Contra
os historiadores clássicos, o autor da ‘História da Riqueza no Brasil’, Jorge
Caldeira, defende a hipótese de que ‘a colônia portuguesa nas Américas não era
um espaço subalterno’ e contava com mercado interno autossuficiente
O
livro intitulado “História da Riqueza no Brasil” (Caldeira, Jorge. Rio de
Janeiro: Estação Brasil; 2017) traduziria melhor seu conteúdo caso se
intitulasse História do Desgoverno do Brasil ou a História
Neoliberal do Brasil. Ou mesmo a Autoconstrução do Mercado no Brasil: dos
Tupis aos PhDeuses. Já desenvolvi esse argumento em outro artigo-resenha.
Neste,
meu objetivo é analisar a metodologia usada por Caldeira na tentativa de provar
sua tese de autossuficiência do mercado interno no período 1500-1808
do Brasil colonizado. “A noção de economia de subsistência e a
consequente suposição de uma vida econômica restrita aos mínimos vitais foi
empregada irrestritamente, no século XX, por economistas e historiadores de
todas as tendências para descrever a produção dos povos das Terras Baixas” (p.
24) Esta é a porção a leste dos Andes no continente sul-americano. Quase todos
viviam em aldeias autônomas.
O
autor alega que apenas no século XX começamos a entender melhor os costumes
para contar a história econômica dos governos nativos no atual território do
Brasil. Isso ocorreu graças aos estudos dos sistemas de produção econômica e de
governo dos indígenas realizados por “importantes intelectuais: antropólogos do
porte de Darcy Ribeiro, Roberto da Matta e Eduardo Viveiros de Castro”. Outros
indícios permitem aos cientistas contar a história de povos sem escrita.
Para
conhecer “os índios antes do Brasil” (título do livro de Carlos Fausto) temos
que recorrer às evidências fornecidas pela arqueologia e pela linguística
histórica, conhecer as descrições legadas pelos colonizadores e missionários
dos séculos XVI e XVII, e estudar as populações indígenas contemporâneas. Será
que os sistemas sociopolíticos e cosmologias atuais guardam alguma semelhança
com aqueles existentes na época da conquista? Em matéria de demografia e
geografia, as dessemelhanças são notáveis: hoje há possivelmente 1/20 da
população indígena de então.
Caldeira
observa que “essa documentação [que, durante séculos, os historiadores
recorreram para contar a história do Brasil] está fortemente enviesada pelas
crenças dos escritores, revelando até mais seus preconceitos do que
efetivamente dos costumes que procuravam descrever”. Ora, ele padece do mesmo
viés com sua crença neoliberal.
Aquele
popular aforismo – “a história é sempre a mesma, o que mudam são os
historiadores” – expressa uma verdade. Os fatos são interpretados e
reinterpretados, ou até mesmo ignorados “ao sabor do freguês”, isto é, em favor
da tese a ser defendida.
Por
exemplo, mais adiante, Caldeira sequer cita o livro clássico da historiografia
brasileira Cultura e Opulência do Brasil de autoria de André João
Antonil (1649-1716), que avalia detalhadamente os homens que aqui viviam e as
riquezas que o Brasil poderia oferecer a Portugal, preocupando-se em
compreender senhores e escravos, agentes centrais da nossa economia e vida
colonial. A obra, escrita depois de 25 anos de experiência e observação em solo
brasileiro, foi publicada em 1711. Porém, foi em grande parte destruída em
cumprimento ao veto e sequestro régio, confisco realizado para evitar
exposição das riquezas da colônia à cobiça de outras Nações, responsáveis por
saques constantes na costa brasileira. França, Holanda e Inglaterra não
poderiam ter o conhecimento desse potencial extrativo. Tornou-se um livro clássico
de leitura obrigatória para uma boa formação histórica.
Contra
os historiadores clássicos, o autor da “História da Riqueza no Brasil” opta por
demarcar seu lugar na historiografia defendendo a hipótese de que “a colônia
portuguesa nas Américas não era um espaço subalterno” porque:
1.
as atividades econômicas são regidas pelo mercado;
2.
a economia apresenta dinamismo próprio;
3.
a sociedade é constituída de produtores independentes, tanto pequenos
empreendedores como grandes empresários;
4.
a escravidão é essencialmente de pequenos proprietários, indistintos do grupo
dos produtores independentes;
5.
há um domínio financeiro sobre a África (com grandes proprietários, os mais
ricos do Brasil, controlando o negócio); e
6.
com um ritmo de crescimento maior que o da metrópole arrecadadora.
Argumenta
que a norma da divisão entre todos os herdeiros desde o início da colonização
no Brasil teve consequências importantes no que se refere ao empreendedorismo.
Tanto a aplicação da leitura antropológica dos costumes como os resultados da
pesquisa mais recentes – sem citar as fontes – levam a Caldeira chegar a
conclusões bastante diversas da interpretação tradicional, que postulava uma
estrutura familiar de modelo patriarcal. As relações de gênero dominantes
atribuíam à mulher papéis, tais como na sociedade Tupi-Guarani, que iam muito
além da submissão.
A
regra essencial da cultura Tupi-Guarani continuou observada no Brasil: homens
vindos de fora tinham, pela via do casamento, a possibilidade de serem aceitos
em um grupo familiar estabelecido. Assim se formou uma sociedade
miscigenada principalmente a partir da descoberta do ouro.
Mesmo
com a monetização progressiva da economia antes dominada pelo escambo e o maior
poder dos homens com dinheiro ou bens para casar, o fiado esteve
presente desde o primeiro momento e sobreviveu. Conviveu com a circulação da
prata espanhola, que servia de moeda e capital nos dois primeiros séculos, e do
ouro no século XVIII. Tomadores de mercadorias fiadas se ligam ao ato de
empreender, aventurar, arriscar. Fiar vincula os contratantes por um
laço de reciprocidade e confiança. Fiar cria uma rede de crédito
informal e/ou não-bancária.
Desse efeito
de rede entre os diversos componentes informais emerge um sistema
complexo: uma economia garantida apenas pelo costume, pela palavra, pelo “fio
do bigode”. Esta esteve “ao largo da lei, ao largo do registro escrito, ao
largo dos governos, ao largo das análises” (p. 179).
Agindo
com astúcia diante de um governo ávido para arrecadar tributos, o colonizado
autônomo conduzia seu empreendimento recorrendo à informalidade e aos costumes
desconhecidos pela autoridade régia. Interessava a invisibilidade: o
mercado e o lucro que ele gerava permaneciam fora do alcance do governo.
“Os
moradores do Brasil governavam-se a si mesmos basicamente de duas maneiras. Em
primeiro lugar, pelos costumes gerais (como os casamentos de aliança
ou o fiado), que regiam uma sociedade multiétnica, empreendedora e capaz de
acumular riqueza. A aplicação parcial da lei escrita, das Ordenações do Reino,
assegurou o florescimento de instituições favoráveis ao empreendedorismo. Em
segundo lugar, os governos locais [paroquiais] atuavam com grande
legitimidade e tinham um nível elevado de adaptação a essa sociedade aberta: as
câmaras municipais e o clero secular eram as autoridades mais conspícuas e
influenciadas pelos costumes” (p. 180). Para ele, empreendedores eram
populares, pois “havia no Brasil um grau de soberania popular maior do que na
metrópole” (p.169).
No
fim das contas, conclui Caldeira, o governo-geral não atrapalhava demais o
crescimento da economia pelas vias informais. “Leis civis como as relativas ao
estatuto da terra, a forma de herança ou os direitos da mulher,
substancialmente alteradas pelo costume, também favoreciam os empreendedores e
o mercado, na comparação com o ambiente metropolitano ou mesmo europeu.
Costumes da população como alianças matrimoniais ou o fiado garantiam
efetivamente o desenvolvimento diferencial da colônia” (p. 181).
Argumenta
que a documentação rala era fortemente marcada por visão de mundo de que a
desigualdade era eterna e natural e a riqueza deveria fluir para senhores e
nobres. Tal visão não permitia explicar o crescimento econômico superior da
colônia em relação à metrópole sem haver exportação (e consequente tributação)
que o justificasse. Ficou a impressão da falta de dinamismo econômico, quando a
autoridade central não se importava com ele, mas o crescimento acontecia com o
apoio de governos locais (câmaras de vereadores com analfabetos como eleitos e
eleitores) e costumes diversos.
Na
dependência de trajetória histórica da economia brasileira, deduz Caldeira, “os
grandes processos nacionais dependiam muito pouco do governo como um todo” (p.
292). Em termos sociais, frutificou a miscigenação iniciada com a aliança
oferecida pelos Tupis. Em 1890, o Censo registrou 44% de brancos, 32% de
pardos, 14% de negros, 9% de índios. Uma única língua era falada e entendida em
todo o território (quase ½ da América do Sul), não fragmentado como o da
América espanhola, mas com apenas 641 municípios, em sua maioria litorâneos.
Cerca de 82,6% da população era analfabeta. Ela triplicou de tamanho entre
1819, quando existiam 4,4 milhões de habitantes, e 1890, ano em que foram
contados 14,3 milhões de habitantes.
Porém,
o século XIX como um todo, em que predominou uma Monarquia semiparlamentarista,
aliás, como o atual governo temeroso almeja, foi um período de estagnação da
economia brasileira e de aceleração da economia mundial. O Império brasileiro
não se integrou à essa expansão internacional e o mercado interno não foi mais
suficiente para dar dinamismo econômico.
Depois
dos decretos liberalizantes de Rui Barbosa em 1890, o governo republicano
renunciou ao papel de interventor vigilante na vida econômica e criou as
condições legais para que empresários pudessem atuar com liberdade. “Bastou
esse ato para que os empresários se libertassem do confinamento de sua
atividade à casa (isto é, seus negócios pessoais) e oferecessem os
produtos de suas empresas (agora Pessoas Jurídicas legalizadas) no mercado (agora
uma instituição capaz de funcionar com apoio da lei). A mudança fez toda a
diferença para os industriais e financiadores do sistema de crédito que atuavam
na direção do capitalismo” (p. 517).
Esta
é a tese que Caldeira pretendia defender: “muito mais desenvolvimento com menos
poder central”. Daí justifica seu entusiasmo com a Primeira República, quando
“toda a sofisticada tentativa de uma política governamental visando acelerar o
crescimento econômico foi concebida no âmbito privado e elaborada inicialmente
na sociedade” (p. 520). E seu desalento com a Era do Muro (1930-2017), quando o
emprego do governo central como dique nas transações externas permite um
crescimento maior que a média internacional em tempos de economia fechada, mas
sua manutenção leva a resultados pífios na Era da Globalização.
Ele
defende com entusiasmo inaudito o “desencalhe” da Era Neoliberal com a abertura
externa de Collor e a privataria tucana. E fica extremamente infeliz com o
“reencalhe”, isto é, a mudança do modelo de concessão para o de partilha do
petróleo do pré-sal. Como reles neoliberal, deseja que se entregue toda a
riqueza brasileira, inclusive a Petrobras, à iniciativa privada, mesmo que essa
seja estrangeira. Em tempos de globalização, acha que não faz mais sentido
falar em Nação. Isso é coisa de gente que defende o corporativismo, que “luta
para sobreviver no poder” em “uma sociedade dominada por costumes
igualitários e globalizados”! Onde?! Aqui-e-agora com a brutal concentração da
riqueza brasileira nas mãos da casta dos mercadores?!
Fernando
Nogueira da Costa - É professor titular do IE-Unicamp. Autor de “Brasil
dos Bancos” (Edusp, 2012), ex-vice-presidente da Caixa Econômica Federal
(2003-2007). É colunista do Brasil Debate
Crédito
da imagem da página inicial: Reprodução Rugendas.
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