Aos
golpes do oportunismo, do golpismo, da covardia, do sofismo e da falácia
argumentativa, a maioria do STF derrubou a estátua da Justiça em praça pública,
espatifou-a na frente da nação, rasgou a Constituição e, com ambas, estátua e
Constituição, fez uma grande fogueira onde foram queimados os princípios da
república, a igualdade perante a lei a punibilidade de políticos criminosos e a
decência nacional. Cinco ministros, que não têm compromissos com a
Constituição, mas com subserviência aos raposões corruptos do Senado, jogaram a
gasolina. Carmen Lúcia acendeu o fogo e ainda jogou uma pá de cal sobre as
cinzas, pintando o cinza o que já era cinza num país condenado a ser vítima de
si mesmo por ser vítima de uma elite que não tem seriedade, que não tem responsabilidade
e que não tem pudor.
Carmen
Lucia mostrou não ter condições de presidir um centro acadêmico de uma
faculdade de direito. Para desgraça do Brasil, no entanto, preside aquilo que
deveria ser a mais alta Corte Constitucional do país, cuja virtude primeira dos
seus componentes deveria ser a coragem. A partir da semana passada, o STF, que
já havia se curvado aos políticos da Câmara e do Senado no processo da
derrubada da presidente Dilma, decidiu, em ato formal, tornar-se um poder
subordinado, abrindo mão de ser a Corte que decide em última instância.
A
decisão da maioria do STF fere a Constituição e não se trata de engano. Basta
comparar os argumentos que os juízes usaram quando do afastamento de Eduardo
Cunha e os que usaram na decisão do último dia 12. Fica claro que a maioria da
Corte votou em função das conveniências políticas e não do espírito e da letra
da Constituição. A OAB deveria analisar se estes cinco juízes, mais a Carmen
Lucia, não cometeram crime de responsabilidade. Sob o disfarce do julgamento de
uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, o que decidiram foi o caso específico
de Aécio Neves entregando ao Senado a prerrogativa de devolver-lhe o mandato. O
mesmo Senado que não cumpriu a Constituição quando decidiu não investigar e não
julgar Aécio.
O
STF criou uma desordem constitucional. Para casos diferentes, mas com a mesma
natureza jurídica, aplicou decisões ao sabor das conveniências: uma para
Eduardo Cunha, outra para Delcídio do Amaral, uma terceira para Renan Calheiros
e uma quarta para Aécio Neves. A sociedade não pode ter fé e respeito a um
tribunal que age dessa forma.
Os
magistrados deveriam dignificar o honroso cargo que receberam, alguns sem as
competências e/ou as virtudes necessárias. Deveriam ser um exemplo para a
sociedade e para os futuros juízes. Deveriam pensar em proporcionar biografias
relevantes, pois o bom exemplo e a vida correta são os maiores bens que podemos
deixar nesta vida. Mas quem não tem dignidade não pensa em biografia.
Um
dos fundamentos adotados pela maioria do Supremo sustenta a tese de que somente
os representantes podem decidir acerca de um mandato que emana da soberania
popular. Para manter uma coerência lógica, as decisões que afetarem vereadores,
deputados estaduais e governadores também precisariam de um aval da Casa
legislativa correspondente sempre que uma decisão judicial afetar um mandato.
O
STF se tornou um dos principais fomentadores da crise institucional. Note-se a
absurda argumentação de Dias Tofoli: "O Supremo Tribunal Federal não pode atuar,
portanto, como fomentador de tensões constitucionais, o que ao meu ver viria a
ocorrer caso se suprimisse do poder Legislativo o legítimo controle político de
restrições de natureza processual penal que interferem no livre exercício do
mandato parlamentar".
A
argumentação é absurda porque parte de um pressuposto falso: o STF deve julgar
segundo a Constituição e não segundo se causa ou não causa tensões
constitucionais. Ademais, em nenhum país democrático o Legislativo tem a
prerrogativa de fazer o controle político de restrições de natureza processual
penal. Mesmo no processo de impeachment de um presidente, o Senado se
transforma em tribunal para julgar politicamente, cabendo ao STF julgar a
matéria de natureza penal.
A violação da Constituição
Para
que uma Constituição seja democrática e republicana precisa fundamentar-se em
alguns pressupostos: nenhum poder é ilimitado, nem mesmo a própria
Constituição; Estado de Direito significa poder limitado, valendo isto para os
três ramos do poder; os três poderes estão submetidos a uma relação de
controles mútuos, de pesos e contrapesos, não existindo um poder soberano sem
controle a acima dos outros; definidas as funções específicas de cada poder,
com ingerências parciais um no outro, cabe ao tribunal constitucional as
decisões últimas em matéria penal e no controle da constitucionalidade.
Uma
Corte ou um tribunal constitucional são supremos exatamente porque têm a
prerrogativa das decisões finais, indicadas no último item acima. Se não for
assim, a Constituição deixa de ser republicana e democrática. Foi este
atentado, foi este crime contra a Constituição, que a maioria do STF perpetrou.
A Corte constitucional tem a faculdade de interpretar o direito em vigor, a
Constituição, as leis do Legislativo, com uma autoridade que estabelece uma
obrigação constitucional dos outros dois poderes.
A
prerrogativa de interpretação de uma Corte constitucional, porém, não é aberta
e infinita. Ela tem dois limites: 1) a própria Constituição; 2) os princípios
fundantes da Constituição republicana e democrática que não podem ser
ultrapassados pelo poder constituinte soberano, por uma Corte Constitucional ou
pelo poder que tem a prerrogativa de emenda constitucional - no caso, o
Congresso. A maioria do STF violou a Constituição ao permitir que a Câmara e o
Senado adquiram funções judiciais e possam tomar decisões finais acerca de atos
delituosos de deputados e senadores.
O
Brasil vive hoje uma situação insuportável do ponto de vista político,
institucional e moral. Do ponto de vista político, o sistema e as instituições
estão sem legitimidade e desacreditados junto à sociedade. Do ponto de vista
institucional, há um golpe em andamento, um presidente ilegítimo, o
Congresso desacreditado com dezenas de políticos denunciados e um STF que viola
a Constituição e não faz aquilo que as suas prerrogativas determinam. Do ponto
de vista moral, o Brasil é governando por um presidente denunciado duas vezes e
por um governo criminoso, que destrói os fundamentos éticos, as condições de
futuro do país e afronta a dignidade das pessoas.
O
STF precisa responder à sociedade como é possível que o país seja governando
por um presidente e por um governo sobre os quais recaem, não acusações vagas,
mas provas evidentes de que se trata de entes delinquenciais. Nenhum país do
mundo, minimamente sério e democrático, teria um governo que é expressão de
inominável indignidade. O STF precisa responder à sociedade como é possível que
ministros delinquentes continuam ministros; como é possível que deputados
e senadores corruptos continuam em seus cargos.
Deputados
e senadores só são invioláveis, civil e penalmente, pelas suas opiniões,
palavras e votos, diz a Constituição. Não o são por atos criminosos. Quando
cometem crimes, precisam ser punidos na mesma condição dos demais cidadãos. Se
não for assim, isto é contra os fundamentos e os princípios da Constituição. Se
em algum lugar a Constituição garante proteção a políticos criminosos, isto é
contra os fundamentos Constituição e o STF precisa pronunciar-se e adotar
providências. Se não é assim, a nossa Constituição não é nem democrática e nem
republicana. É uma Constituição refém de covardes, de sofistas e de corruptos.
GGN