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sábado, 13 de maio de 2017

A vida dos trabalhadores pobres na pátria rica

Uma dica para os leitores. E para algum editor brasileiro, que tenha sobrevivido à tempestade destrutiva dos últimos tempos. É um livro-depoimento fantástico, escrito por Linda Tirado: Hand to Mouth: Living in Bootstrap America, ed. G. P. Putnan’s Sons, N.York, 2014.

Transcrevo abaixo o prefácio escrito por Barbara Ehrenreich, autora bem conhecida no Brasil, por livros como: Miséria á Americana, Desemprego Colarinho-Branco e O Medo da queda: ascensão e crise da classe média (que já comentei em outro post).

A tradução é livre e apressada, mas acho que compreensível:
Esperei por esse livro há muito tempo. Bem não por este livro, porque nunca imaginei que o livro que estava esperando seria tão devastadoramente inteligente e engraçado, que prendesse tanto minha atenção e com tal firmeza no foco. Na verdade, eu gostaria de tê-lo escrito eu mesma — quer dizer, se eu tivesse vivido a vida de Linda Tirado e extraído todas as duras lições que ela aprendeu. Eu sou a autora de Nickel and Dimed [versão brasileira: Miséria á americana, editora Record], que conta a história de minha própria breve tentativa, como uma jornalista semi-disfarçada, para sobreviver nos setores de baixos salários do comércio varejista e prestação de serviços. Linda Tirado é a coisa real.

Depois que meu livro saiu, em 2001, passei mais de dez anos na estrada, falando sobre isso em palestras em sindicatos, reuniões de igreja e principalmente em campuses universitários. Eu fiz isso em parte pelo dinheiro, porque eu tinha perdido meu trabalho jornalístico mais bem pago em 1997, e alguns anos mais tarde a mídia decidiu que escritores já não precisavam ser pagos, como se escrever não envolvesse qualquer gasto de calorias.

Mas eu também fiz isso porque eu estava em uma missão. As pessoas muitas vezes perguntavam como meu trabalho para Nickel and Dimed me mudou, e eu acho que eles queriam saber como isso tinha feito que eu, uma pessoa de classe média, ficasse mais consciente dos pobres. Bem, eu não precisava tanto dessa consciência, porque eu tinha nascido no estrato mais baixo da classe trabalhadora e me recolocara nele tornando-me mãe solteira e depois casando com um trabalhador do setor de armazenagem, quando já estava na casa dos trinta anos. Então minha passagem como uma trabalhadora de baixo salário/jornalista teve apenas um grande efeito em mim: me levou da preocupação com a exploração dos trabalhadores de baixos salários — para algo mais próximo da raiva.

Minha expectativa era a de experimentar a privação material na minha vida de US $7 por hora (o equivalente a aproximadamente US $9 hoje), e certamente isso ocorreu. O fato de que eu tinha alguns privilégios como um carro de trabalho (eu tinha um contrato de Rent - A-Wreck, em cada uma das cidades onde trabalhei para não acabar escrevendo um livro sobre esperando ônibus) só fez a parte de privação ficar mais chocante. Aqui eu estava — em boa saúde, sem filhos pequenos sob meus cuidados — trabalhando em tempo integral, às vezes mais de um emprego ao mesmo tempo, às vezes ao ponto sentir que minhas pernas eram de borracha, e estava a comer precariamente em lojas de conveniência ou na Wendy’s.

O que eu não esperava era a humilhação diária, os insultos e o que pareciam ser truques mesquinhos. Ser pobre é ser tratado como um criminoso, sob constante suspeita de roubo e uso de drogas. Significa não ter nenhuma privacidade, já que o chefe tem o direito de revistarseus pertences em busca de itens roubados. Envolve a ser pisoteado inexplicavelmente, como quando o Wal-Mart, de repente, mudou meu horário, ignorando que eu tinha um segundo emprego para cobrir. Significa receber ordem para trabalhar com ferimentos e doenças, como a erupção debilitante que adquiri uma vez, manuseando liquidos de limpeza industrial.

E o que foi mais atordoante para mim: ser um trabalhador de baixo salário significa ser assaltado pelo empregador que está monitorando você tão insistentemente por suspeita de roubo. Você pode ser forçado a trabalhar horas extras sem pagamento ou obrigado a começar a trabalhar quarenta e cinco minutos antes que o tempo comece a ser contado. Se você fizer as contas, você pode descobrir que algumas horas tem sido excluidas de seu salário a cada semana, pelos computadores da empresa.

Mas quando eu fiz minha rodada, de campus para campus, contando minhas histórias sobre trabalho e incitando os alunos a ter interesse em todos os trabalhadores de baixos salários que estavam a fazer a sua educação possível todos os dias — os trabalhadores de serviços de alimentação, faxineiros, empregados e professor adjunto —invariavelmente eu ouvia a pergunta que se resume a isto: o que há de errado com essas pessoas? Eles se referiam aos trabalhadores, não aos chefes.

Normalmente, quem perguntava era um garoto pertencente a uma das fraternidades da escola, que tinha feito a disciplina introdutória de economia, um curso que existe, tanto quanto posso ver, com o único propósito de convencer os jovens de que a estrutura de classe existente é justa  e inalterável de qualquer maneira. Se não há nada de errado com nosso regime económico, então a única pergunta restante é: por que "essas pessoas" têm filhos,  deixam de pupar, deixam de ir para a faculdade, comem comida ruim, fumam cigarros, ou qualquer outra coisa que se imagina que possa contê-los?

Então, quando me deparei com o blog de Linda Tirado há cerca de seis meses, senti uma imensa onda de reafirmação. Até mesmo — ou, talvez, especialmente — a confissão de que ela fuma cigarros me atingiu como uma rajada de ar fresco. Ela diz como é ser um trabalhador de baixo salário por um longo período, com um marido que tem emprego instável e dois filhos pequenos para criar. Ela demonstra tudo que tenho tentado mostrar em meus anos de campanha para que os trabalhadores tenham melhores salários e mais direitos: que a pobreza não é uma "cultura" ou um defeito de caráter; é falta de dinheiro. E que essa escassez surge do salário dolorosamente inadequado, agravado pela constante humilhação e estresse, bem como a predação definitiva pelos empregadores, pelas empresas de crédito e até mesmo pelas instituições voltadas para a aplicação da lei.

Mas deixe-me sair do caminho agora. Ela pode dizer isto muito melhor do que eu.

Do GGN, por Reginaldo Moraes