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quinta-feira, 15 de junho de 2017

Ion de Andrade: A esquerda e a questão republicana

Raramente um fato aparentemente tão desimportante quanto o episódio que envolveu Miriam Leitão num vôo foi alvo de tanto interesse público. Por que? O que houve por trás disto que justificou tamanha atenção. Sabe-se que o que atrai a atenção dos passantes num acidente de trânsito é que ele encerra uma verdade que deve ser entendida por razões de sobrevivência. Se um fato, aparentemente menor, atraiu tanta atenção é porque algo tem a ensinar.

Habituada a agredir petistas e pessoas ligadas ao campo progressista em enterros, internamentos hospitalares, restaurantes e nas ruas, a turba fascista em que se converteu a direita tradicional no Brasil, nunca recebeu reprimenda de nenhuma das suas organizações políticas de referência e, como quem cala consente, essa expressão de ódio tornou-se o comportamento normal, o modus operandi daqueles que aspiram a governar e estão governando o Brasil. Como já disse alguém, no Brasil não temos esquerda e direita, mas Casa Grande e Senzala, o que insere esses ódios novos a uma velha tradição nacional que relega aos de debaixo, o pó.

O que ocorreu no episódio Miriam Leitão/Gleisi Hoffmann foi o magnífico ensaio do que deve ser clara e ostensivamente a nossa conduta. Militantes petistas, e depois ficou provado que não se excederam, foram acusados, pela suposta vítima, Miriam Leitão, de agressão pessoal e política num vôo comercial. Não sei se alguma vez a colunista sentiu-se incomodada com agressões sofridas por gente de esquerda em, limitemo-nos a essa circunstância, enterros de seus mortos. Não vem ao caso, independente disto, baseado numa exigível presunção de inocência, a presidente nacional do PT pediu-lhe desculpas e sinalizou, como lhe pareceu o seu dever, aos que teriam participado da suposta agressão como também ao conjunto da militância e ao país, que esses não eram nossos métodos, e que não podíamos nos igualar à Globo.

Depois disto, inúmeros testemunhos demonstraram que os fatos não haviam sido como narrados por Leitão e eram outros, que as agressões em nenhum momento foram a ela, mas à Globo que ela de direito ou de fato representa, e que tratou-se de um mal decorrente da sua notoriedade e da sua assumida parcialidade, a que, aliás, tem direito, respeitada a integridade moral dos seus alvos... poderiam ter sido aplausos se mais distinta fosse a clientela do voo. Reconheça-se também que, provado não ter havido agressão à pessoa da colunista, e por vivermos, ainda, num país que garante a liberdade de expressão, nada há contra os militantes que gritaram palavras de ordem. Há, portanto, espaço para que a própria Gleisi enquanto presidente do PT possa analisar se vai ou não processar a dita colunista por calúnia e difamação.

Feita essa consideração voltemo-nos a Gleisi. Legítima representante de uma das maiores forças políticas do Brasil, força esta não somente portadora de valores, de uma tradição de lutas e de respeito à democracia, mas que governou e pretende novamente governar o Brasil, Gleisi se limitou a exprimir no episódio o ideário que a sua força política abraça. E, sim, admoestou os seus. Magnífico exemplo. A possível mentira da colunista enobrece ainda mais a sua atitude desprendida e corajosa. E os militantes repreendidos, embora tenham o direito de mostrar quem é Miriam Leitão, têm o dever moral de entender o que a presidente do partido quis dizer. Não é uma questão doméstica, como querem os que acham que ela deveria ter perguntado aos militantes antes de agir. É uma questão pública, um ótimo momento de dizer a que viemos. E, naturalmente, os militantes devem ser ouvidos .

A questão republicana não pode ser confundida com ingenuidade, ela opera no interesse das maiorias e é uma ferramenta muito poderosa de organização das expectativas políticas, conformando, portanto, a cultura a nosso favor.

Há pesada crítica aos governos petistas por ter assegurado sempre a escolha do primeiro da lista do Ministério Público para uma definição, privativa do Executivo, dos Procuradores Gerais da República. E de fato houve aí erro e ingenuidade. Por que? Porque a escolha do primeiro da lista nem sempre atendeu ao respeito à República. Foi o primeiro da lista Janot? Foi republicano? A escolha do primeiro da lista é demagógica e não republicana. A escolha republicana deveria, sempre, ter sido a escolha do mais fiel à isenção e à honra das instituições acima dos interesses específicos, o que, óbvio ululante, não ocorreu. Deveriam ter sido escolhidos promotores reconhecidos por sua grandeza e apego à justiça, e não por sua vaidade, partidarismo, corporativismo ou por sua canalhice, pessoas que fossem reconhecidamente capazes de processar o (a) presidente por causas reais e não casuísiticas.  Não se pode escolher a primeira raposa da lista para tomar conta do galinheiro esperando, em nome dessa estupidez que, por reconhecimento, não devore galinhas. Da mesma forma que seria perverso escolher alguém alinhado ao PT para a PGR.

Critica-se também o PT por ter convertido a Polícia Federal numa força sem comando e aí se atribui a isso o seu republicanismo. Porém observemos, Cardozo ministro e Dilma presidente, nesse particular foram republicanos ou omissos? E Aragão quando prometeu punição para conduções coercitivas desrespeitosas da lei teria sido antirrepublicano? Não, na verdade, a atitude de Cardozo foi lesa-pátria e a de Aragão republicana.

Não podemos desejar um Estado que em nome de uma parcialidade política enviesada em favor da esquerda deixe de buscar a isenção necessária no tratamento da coisa pública. É óbvio que, como construções sociais em meio a uma sociedade dividida entre explorados e exploradores, garantir o caráter republicanos das decisões será sempre um terreno de lutas e de interpretações bem difíceis. E temos lado. Podemos entender como republicano coisas que a direita considere que não são. Vamos enfrentá-los.

Porém, o que está claro é que as forças conservadoras no Brasil não têm, dados os compromissos que estabeleceram com o mercado, com o proveito próprio, ou com o crime organizado, como está escancarado à luz do dia, a menor condição de gerir o Estado com qualquer espírito republicano, compreensão que é estratégica para o campo progressista que deve afirmar-se aí também. O que se constata ,porém, é que o governo da direita no Brasil é, na verdade, um espetáculo dantesco e que, ainda que com ingenuidade e demagogia, somente a esquerda demonstrou poder ser republicana.

Nunca esqueçamos que o Estado democrático de direito é a casa das maiorias e que ele é também a República. Construir e consolidar esse caráter republicano, estratégico para nós, não será coisa nem para demagogos, nem para frouxos. A República é a ordem da casa. Só empunha essa bandeira a força que aspira e pode ser hegemônica. A esquerda democrática, que se opõe à direita plutocrática deve ser tão republicana quanto a direita é antirrepublicana, oligárquica, coronelista, senhorial ou escravagista...

Na sua aparente fragilidade Gleisi fez a coisa certa. A República é um cavalo bravo que não se deixará domar por demagogos que queiram jogar para a plateia. A sua condução exigirá punhos de aço, desapego e sede de justiça, mas as maiorias não precisam temer a República, os privilegiados sim.

No Tarot a República bem que podia ser representada pela carta da Força, aquela onde uma moça de aparência frágil calmamente domina o Leão.

Possa Gleisi estar à altura.

Do GGN