprio ministro do Trabalho, Nicolás Monckeberg, reconhece publicamente a
insustentabilidade deste sistema, apesar de sugerir remédios amargos para curar
a doença. Se no Chile há uma ideia de que este modelo fracassou, o que te
parece o Brasil, em 2019, propor a sua implementação?
O
que tenho a dizer é que é uma completa loucura implementar um sistema nos
moldes da Previdência chilena. É um sistema que vai na contramão do que
significa a Seguridade Social. Você transforma um sistema baseado nos direitos
do cidadão em um mercado obrigatório de contribuição. Ou seja, para quem não
conseguir contribuir, o direito é negado. A grande maioria dos chilenos, hoje,
não possui condições de contribuir regularmente. Apesar dos subsídios estatais,
80% das aposentadorias pagas no Chile estão abaixo do salário mínimo, e 44%
estão abaixo da linha da pobreza. É um sistema que empobrece os idosos.
No
Brasil, está na moda falar em “fake news”. É manipulação o superministro da
Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, classificar o modelo chileno como um
sonho, uma fábula a ser copiada?
Em
primeiro lugar, o modelo de Previdência do Chile é difícil de copiar, pois é um
modelo que se implementa em ditaduras. Se não está numa ditadura, é muito
difícil impor algo desse tipo. E eu, sinceramente, não quero e nem recomendo ao
Brasil o retorno à ditadura. Em segundo lugar, também venderam muitas promessas
ao povo chileno. O trabalhador receberia 70% de seu salário, algo que nunca
aconteceu. É um sistema que se baseia em ilusões. Guedes pode dizer o que
quiser e terá 30 anos, pelo menos, para que não seja desmentido. Mas eu posso
te assegurar que não será como ele disse.
Recentemente,
houve um bate-boca, na Câmara dos Deputados do Brasil, porque um parlamentar da
oposição mencionou o aumento da taxa de suicídio entre idosos no Chile. Paulo
Guedes foi à loucura, dizendo que era “fake news”. Guedes é íntimo da BTG Pactual,
uma das intermediadoras financeiras que lucram com as AFP. Que interesses há
por trás dessa reforma que Guedes defende, afinal?
Claramente,
a intenção é poder administrar uma bela fatia do PIB do país, que é a
contribuição dos trabalhadores. Fazê-lo através de uma intermediadora
financeira como a BTG Pactual é um ótimo negócio. Não só porque você favorece
seu grupo dentro da regulação estabelecida, mas também porque é um modelo
puramente rentista. O trabalhador paga a sua parte independentemente se o sistema
vai ou bem ou mal. Ele paga e, em consequência, a administradora sempre tem
ingresso e ganha dinheiro. O investimento cai, mas a rentabilidade das AFP
segue em alta.
Aqui
no Chile, as AFP recuperavam seu patrimônio em quase quatro anos. Uma taxa de retorno
de quase 25% ao ano. Isso, agora, está diminuindo um pouco com a concorrência.
Mas esse é o grande problema: ao invés de estarmos falando sobre direitos
fundamentais do cidadão, estamos discutindo como você administra uma indústria
de pensões. Deixamos de falar sobre Seguridade Social há muito tempo.
Como
a BTG Pactual, de Paulo Guedes, está envolvida na questão das AFP chilenas?
A
BTG Pactual pertence a um dos grupos financeiros vinculados às AFP. Fazem um
trabalho financeiro que é bem regulado no Chile. A questão é: qual a utilidade
disso para garantir boas aposentadorias para os cidadãos chilenos? Qualquer um
pode falar bem ou falar mal do papel jogado pela BTG Pactual ou qualquer outra
intermediadora financeira. A questão é: o que isso colabora com a Previdência?
No Chile, a resposta está longe de ser boa. A boa rentabilidade das AFP é
inversamente proporcional às péssimas aposentadorias obtidas pelo cidadão
chileno.
Quais
os caminhos para superar este problema no Chile?
Há muita gente pensando alternativas para este modelo. Eu tenho uma proposta, mas há várias outras na mesa. Sou partidário do conceito de sistemas multipilares, mistos, típicos da social-democracia europeia. Eu creio que o Brasil tem um pouco disso. Eu não transformaria o sistema do Brasil, talvez apenas o melhoraria. Não o reestruturaria para um sistema de capitalização exclusivo, como o governo brasileiro deseja fazer.
Há muita gente pensando alternativas para este modelo. Eu tenho uma proposta, mas há várias outras na mesa. Sou partidário do conceito de sistemas multipilares, mistos, típicos da social-democracia europeia. Eu creio que o Brasil tem um pouco disso. Eu não transformaria o sistema do Brasil, talvez apenas o melhoraria. Não o reestruturaria para um sistema de capitalização exclusivo, como o governo brasileiro deseja fazer.
Por
outro lado, há outras propostas, como a da organização No+AFP, que vem
mobilizando muita gente. Eles advogam por um modelo de repartição tripartite.
As mobilizações no Chile respondem a um profundo descontentamento com o
sistema, não a uma solução. Ainda não há acordo sobre qual caminho é melhor,
mas há pleno consenso de que estamos empobrecendo. É um grande debate. Por ora,
o desafio é responder, com argumentos técnicos, a proposta de reforma
apresentada pelo governo de Sebastian Piñera.
Qual
a sua visão sobre o alto índice de suicídios entre os idosos no Chile?
Para ser sincero, passei a dar mais atenção para este tema recentemente. As pesquisas mostram, de fato, que há um crescimento no índice de suicídios de idosos no Chile. As razões são bem claras. Você soma a aposentadoria ínfima paga pelo sistema chileno ao fato de se tornar dependente de alguém, isso resulta em uma pessoa pobre e vulnerável. Apesar de não ser especialista no tema, me parece óbvio que isso favorece quadros de depressão.
Para ser sincero, passei a dar mais atenção para este tema recentemente. As pesquisas mostram, de fato, que há um crescimento no índice de suicídios de idosos no Chile. As razões são bem claras. Você soma a aposentadoria ínfima paga pelo sistema chileno ao fato de se tornar dependente de alguém, isso resulta em uma pessoa pobre e vulnerável. Apesar de não ser especialista no tema, me parece óbvio que isso favorece quadros de depressão.
Os
oligopólios midiáticos de nosso continente são muito íntimos dos banqueiros. Há
uma campanha midiática muito forte, no Brasil, em defesa da reforma da
Previdência. Qual a sua avaliação sobre o papel que os meios de comunicação
tiveram e ainda têm no Chile sobre este tema?
Lamentavelmente,
o Chile se encontra totalmente fragmentado – socialmente, fisicamente e
intelectualmente. Se você for a um seminário sobre sistema de pensões em um
lugar chamado Casa Piedra, onde só se reúnem empresários, certamente só
escutaremos maravilhas sobre esse sistema, que ele deve manter-se intocado,
coisas assim. No mundo do trabalho e no movimento sindical, que são os donos
dos fundos de pensão, que são os trabalhadores, há um profundo
descontentamento. São dois mundos que não se comunicam. Por um lado, há um bom
negócio. Por outro lado, temos um problema de economia política. Há duas
avaliações do sistema completamente destoantes. Estamos neste debate ideológico
de seguir implementando um modelo que pode ser muito bom para um grupo ou
voltar a um sistema de Seguridade Social.
O
tema ganha espaço no debate público à medida em que se aprofunda o drama. A
própria realidade impõe o tema na agenda.
O fato é que ao sairmos de 17 anos de uma ditadura brutal, as pessoas têm medo. E hoje as pessoas têm medo de perder emprego. Então as formas de protesto são cuidadosas, de como se expõem contrárias aos empresários. Porque isso está muito segmentado, ideologicamente segmentado, quase uma luta de classes, em que os empresários apoiam o modelo e os trabalhadores se opõem. É isso o que acontece e as pessoas têm medo.
O fato é que ao sairmos de 17 anos de uma ditadura brutal, as pessoas têm medo. E hoje as pessoas têm medo de perder emprego. Então as formas de protesto são cuidadosas, de como se expõem contrárias aos empresários. Porque isso está muito segmentado, ideologicamente segmentado, quase uma luta de classes, em que os empresários apoiam o modelo e os trabalhadores se opõem. É isso o que acontece e as pessoas têm medo.
E
o papel dos meios de comunicação na falsificação e na invisibilização das
informações?
Veja, este é um tema essencial. Quando existem poderes fáticos que se tornaram poderes econômicos e financeiros, percebe-se que vão pouco a pouco cooptando as pessoas. Porque falar como as coisas realmente são terá um custo, porque as pessoas têm medo de perder seu emprego, pois trabalham em um BTG Pactual ou numa instituição destas e não vão poder falar. Não se atrevem a dizer as coisas como são. Tenho colegas que em momento de eleições têm apoiado candidaturas e posteriormente em seus negócios perderam clientes.
Veja, este é um tema essencial. Quando existem poderes fáticos que se tornaram poderes econômicos e financeiros, percebe-se que vão pouco a pouco cooptando as pessoas. Porque falar como as coisas realmente são terá um custo, porque as pessoas têm medo de perder seu emprego, pois trabalham em um BTG Pactual ou numa instituição destas e não vão poder falar. Não se atrevem a dizer as coisas como são. Tenho colegas que em momento de eleições têm apoiado candidaturas e posteriormente em seus negócios perderam clientes.
Pensa
que esta lógica consegue ser mantida por muito tempo?
Acredito que estamos começando a romper o cerco com as mobilizações, que começam a nos dar palanque, a abrir espaço para que sejamos ouvidos e não identificados como loucos. A realidade está se impondo, demonstrando que este sistema é um desastre. A realidade é nossa melhor aliada.
Acredito que estamos começando a romper o cerco com as mobilizações, que começam a nos dar palanque, a abrir espaço para que sejamos ouvidos e não identificados como loucos. A realidade está se impondo, demonstrando que este sistema é um desastre. A realidade é nossa melhor aliada.
A
maioria da classe média no Chile sente-se vitoriosa se consegue comprar uma
moradia. Se vive num edifício, é preciso pagar o condomínio. Atualmente as
pessoas estão tendo que sair dos seus apartamentos, ir viver com familiares ou
voltar para o campo porque não conseguem pagar sequer o condomínio. Mas a
imprensa não informa sobre estes fatos. Se não há mobilizações e se não há
denúncias, isso passaria despercebido.
A
mídia atua para desinformar.
Por
esta falta de transparências as pessoas não se dão conta do quão prejudicial é
este sistema até que se aposentem. Quando chegas aos 65 anos podem dizer que
você juntou 150 mil dólares. Fantástico, pensa o trabalhador, que nunca viu
tanto dinheiro acumulado. Então diz: me deem, vou comprar um apartamento. Não
pode, não é teu para fazer qualquer coisa. É teu somente para passar à
seguradora ou à AFP para que te deem uma pensão. Te dá a sensação de que eles
compram o apartamento, te alugam e te baixam a pensão. E são eles que ficam com
o apartamento. Então até o momento de que você se aposenta, não se dá conta da
situação em que se encontra. Chegam com um montão de assessores e não há um
Estado para dizer se estão te assessorando bem ou assessorando mal e que com
esses 150 mil dólares vais ter uma aposentadoria que é 30% do seu salário. Com
sorte. É o cúmulo.
Na
última mobilização havia uma jovem com um cartaz dizendo “Não quero que o meu
futuro seja como o presente de minha avó”.
Tenho
acompanhado muitos debates com o Partido Socialista nas comunidades e uma jovem
me disse: veja, isso não nos ensinam nas escolas nem nas universidades, a
gravidade deste sistema em que nos meteram. É exatamente isso, tens que ver a
forma como seus avós está vivendo para poder se dar conta do que está passando.
Pela
lógica deste sistema toda a culpa é da pessoa. Se não tem um bom emprego, a
culpa é tua; se o salário é baixo, a culpa é tua; se a Bolsa caiu, a culpa é
tua; se aumentou a expectativa de vida, a culpa é tua; se não há um sistema de
proteção, a culpa é tua. Isso precisa mudar.
* O
Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul está no Chile com os seguintes
apoios: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Diálogos
do Sul, Federação Única dos Petroleiros (FUP), Jornal Hora do Povo, Sindicato
dos Metalúrgicos de São José dos Campos, Sindicato dos Metroviários de São
Paulo, CUT Chile e Sindicato Nacional dos Carteiros do Chile (Sinacar).
GGN