O colunista
Reinaldo Azevedo é o mais novo exemplo de injustiça contra jornais e
jornalistas, situação típica de um quadro de avanço de um estado de exceção.
Se for para
falar de casos nacionais, vamos lembrar de Edu Guimarães, alvo de uma
condução coercitiva escandalosa na Lava
Jato.
Se for para
ficar em Minas Gerais, a perseguição a inúmeros profissionais de imprensa que
ousavam criticar desmandos do outrora todo-poderoso Aécio Neves constitui um
fato tão banal que deixou de ser notícia.
Já no
período chamado de interinato, Michel Temer consumou uma intervenção em grande
estilo na EBC. Destituiu um presidente com mandato legal de quatro anos, ponto
de partida para o esvaziamento de um jornalismo que fazia o contraponto ao
pensamento único. Entre outras coisas, nunca deixou de denunciar os
preparativos de um golpe de Estado em curso.
A
perseguição a jornalistas tornou-se possível no interior de uma paisagem mais
ampla no Brasil desses tempos, quando se assiste à caçada a Luiz Inácio Lula da Silva e já se viu a
prisão absurda José Genoíno, um dos mais decentes parlamentares da geração que
produziu a Constituição de 1988. Claramente injustiçado, condenado a penas
duras, sem relação com qualquer denúncia que tenha sido comprovada, a situação
de José Dirceu encontra-se no mesmo quadro.
A injustiça
contra Reinaldo Azevedo consistiu em divulgar trechos de uma conversa com
Andrea Neves, irmã e personagem importante do grupo político de Aécio. Um
diálogo profissional e pessoal, típico das relações entre um jornalista e sua
fonte.
A divulgação
de conversas privadas, sem relação com qualquer fato jurídico sob investigação,
faz parte de uma velha técnica stalinista de desmoralização de personalidades
públicas que incomodam aparelhos de poder.
Foi descrita
de forma genial pelo tcheco Milan Kundera em A Insustentável Leveza do Ser.
Kundera mostra por que a construção de uma ditadura imposta pelos tanques do
Pacto de Varsóvia -- responsáveis pelo esmagamento do projeto democrático da Primavera de Praga -- tinha
necessidade de humilhar e desmoralizar personalidades ligadas ao governo
deposto. Era uma forma de tentar
destruir a memória da população.
No Brasil de
nossos tempos, Marisa Letícia foi alvo de uma operação particularmente cruel na
operação Lava Jato. Em abril de 2016, Sérgio Moro autorizou a divulgação de
diálogos da mulher de Lula com um de seus filhos, numa conjuntura em que a
desmoralização sem limites da figura do presidente era essencial para impedir
sua posse como ministro-chefe da Casa Civil de Dilma.
É mais que
provável que Reinaldo Azevedo tenha sido gravado por acidente. Havia uma escuta
sobre as conversas de Andrea Neves, que captou centenas de diálogos --pelo
menos um deles com Reinaldo Azevedo. É evidente que outras conversas, com
palavras e argumentos típicos de quem não imagina estar sendo gravado, também
foram grampeadas. Talvez estejam por aí, para serem vazados em outra
oportunidade, ainda que o ministro Edson Facchin, do STF, tenha tomado medidas
para reforçar o sigilo dos áudios relativos a JBS.
A pergunta é
saber quem tomou a decisão de publicar a conversa, em vez de simplesmente
destruir o material, como determina o regimento da Polícia Federal.
A tradição
nacional manda culpar os guardas da esquina e pedir desculpas sempre que
vítimas mais graúdas são atingidas, gerando
uma reação inesperada que a tentativa de denúncia num escândalo em si.
Num caso
obviamente político, que só pode ser produzido por quem possui estatura para
agir nesse patamar, no qual as decisões
podem trazer louros ou pedradas, não custa lembrar o lugar de Reinaldo Azevedo
na conjuntura de 2017.
Conservador
até a medula, produz textos e comentários que fazem uma crítica feroz -- a meu ver inteiramente
errada e superficial -- aos governos Lula-Dilma e às políticas progressistas em
geral.
Ao mesmo
tempo, não deixa de denunciar -- e isso se tornou cada vez mais claro com o
passar do tempo -- os abusos e desvios que ameaçam o Estado Democrático de
Direito. Não é uma crítica nova mas Reinaldo demonstra conhecimento de causa ao
empregar argumentos que são um ponto fora de curva num ambiente político
polarizado.
Em seus
direitos como jornalista, Reinaldo Azevedo deve ser defendido sem poréns nem
todavias. Sua postura diante de direitos e garantias faz dele um adversário a
ser respeitado.
Deve ser
combatido e derrotado no plano das ideias e da luta política -- e não por
medidas de intimidação.
(Não custa
lembrar que seria um combate com "paridade de armas" se a mídia não
fosse um latifúndio de grandes famílias alinhadas com suas próprias
conveniências e interesses, o que permitiria celebrar em bases concretas a
inesquecível frase de Voltaire: "Discordo inteiramente do que dizeis, mas
defenderei até a morte seu direito de fazê-lo").
O debate
sobre o lugar dos jornalistas na conjuntura atual está longe de resolvido,
contudo.
Há muito
tempo nós sabemos da importância da
mídia e de seus profissionais para a justiça-espetáculo. É um dos
fatores essenciais.
Os leitores
deste espaço recordam que, no texto clássico sobre a Operação Mãos Limpas,
inspiradora da Lava Jato, Sérgio Moro fala da importância de conquistar a
simpatia dos meios de comunicação, indispensável para deslegitimar
personalidades que podem ser alvo de denúncias de corrupção. A razão é
simples: frequentemente, os alvos são
lideranças reconhecidas pela população e é preciso que a mídia ajude a quebrar
o apoio de que desfrutam.
Avaliando as
várias etapas da Mãos Limpas, que incluíam vazamentos através de jornais e
revistas classificadas como "simpatizantes", o juiz sublinha: "a
deslegitimação, ao mesmo tempo em que tornava possível a ação judicial, era por
ela alimentada."
O que se
descreve, aqui, não é o jornalismo como um meio de apuração, acumulo de
conhecimento e crítica social, capaz de expressar livremente os vários pontos
de vista de uma sociedade. O que se enxerga é uma força instrumental, um braço auxiliar de
ações judiciais -- desprovido de crítica, de distanciamento.
Num artigo
publicado hoje pela Folha de S. Paulo, o PGR Rodrigo Janot dedica quatro
parágrafos para falar sobre o tema.
Sem dar
nomes, Janot rebate críticas de um "editorialista" de um "importante veículo de
imprensa" para fazer a defesa do acordo de delação premiada com Joesley
Batista e o grupo JBS. Não vou discutir os argumentos de Janot.
O simples
fato do Procurador-Geral da República dar-se ao trabalho de formular uma
resposta de próprio punho é revelador da importância que atribui ao apoio da
mídia.
A reação dos
mesmos veículos é um sinal de que os tempos de adesão automática parecem estar
chegando ao fim.
No dia
anterior, o editorial "Sem
Rumo", o Estado de S. Paulo bateu com força.
"São um
insulto, aos brasileiros de bem e um escárnio da Justiça, os termos da
colaboração premiada assinada entre o senhor Joesley Batista e a Procuradoria
Geral da República."
Numa crítica
direta, personalizada, o editorial afirma: "há mais do que indícios de que
o sr. Janot já não sabe aonde se situa o norte firme da lei e da
Constituição."
Na mesma
edição da Folha de S. Paulo que publicou o artigo de Janot na página 3, saiu,
na página 2, um editorial ( "Acordo açodado") que classifica a
divulgação dos diálogos de Reinaldo Azevedo como "violação ao princípio
constitucional". Numa avaliação mais abrangente sobre o acordo com a
JBS, o texto também afirma, a título de
conclusão: "Conseguiu-se assim ampliar o sentimento de que as autoridades
cedem as tentações do arbítrio, da onipotência e da precipitação."
É
obrigatório recordar que, ao aproximar-se do PSDB de Aécio Neves e José Serra,
do PMDB de Michel Temer e das reformas de Henrique Meirelles, as investigações
deram uma grande contribuição para o despertar dos princípios democráticos e
garantias que ficaram longamente adormecidos quando o alvo a ser atingido era o
PT de Lula. Não há nem pode haver dúvida a respeito.
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