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sábado, 8 de julho de 2017

#SomosTodosJuízes ou a “pátria de toga”, por Rubens Casara

Linchamento ocorrido no Brasil em 2015 que vitimou Cleidenilson Pereira Silva. Foto: Biné Morais

 1 – Apresentação do Problema
Era uma vez, um tempo em que o brasileiro se orgulhava de conhecer como ninguém a beleza, as estratégias e os segredos do futebol. Esse tempo passou, talvez em razão da transformação dos campeonatos brasileiros em mercadoria (e de qualidade ruim), talvez diante da ferida narcísica provocada pela derrota para a Alemanha na última Copa do Mundo. Hoje, abandonada a sensação de que todo brasileiro entende de futebol, o Brasil tornou-se a pátria dos juízes. Os duzentos milhões de técnicos de futebol tornaram-se duzentos milhões de especialistas em direito, duzentos milhões de juízes prontos para julgar com celeridade fatos e pessoas. Todos se sentem habilitados a julgar e, enquanto isso, os juízes profissionais, aqueles concursados ou indicados para exercer a jurisdição estatal, tornaram-se protagonistas da vida política brasileira (alguns falam em efeito colateral do ativismo judicial, outros em hegemonia do “partido da justiça”).

O que interessa neste texto é analisar a “pátria de toga” à luz da formação cultural desses milhões de julgadores. Em uma sociedade de “juízes” forjados em uma tradição autoritária, os julgamentos serão sempre marcados pelo autoritarismo. E o Brasil, até agora, fracassou na missão de construir uma cultura democrática e isso repercute no teor dos julgamentos.

Os brasileiros, de um modo geral, acreditam no uso da violência para resolver os mais variados problemas sociais e, em consequência, apostam e apresentam respostas violentas como a solução para qualquer situação problemática. Não há que se estranhar, pois, o aumento do número de agressões a pretexto de fazer “justiça”, com especial destaque para os linchamentos tanto físicos quanto virtuais, tanto nas ruas das cidades quanto nas redes sociais. Em uma sociedade de milhões de juízes que foram levados a acreditar que os direitos e garantias fundamentais são obstáculos transponíveis à eficiência repressiva do Estado ou aos lucros dos empreendedores (e até os explorados, hoje, acreditam ser empreendedores), os julgamentos tendem a desconsiderar os limites civilizatórios.

Em apertada síntese, pode-se afirmar que uma cultura autoritária produz julgamentos autoritários, nos quais se verifica não só forte aderência aos valores da classe média (valores produzidos – vale frisar – em favor da elite econômica), mesmo quando esses valores estão em oposição à normatividade constitucional, como também o recurso à simplificação da realidade e ao pensamento estereotipado. Nos julgamentos do dia-a-dia cresce a tendência a explicações hipersimplistas de eventos humanos hipercomplexos; a reflexão é demonizada em tempo de anti-intelectualismo, típico de momentos autoritários. No país de duzentos e oito milhões de juízes verifica-se uma preocupação em afirmar desproporcionalmente os valores “força” e “dureza”, em manifestações de hostilidade generalizada, com muito cinismo e a desconsideração dos valores atrelados à dignidade da pessoa humana.

Mas, para além da tradição autoritária que condiciona os julgamentos do dia-a-dia, o problema é ainda mais grave. Basta lembrar que, não raro, esses julgamentos que se dão nas ruas, sem informação suficiente e por pessoas sem formação jurídica ou mesmo democrática, passaram a influenciar os julgamentos dos juízes profissionais (dos funcionários públicos a que se reserva o exercício da jurisdição estatal), inclusive nos tribunais superiores. Muitos juízes passaram a justificar suas decisões a partir da necessidade de “ouvir as ruas”, de ouvir a opinião dos milhões de juízes sem toga em seus sofás. Com isso, progressivamente o caráter contramajoritário da função jurisdicional, necessário ao modelo de democracia constitucional, passou a ser abandonado.

Nas democracias constitucionais, marcadas por limites rígidos ao exercício do poder, a “voz das ruas”, a “opinião pública” e as “maiorias de ocasião” não são suficientes para afastar os diretos e garantias fundamentais de qualquer pessoa concreta, culpado ou inocente, amado ou odiado. Em outras palavras, na democracia constitucional o principio da maioria (ou a percepção do juiz acerca da “voz das ruas” ou do “clamor popular”) não se sobrepõe à normatividade extraída da Constituição da República, dos tratados e das convenções internacionais que reconhecem direitos humanos.

Neste pequeno artigo, a proposta é analisar a mudança que parece ocorrer na atuação do juiz brasileiro, que estaria a abandonar o modelo racional e eticamente regrado de apuração dos fatos para aderir à lógica de uma espécie de “cognição mística radicada nas vísceras comunitárias” (Cordero). A hipótese assumida aqui é a de que o recurso às “vísceras comunitárias” estaria a serviço de justificar decisões a partir das convicções dos atores jurídicos (muitas vezes, certezas delirantes do julgador), ainda que essa convicção se revele afastada do acervo probatório ou em desatenção aos limites constitucionais, éticos ou epistêmicos.

2 – Dos Ordálios à “voz do povo”
Com as invasões bárbaras, tornou-se comum no Ocidente um instrumento usado para resolver controvérsias de todo o tipo: o ordálio. Pode-se, em certo sentido, afirmar que os ordálios constituíram uma espécie de sistema probatório composto de uma variedade de técnicas (duelo judicial, prova d`água, caldeirão fervente, etc.) que poderiam ser utilizadas em cada situação, a depender das tradições locais e, em alguns casos, da vontade das partes ou mesmo do juiz.

Alguns afirmam que os ordálios eram meios de prova irracionais. Isso não parece estar correto, como percebeu Taruffo. Os ordálios obedeciam a uma lógica racional, funcional e amplamente aceita no contexto (dominado pelo enchantment) em que eles eram utilizados: o divino podia e diria a verdade para solucionar um conflito. Na realidade, pode-se afirmar que o ordálio era tido como a liturgie d`um miracle judiciaire (Jacob).

Em um contexto de profunda fé religiosa, os ordálios eram a prova de que Deus estava presente nas disputas judiciais, sempre que outros meios se revelavam insuficientes para por fim à controvérsia. O ordálio caracterizava-se por ser decisivo e o seu resultado, as consequências positivas ou negativas da prova (então, mais um desafio do que um elemento de cognição), sempre claro e incontrastável (como duvidar da resposta fornecida por Deus?). Após o órdálio, não havia mais dúvida possível, Deus definia a parte vencedora.

O declínio do recurso aos ordálios, ao que parece, coincide com profundas mudanças na sociedade, e em especial nas práticas judiciárias. Passou-se a acreditar que a verdade dos fatos, a solução justa para uma determinada controvérsia, podia e devia ser apresentada a partir de condutas humanas e não mais por revelações divinas. Do ponto de vista teológico, aderiu-se à tese, já presente em São Tomás de Aquino, de que não se deveria desafiar Deus a resolver matérias que a razão humana poderia dar conta.

Michele Taruffo aponta o surgimento de “caminhos divergentes” após o declínio dos ordálios. Na Inglaterra e no Continente Europeu, o fim dos ordálios produziu consequências diferentes. Na Inglaterra, esse declínio guarda conexão com a consolidação do jury trial. Enquanto isso, na Europa Continental, a probatio substituiu a divinatio, com o aparecimento de novos meios de prova (apresentados como “racionais”), voltados a descoberta da verdade dos fatos (a principal técnica era a inquisitio), que passaram a ser geridos, no mais das vezes, por juízes profissionais.

Na Inglaterra (e de lá para o mundo anglo-saxão), o Júri se consolidou como o principal método à resolução dos conflitos postos à apreciação judicial. Os jurados, antes “testemunhas dos fatos” e depois “juízes do fato”, tornam-se autores de um veredicto imperscrutável (e nesse particular, se assemelha à solução alcançada pela via dos ordálios). É importante lembrar que o juramento solene dos jurados, que ainda hoje se faz presente, invoca a intervenção de Deus no julgamento. Pode-se afirmar que o jury trial, construído como uma garantia individual contra a opressão do poder, busca nas “vísceras comunitárias” a legitimidade dos julgamentos (o que no sistema dos ordálios era obtido mediante a evocação divina).

No modelo originado na Europa Continental, e em princípio adotado no Brasil, procurou-se abandonar os ordálios em uma tentativa de “racionalizar” a busca pela verdade como condição para a realização do valor justiça. O “mito de Deus” acabou substituído pelos mitos da “razão” e da “ciência”. Nesse modelo, os julgamentos têm por base a reconstrução dos fatos através de meios probatórios admitidos na legislação, razão pela qual tanto a “divindade” quanto a “voz das ruas” ou as “vísceras comunitárias” mostram-se estranhas à solução justa dos casos postos à apreciação do Sistema de Justiça. A “verdade” é elevada à condição de legitimidade dos julgamentos e, ao mesmo tempo, as garantias processuais e demais direitos fundamentais, limites jurídicos e éticos ao exercício do poder, passam a funcionar como condições de legitimidade da busca da verdade.

Em apertada síntese: enquanto no modelo europeu-continental (civil law) a verdade dos fatos é tida como um dos principais escopos do processo, no modelo de common law a confiança na correção e na justiça do veredito dos jurados baseia-se no fato dele ser formulado por pessoas que retratam a vox populi (nesse sentido, por todos, Taruffo).

Costuma-se aproximar a “voz do povo” do princípio majoritário. Este, por sua vez, costuma ser apontado com uma manifestação necessariamente democrática. Trata-se de uma concepção que identifica a vontade da maioria (ou, ao menos, a “voz do povo”) com a democracia. Não faltam exemplos históricos de que essa visão é equivocada. Basta pensar na maioria alemã que levou Hitler ao poder e apoiou o projeto nazista ou na maioria dos estadunidenses que apoiava a segregação racial. A democracia e a justiça, coo se percebe, não guardam relação com a opinião das maiorias.

Em princípio, decisões que buscam legitimidade a partir da “voz do povo”, isso é, a partir da opinião (algo da ordem da doxa) dos milhões que se consideram aptos a fazer julgamentos no Brasil, não se mostram sensíveis a limites, sempre que os limites se revelem incompatíveis com o princípio majoritário. Em outras palavras: levar em consideração a “voz do povo” nas decisões judiciais, muitas vezes, vai significar a violação dos limites jurídicos, éticos e epistêmicos (e aqui não se esta problematizando a questão do significado da expressão “voz do povo”). Nada assegura que a “voz do povo” retrate a verdade ou produza justiça.

Registre-se que nos Estados Unidos da América, o trial by jury, pensado como uma garantia contra o poder (a voz Populi em defesa das garantias individuais), vem sendo substituído por técnicas da chamada “justiça negocial” (bargain), adequadas à razão neoliberal, que faz com que todos os valores (verdade, liberdade, etc.) sejam tratados como meras mercadorias (negociáveis, portanto).

III – O Brasil da voz autoritária
No Brasil, apesar da adesão inicial ao modelo europeu-continental, verifica-se, nos últimos anos, a incorporação de institutos, práticas e modos de ver o Sistema de Justiça cunhados para o modelo anglo-saxão. Esse fenômeno, todavia, ocorreu sem a incorporação dos correlatos limites à atividade das partes, à produção e à valoração das provas. Com isso, a vox populi foi elevada a fator decisório, mas sem a dimensão de garantia que existia no modelo do Júri. Mas, qual é a “voz das ruas” que passou a justificar as decisões no Brasil? Uma vox populi selvagem, sem limites, desconstituinte e autoritária.

No Brasil, para satisfazer “as vísceras comunitárias” e atender à “voz das ruas”, atores jurídicos passaram a desconsiderar direitos e garantias fundamentais, vistos não como conquistas civilizatórias, mas como obstáculos à eficiência do Estado. No lugar da busca pela verdade (respeitados os limites jurídicos e éticos), surgem construções narrativas adequadas ao que o julgador afirma ser a “voz das ruas”, mas que muitas vezes não passa de uma estratégia discursiva para decidir contra a lei ou a doutrina.

Muitas sentenças passaram a assumir como “verdade” o que é uma mera possibilidade. São acolhidas as versões que vão ao encontro das convicções dos atores jurídicos (e dos milhões de julgadores), mesmo que os fatos afirmados não encontrem respaldo nas provas produzidas ao longo do processo. Aliás, se verifica uma mutação na valoração da prova: a prova vista como positividade (a “boa prova”, a informação útil, etc.) é apenas aquela que confirma a hipótese já assumida como verdadeira pelo julgador ou pela “voz das ruas”. A verdade judicial passa a ser aquilo que o juiz afirma ser “verdade” a partir de “convicções” prévias (leia-se: preconceitos e pré-compreensões), mesmo que inexista prova nesse sentido (ressuscitou-se a máxima de viés autoritário: auctoritas facit veritas).

Em nome da “voz das ruas”, a natureza contramajoritária da função jurisdicional acaba por desaparecer, o que representa risco concreto aos direitos das minorias e facilita a opressão estatal. Como já se disse no início deste texto: sociedades autoritárias, produzem decisões autoritárias. Escutar a vox populi em um contexto autoritário equivale a abandonar não só o modelo de democracia constitucional como também qualquer pretensão de verdade e justiça.
     
Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.

GGN

terça-feira, 4 de julho de 2017

Brasil não tem alma, não tem caráter, não tem dignidade e não tem um povo, por Aldo Fornazieri


Um país que não tem dignidade não sente indignação

O presidente da República foi flagrado cometendo uma série de crimes e as provas foram transmitidas para todo o país.

Com exceção de um protesto aqui, outro ali, a vida seguiu em sua trágica normalidade.

Em muitos outros países o presidente teria que renunciar imediatamente e, quiçá, estaria preso.

Se resistisse, os palácios estariam cercados por milhares de pessoas e milhões se colocariam nas ruas até a saída de tal criminoso, pois as instituições políticas são sagradas, por expressarem a dignidade e a moralidade nacional.

Aqui não.

No Brasil tudo é possível.

Grupos criminosos podem usar as instituições do poder ao seu bel prazer.
Afinal de contas, no Brasil nunca tivemos república.

Até mesmo a oposição, que ontem foi apeada do governo, dá de ombros e muitos chegam a suspeitar que a denúncia contra Temer é um golpe dentro do golpe.

Que existem vários interesses em jogo na denúncia, qualquer pessoa razoavelmente informada sabe.

Mas daí adotar posturas passivas em face da existência de uma quadrilha no comando do país significa pouco se importar com os destinos do Brasil e de seu povo, priorizando mais o cálculo político de partidos e grupos particulares.

O Brasil tem uma unidade política e territorial, mas não tem alma, não tem caráter, não tem dignidade e não tem um povo.

Somos uma soma de partes desconexas.

A unidade política e territorial foi alcançada às custas da violência dos poderosos, dos colonizadores, dos bandeirantes, dos escravocratas do Império, dos coronéis da Primeira República, dos industriais que amalgamaram as paredes de suas empresas com o suor e o sangue dos trabalhadores, com a miséria e a degradação servil dos lavradores pobres.

Índios foram massacrados; escravos foram mortos e açoitados; a dissidência foi dizimada; as lutas sociais foram tratadas com baionetas, cassetetes e balas.

A nossa alma, a alma brasileira, foi ganhando duas texturas: submissão e indiferença.

Não temos valores, não temos vínculos societários, não temos costumes que amalgamam o nosso caráter e somos o povo, dentre todas as Américas, que tem o menor índice de confiabilidade interpessoal, como mostram várias pesquisas.

Na trágica normalidade da nossa história não nos revoltamos contra o nosso dominador colonial.

Ele nos concedeu a Independência como obra de sua graça.

Não fizemos uma guerra civil contra os escravocratas e não fizemos uma revolução republicana.

A dor e os cadáveres foram se amontoando ao longo dos tempos e o verde de nossas florestas foi se tingindo com sangue dos mais fracos, dos deserdados.

Hoje mesmo, não nos indignamos com as 60 mil mortes violentas anuais ou com as 50 mil vítimas fatais no trânsito e os mais de 200 mil feridos graves.

Não nos importamos com as mortes dos jovens pobres e negros das periferias e com a assustadora violência contra as mulheres.

Tudo é normal, tragicamente normal.

Quando nós, os debaixo, chegamos ao poder, sentamos à mesa dos nossos inimigos, brindamos, comemoramos e libamos com eles e, no nosso deslumbramento, acreditamos que estamos definitivamente aceitos na Casa Grande dos palácios.

Só nos damos conta do nosso vergonhoso engano no dia em que os nossos inimigos nos apunhalam pelas costas e nos jogam dos palácios.

Nunca fomos uma democracia racial e, no fundo, nunca fomos democracia nenhuma, pois sempre nos faltou o critério irredutível da igualdade e da sociedade justa para que pudéssemos ostentar o título de democracia.

Nos contentamos com os surtos de crescimento econômico e com as migalhas das parcas reduções das desigualdades e estufamos o peito para dizer que alcançamos a redenção ou que estamos no caminho dela.

No governo, entregamos bilhões de reais aos campeões nacionais sem perceber que são velhacos, que embolsam o dinheiro e que são os primeiros a dar as costas ao Brasil e ao seu povo.

No Brasil, a mobilidade social é exígua, as estratificações sociais são abissais e não somos capazes de transformar essas diferenças em lutas radicais, em insurreições, em revoltas.

Preferimos sentar à mesa dos nossos inimigos e negociar com eles, de forma subalterna.

Aceitamos os pactos dos privilégios dos de cima e, em nome da tese imoral de que os fins justificam os meios, nos corrompemos como todos e aceitamos o assalto sistemático do capital aos recursos públicos, aos orçamentos, aos fundos públicos, aos recursos subsidiados e, ainda, aliviamos os ricos e penalizamos os pobres em termos tributários.

Quando percebemos os nossos enganos, nos indignamos mais com palavras jogadas ao vento do que com atitudes e lutas.

Boa parte das nossas lutas não passam de piqueniques cívicos nas avenidas das grandes cidades.

E, em nome de tudo isto, das auto-justificativas para os nossos enganos, sentimos um alívio na consciência, rejeitamos os sentimentos de culpa, mas não somos capazes de perceber que não temos alma, não temos caráter, não temos moral e não temos coragem.

Da mesma forma que aceitamos as chacinas, os massacres nos presídios, a violência policial nos morros e nas favelas, aceitamos passivamente a destruição da educação, da saúde, da ciência e da pesquisa. Aceitamos que o povo seja uma massa ignara e sem cultura, sem civilidade e sem civilização.

Continuamos sendo um povo abastardado, somos filhos de negras e índias engravidadas pela violência dos invasores, das elites, do capital, das classes políticas que fracassaram em conduzir este país a um patamar de dignidade para seu povo.

Aceitamos a destruição das nossas florestas e da nosso biodiversidade, o envenenamento das nossas águas e das nossas terras porque temos a mesma alma dominada pela cobiça de nos sentirmos bem quando estamos sentados à mesa dos senhores e porque queremos alcançar o fruto sem plantar a árvore.

Se algum lampejo de consciência, de alma ou de caráter nacional existe, isto é coisa restrita à vida intelectual, não do povo.

O povo não tem nenhuma referência significativa em nossa história, em algum herói brasileiro, em algum pai-fundador, em alguma proclamação de independência ou república, em algum texto constitucional, em algum líder exemplar.

Somos governados pela submissão e pela indiferença.

Não somos capazes de olhar à nossa volta e de perceber as nossas tragédias.
Nos condoemos com as tragédias do além-mar, mas não com as nossas.
Não temos a dignidade dos sentimentos humanos da solidariedade, da piedade, da compaixão.

Não somos capazes de nos indignar e não seremos capazes de gerar revoltas, insurreições, mesmo que pacíficas.

Mesmo que pacíficas, mas com força suficiente para mudar os rumos do nosso país.

Se não nos indignarmos e não gerarmos atitudes fortes, não teremos uma comunidade de destino, não teremos uma alma com um povo, não geraremos um futuro digno e a história nos verá como gerações de incapazes, de indiferentes e de pessoas que não se preocuparam em imprimir um conteúdo significativo na sua passagem pela vida na Terra.

*Aldo Fornazieri é Professor da Escola de Sociologia e Política de SP

Do Viomundo