Nos
próximos dias a política brasileira se moverá em torno da seguinte disjuntiva:
covardia do STF ou golpe do Senado. O pano de fundo será o destino do mandado
de Aécio Neves. Não que o STF já não tenha dado sinais de covardia ao permitir
violações da Constituição, particularmente no caso do impeachment ilegal, sem
crime de responsabilidade, contra Dilma Rousseff. O Senado também já se mostrou
golpista, ao sacramentar o mesmo impeachment ilegal. Na hipótese de o STF
mostrar alguma dignidade e manter Aécio afastado de seu mandato, se o Senado
vier a sustar tal decisão, estaria perpetrando um segundo golpe, mergulhando as
instituições numa crise sem precedentes, abrindo mais uma porta para os reclamos
de uma intervenção militar.
A
suspensão do mandato de Aécio Neves vem suscitando enorme polêmica, inclusive
no âmbito dos setores democráticos e progressistas, como foi o caso da
desastrada nota da direção do PT, que criticou a decisão do STF de afastá-lo do
mandato. Tudo isto mostra o grau de confusão mental, política, moral e teórica
que vários políticos, jornalistas, analistas e juristas brasileiros estão
metidos - uns por oportunismo e interesses, outros por incompreensão da
natureza dos impasses e da crise.
A
primeira confusão está na própria Constituição, no artigo 2º, que define que os
poderes da União - Legislativo, Executivo e Judiciário - são independentes e
harmônicos entre si. Não há como entender os fundamentos de uma constituição de
um país democrático republicano presidencialista sem entender os princípios que
deram origem à Constituição norte-americana, que é a matriz dessa tipologia de
constituições. Quem estudou os Federalistas sabe que a relação entre os poderes
não é harmônica, mas conflitiva, baseada numa relação de equilíbrios, pesos e
contra-pesos, na qual, cada um dos poderes, tem meios de ataque e de defesa em
relação aos outros. A ideia da harmonia é uma ideia bastarda, tipicamente
brasileira, herdeira da ideologia da conciliação, que é uma ideologia da dominação
das elites.
Em
segundo lugar, a relação entre os poderes não é de independência absoluta,
tendo cada um, um âmbito de ingerência parcial nos outros, exercendo de forma
moderada e marginal, funções dos outros, sem descaracterizar a natureza
específica das funções de cada um. Assim, é perfeitamente legítimo que as
Supremas Cortes, no caso o STF, exerçam algum âmbito de função legislativa. Em
terceiro lugar, não há nenhuma dúvida de que em matéria constitucional, as
Supremas Cortes têm a última palavra, não cabendo nem ao Executivo e nem ao
Legislativo avocar para si qualquer função revisora de uma decisão de uma Corte
Constitucional. Além de decidir sobre conflitos constitucionais em última
instância, uma Corte Constitucional pode preencher lacunas constitucionais. Foi
isso que a Suprema Corte dos EUA fez no caso do aborto e que o STF fez no caso
do casamento homoafetivo, dentre vários ouros casos.
A
constitucionalidade da suspensão do mandato de Aécio Neves
Se
há alguém que violou a Constituição, no caso do mandato de Aécio Neves, é o
próprio Senado. Antes de tudo, é preciso observar que a imunidade parlamentar
se refere apenas a opiniões, palavras e votos, conforme define o artigo 53 da
Constituição. Na medida em que Aécio cometeu crimes comuns e feriu o decoro
parlamentar, deveria perder o mandato por uma decisão do Senado. Quando sequer
o Senado abre um procedimento na Comissão de Ética em face de atos tão
graves cometidos pelo senador, há uma evidente violação da Constituição por
parte desta Casa. Neste caso, é preciso que o Supremo exerça o controle
constitucional. Se a Constituição veda a perda do mandato por uma decisão do
STF, ela não proíbe a suspensão do mandato para salvaguardar a moralidade
pública e o espírito e a letra da Constituição em face de grave omissão do
Senado.
Ademais,
o artigo 102 da Constituição, alínea b, afirma que compete ao STF
processar e julgar, originalmente "nas infrações penais comuns, o
Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional,
seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República". Então, acabou.
A Constituição está acima do Senado e do próprio Supremo. E ela diz que cabe ao
Supremo a própria guarda da Constituição.
Em
matéria penal, não cabe ao Senado interferir, pois isto viola a Constituição.
Nenhum político e nem mesmo um ministro do Supremo pode estar isento de
punição. Isto significa que nenhum senador, nenhum deputado e nem mesmo o
presidente da República, nos casos de crimes comuns, podem ser protegidos pelo
Senado, pela Câmara dos Deputados ou pela Presidência da República para
isentar-se de responder juridicamente pelos seus crimes.
O
golpe do Senado
Se
o STF tiver coragem e dignidade, manterá a suspensão do mandato de Aécio Neves.
Caso contrário, será coberto de opróbrio, de ignomínia e de vergonha eterna
pela sua covardia e pela sua capitulação aos interesses corruptos do Senado.
Manter a suspensão do mandato de Aécio, além de ser constitucional, significa
enfrentar os marajás da corrupção incrustados no Senado. Significa confrontar
os patriarcas do atraso, os supressores de direitos sociais, os denegadores da
democracia, os sacramentadores do golpe.
Admitindo
a hipótese de que resta um lampejo de coragem e de virtude ao STF, mantendo a
suspensão do mandato de Aécio, se o Senado revisar esta decisão, será um golpe
brutal no sentido e no conceito de República e na Constituição. Significa que o
Senado se transformará em Supremo Senado da Federal, um poder usurpador e com
uma soberania equivalente à dos monarcas absolutos que não eram passíveis de
responder criminalmente e que, pela sua suposta descendência divina, eram
irresponsáveis, penal e politicamente. Se o Senado fosse um poder politicamente
soberano, com prerrogativa de revisão constitucional e decisão política em
última instância, então, o impeachment de Dilma não teria sido golpe.
Na
República Democrática não existem poderes soberanos e ilimitados. A soberania,
pertencente ao povo, se expressa na Constituição. A própria Constituição é
limitada e ela não pode ser modificada por nenhum poder constituinte de forma
absoluta, pois ela precisa expressar um Estado de Direito. Este Estado
significa que o poder deve ser limitado pelos direitos dos cidadãos e que estes
não podem ser passíveis de supressão. Se o Senado confrontar o STF significa
que ele se auto-instituirá como um poder político supremo e soberano. Este tipo
de poder tem nome: é uma ditadura, seja ela conduzida por um general, por um
ditador, por um corpo colegiado ou mesmo por um Senado.
O
que se espera dos partidos progressistas (PT, PSol, PC do B, Rede, PDT, PSB
etc.) é que não dêem um passo em falso se esta questão do mandato de Aécio vier
a ser decidida no Senado. É preciso manter uma coerência democrática,
republicana e anti-golpista. Manter Aécio Neves no Senado é uma indignidade,
uma violação da Constituição, assim como é manter Temer na presidência da
República. Nenhum cálculo político e eleitoral pode justificar qualquer
condescendência com esses dois políticos abjetos. O aventureirismo político de
Aécio foi a origem da desorganização da democracia e do próprio golpe.
Aldo
Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
GGN