Peça 1 – civilização contra barbárie
Nas últimas semanas, quatro
ex-primeiros ministros europeus vieram ao Brasil em consideração a Lula, e para
discutir a crise das democracias liberais. Foram eles Martin Schultz, da
Alemanha, Dominique de Villepin, da França, Massimo D’Alema, da Itália, e José
Luiz Zapatero, da Espanha, além de Pierre Salé, ex-diretor geral da Anistia
Internacional.
Em qualquer país civilizado, haveria
cobertura maciça, pela oportunidade única de levar para a opinião pública, sem
intermediários, as informações e opiniões de figuras-chave da política mundial.
Presente ao encontro, o linguista
norte-americano Noam Chomsky já tinha decifrado esse fenômeno da invisibilidade
no seu próprio país. Pessoas com acesso a educação de elite, são treinadas para
discernir o que não deve ser dito.
Os grupos de mídia ignoraram as
seguintes conclusões dos europeus:
1. A grande disputa mundial se dá entre
o multilateralismo e a globalização selvagem que trouxe, como contrapartida, a
xenofobia e o individualismo extremado, com o avanço dos partidos radicais e a
desmoralização da democracia liberal.
2. O futuro da democracia mundial está
sendo travado no Brasil. Se vencer o estado de exceção, se o Judiciário se
impuser sobre a política, caindo a democracia no Brasil cairá na América
Latina, África e outros países.
3. Depois da morte de Mandela, Lula se
tornou o símbolo universal da luta civilizatória. Ele está para a democracia
assim como Mandela esteve para a discriminação racial.
Peça 2 – os pontos centrais da disputa
Vamos entender um pouco melhor essa
guerra mundial, que é o melhor caminho para explicar a irracionalidade que tomou
conta do Brasil.
O pós-guerra consagrou uma nova etapa
do capitalismo, tratado como a Era de Ouro. Fortaleceram-se os laços de
solidariedade mundial, através das novas instituições criadas e de um conjunto
de acordos multilaterais, consagrando direitos humanos e sociais, induzindo o
desenvolvimento dos estados de bem-estar social e outros avanços que permitiram
a fase de maior expansão e inclusão da história do capitalismo.
Nos anos 70, a expansão do
capitalismo financeiro provocou a primeira ruptura, com o fim da paridade
ouro-dólar conferindo uma liberdade ampla ao capital financeiro, nos mesmos
moldes do que ocorreu no final do século 19 e início do século 20, período que
preceu a 1a Guerra.
Produziu bolhas sequenciais, das
bolhas bancárias do Japão, nos anos 80, às bolhas cambiais dos anos 90, a
Nasdaq nos anos 2.000 até explodir na grande crise de 2008. Mas, até então,
havia um razoável controle do ultraliberalismo sobre a política, graças à
cooptação de intelectuais, basicamente economistas, acenando com a prosperidade
geral, em um ponto qualquer do futuro, se houvesse sacrifícios dos
trabalhadores/consumidores no presente.
Era o falso iluminismo, supondo que o
avanço da tecnologia resolveria todas os problemas mundiais. trazendo a
prosperidade eterna.
Foi uma ideologia tão poderosa, que
até mesmo a socialdemocracia europeia sucumbiu a esse discurso, abrindo mão de
conquistas sociais e aceitando a livre movimentação de capitais.
Quando veio a crise de 2008, o
castelo de cartas veio abaixo. Constatou-se, então, a extraordinária
concentração de renda no período, entre nações e internamente entre faixas
sociais.
Os exageros das medidas em benefício
do grande capital, o falso discurso da meritocracia, como justificativa para o
desmonte do Estado social, tudo isso levou ao quadro atual em que o próprio
capitalismo liberal se vê ameaçado.
Vamos a um pequeno apanhado de sinais
de alertas emitidos ontem pelo The Economist, a bíblia do capitalismo:
O LIBERALISMO fez o mundo moderno, mas o mundo moderno está se voltando contra ele. A Europa e a América estão no meio de uma rebelião popular contra as elites liberais, que são vistas como egoístas e incapazes ou incapazes de resolver os problemas das pessoas comuns. (...) Os governos liberais ficaram tão envolvidos em preservar o status quo que esqueceram o que é o radicalismo. Lembre-se de como, em sua campanha para se tornar presidente da América, Hillary Clinton escondeu sua falta de grandes ideias por trás de uma nevasca de pequenas opiniões. (...) A meritocracia liberal de hoje se incomoda com essa definição inclusiva de liberdade. A classe dominante vive em uma bolha. Eles vão para as mesmas faculdades, casam-se, vivem nas mesmas ruas e trabalham nos mesmos escritórios. A maioria das pessoas deve se contentar com a crescente prosperidade material. No entanto, em meio à estagnação da produtividade e à austeridade fiscal que se seguiu à crise financeira de 2008, até mesmo essa promessa foi muitas vezes quebrada. (...) É o momento de uma reinvenção liberal. Os liberais precisam gastar menos tempo rejeitando seus críticos como tolos e fanáticos e consertando o que está errado.
Peça 3 – os ataques ao multilateralismo
Não apenas a globalização financeira
promoveu essa esbórnia.
Em sua palestra, o ex-primeiro
ministro francês, Dominique de Villepin, sintetizou os demais fatores de
instabilidade global.
O primeiro, o desequilíbrio
geopolítico, com a maior potência - Estados Unidos - em queda e uma nova
potência - a China - em ascensão. Os EUA vem reagindo a essa perda relativa de
protagonismo, e o que parece ser a brincadeira de um homem, Donald Trump, na
verdade é um jogo muito mais profundo, que vai continuar após Trump. É um
combate total, com riscos militares, tecnológicos, tarifas comerciais etc.
Julgavam que a democracia liberal
ganharia em toda parte.
Agora, diante do impasse da história,
os EUA e a administração Trump estão imaginando que o caos será favorável aos
EUA. Por isso atacam a regulação, as instituições, os tratados internacionais,
as instituições internacionais que garantiram a paz internacional nas últimas
décadas.
O segundo fator é a ideia de grupos
sociais podem mandar em outros, dependendo dos recursos financeiros ou da cor
da pele, ou de sua institucionalidade, com a judicialização da política.
O terceiro fator de desequilíbrio
foram as redes sociais promovendo enorme balbúrdia de opiniões e informações.
Peça 4 – o fator Lula no mundo
Com a crise de 2008, o neoliberalismo
morreu, o pensamento tecnocrático fracassou, mas a política não tinha o que
colocar no lugar.
Foi nesse contexto que surge o
fenômeno Lula. Surfando nas ondas da crise global, Lula atuou em duas frentes.
Internamente, comandando a resistência contra os efeitos da crise internacional.
Externamente – graças a Celso Amorim – assumindo a liderança das negociações no
âmbito do G20 e do BRICs.
O Brasil se tornou um case mundial
por várias razões. No plano internacional, por mostrar a viabilidade de novos
centros de influência, fora do binômio Estados Unidos-União Europeia.
Em relação às políticas públicas,
iluminou a socialdemocracia europeia. Como observou o italiano D’Alema, Lula
surgiu trazendo ideias claras sobre os objetivos da política, que é de se
aproximar do eleitor comum, colocar o cidadão como centro das políticas.
Isso em um momento em que a socialdemocracia se debatia com a total falta
de rumos, ante a multiplicidade de diagnósticos e propostas que se seguiram à
grande crise. De outro, mostrando como se poderia inovar nas políticas sociais,
nas formas de participação popular e, especialmente, no feito inédito de tirar
40 milhões de pessoas da linha de pobreza.
Volte um pouco no texto e releia o
que o The Economist relaciona como pontos centrais da crise do capitalismo
liberal.
Lula se tornou o grande símbolo das
virtudes do poder político humanizado, contra o poder financeiro, aliado às
tecnocracias locais – peste que está assolando a maior parte das democracias.
Peça 5 – a guerra mundial no Brasil
Os desdobramentos da crise internacional,
os novos fatores de influência, produziram um rearranjo das forças políticas e
econômicas, cujos atores podem ser melhores qualificados analisando-se os
pontos centrais da disputa:
1. O desmonte maior ainda dos estados
nacionais, através da desregulação selvagem.
2. O combate ao multilateralismo.
3. A xenofobia e o preconceito.
4. A judicialização da política, com o
controle da política por corporações públicas não eleitas.
Como deixou bem claro o editorial do
The Economist, não se trata de uma disputa capitalismo vs socialismo, mas
de civilização vs barbárie.
São atores diversos que participam
dessa frente obscurantista, dos movimentos de ultradireita, aos defensores do
estado de exceção, através do cooptação do Judiciário e da judicialização da
política.
No Brasil, três tipos de personagens
despontam na brigada do obscurantismo.
Do lado da truculência mais tosca,
Raul Bolsonaro, MBL e afins. No plano Jurídico, enaltecendo o estado de exceção
e desmoralizando os acordos internacionais, o Ministro do STF (Supremo Tribunal
Federal) Luís Roberto Barroso. Lava Jato e afins são tarefeiros, agentes
oportunistas que procuram ocupar vazios de poder. Mas a bênção irresponsável
vem do Supremo e, nele, do corneteiro mor, Barroso, profeta maior do
obscurantismo. Na frente da mídia, as Organizações Globo.
Analisando-se o cenário
internacional, fica mais fácil entender o tiroteio cerrado da Globo contra
todos os candidatos a presidente, inclusive os antigos aliados, acentuando a
demonização da política e defendendo incondicionalmente os abusos da Lava Jato.
Em parte, por suas vulnerabilidades na parte penal, tanto em questões fiscais
como nos casos envolvendo a CBF. Mais ainda, por ter tomado partido nessa luta global
de instaurar a ditadura das corporações, falsamente legitimada pelo ativismo do
Judiciário.
Aliás, foi inesquecível a expressão
de Pierre Sané, o ex-diretor geral da Anistia Internacional, comentando a
discussão brasileira sobre a obediência ou não aos tratados internacionais,
especialmente ao Comitê de Direitos Humanos da ONU que, segundo Barroso, seria
um organismo menor, sem representatividade.
Como não teria representatividade?
indagou Sané. Seus membros foram indicados pelos países que assinaram o acordo,
todos são especialistas internacionais de alta reputação, indicados pelos
membros integrantes do acordo. Todos os países-membros se comprometeram a
acatar suas decisões. E assinaram os acordos soberanamente, sem nenhuma espécie
de imposição. Como dizem, agora, que o acordo não deve ser obedecido?
Mas quem é Sané, perto de um
editorial de O Globo, fundado em um voto de Barroso?
“A longa sessão do julgamento também serviu para, pelo voto do ministro-relator, Luís Roberto Barroso, ser detalhada a patranha da tal defesa “da ONU” do reconhecimento da candidatura do ex-presidente.Como ficou registrado no voto de Barroso, não houve qualquer pronunciamento “da ONU”, mas de um órgão administrativo da instituição, chamado Comitê de Direitos Humanos”.
Nem Luiz Edson Fachin ousou colocar
em tal situação de risco sua reputação jurídica, explicando tecnicamente a
obrigatoriedade da vinculação das decisões internas às decisões do Comitê da
ONU.
Peça 6 – a mensagem dos políticos
Na palestra exemplar de Villepin, o
chamamento à grande guerra entre a civilização e a barbárie:
GGN“Precisamos de um mundo que volte a se mover por regras (valores). Hoje em dia existem teorias muito eficazes, o ultraliberalismo, que quer transmitir a sensação de que tudo vai se resolver eliminando todas as regulações.Há a sensação de que a tecnologia irá resolver tudo. Não irá. Quem irá resolver é a política.As regulações sofreram muito. O primeiro golpe foi a subordinação a uma visão tecnológica da regulação. Nossos amigos alemães pensaram que tudo na Europa sairia bem com austeridade para todos. E os gregos pagaram muito caro.A regra da ortodoxia não é suficiente porque por trás das regras há pessoas que têm fome e problemas e não podem ser atendidas como como visão fria das regras.Outro problema é que as ideias vão se proliferando até o ponto de não serem compreendidas. É o caso dos alemães impondo políticas de austeridade de alto custo social.O povo precisa de dois, três objetivos claros para que o caminho seja bem compreendido e os avanços possam ser medidos.No combate entre regimes autoritários e democráticos, a capacidade de convencimento dos autoritários parece maior em muitos países.Daí a relevância de Lula.A vida comum democrática precisa de uma base, e a base é a ordem, e a ordem é a regra compartilhada a serviço de todos. É também necessário um objetivo. É a capacidade de colocar novamente a história em movimento, colocando a política a serviço do povo.Isso pode dar nova esperança ao Brasil. Sou muito otimista de que Brasil possa se levantar de novo com essa esperança.Vocês tiveram nos últimos anos, na missão do presidente Lula, de mudar as coisas neste país. E ele deu uma lição importante para cada um de nós. O que precisamos, como europeus e cidadãos do mundo, por isso obrigado por trabalharem por um futuro que possamos compartilhar todos, uns pelos outros, uma nova esperança compartilhada.