A
grande vantagem da oposição é que a queda de Bolsonaro depende muito mais dele,
Bolsonaro, do que dela, oposição.
Peça 1 – impeachment,
teoria e realidade
Em
meu longo trajeto no jornalismo econômico, aprendi uma verdade comprovada: no
campo das ciências sociais (dentre as quais se inclui a política) só existe
teoria aplicada à realidade. Não existe a teoria solta no ar, como um
passarinho. Vale para a economia, a política, o direito.
Um
dos grandes dramas brasileiros que impediu, aliás, que o país deslanchasse no
período das grandes transformações globais, dos anos 90 em diante, foi a teoria
econômica se impondo sobre a realidade.
Digo
isso a respeito das discussões sobre o impeachment ou não de Bolsonaro.
Parte
dos cientistas sociais diz que um novo impeachment consolidaria a ideia do
golpismo no país. Foi o golpismo que trouxe para a política os vultos que
habitavam as profundezas do tecido social, instaurou a selvageria, a quebra
total de regras. Logo, a melhor maneira de sanar o mal é não mexer na ferida,
esperar que se cicatrize pelo voto e que, nas próximas eleições, o eleitorado
reconheça o erro e traga o país de volta à normalidade, em um fenômeno que poderia
ser denominado de fé na mão invisível da democracia.
Fernando
Collor foi vítima do golpe do impeachment. Lula foi vítima do golpe do
“mensalão”. Dilma, vítima do golpe das “pedaladas”. No dia em que ouvi o
Ministro Luis Roberto Barroso alegar que o fato de ter perdido a base
parlamentar justificava, por si, o impeachment percebi que o golpismo se
espalhara por todos os poros do Judiciário.
Agora
se volta ao dilema do impeachment e a análise exige que se traga a realidade
para a mesa: Bolsonaro é um presidente pesadamente envolvido com o crime
organizado, com os militares egressos dos porões da ditadura, que enveredaram
pelo mundo do crime. Não se trata de um detalhe, mas de uma questão central.
Vamos
detalhar um pouco o universo habitado por Bolsonaro.
Peça 2 – o exército das
profundezas
Não
se pense em velhos matadores aposentados. O grupo continua em plena atividade.
Eram militares de baixa patente que foram convocados pelo Alto Comando do
regime militar para compor forças de extermínio. Em seus livros, Elio Gaspari
conta que o próprio Ernesto Geisel avalizava suas ações.
Foram
para a linha de frente, com a ordem de exterminar os inimigos.
Quando
veio a redemocratização, parte deles foi recompensada pelos serviços prestados
e para garantir seu silêncio. Foi o caso do Major Curió, que recebeu áreas de
garimpo em Serra Pelada. Parte se perdeu pelos desvãos da vida, levando para
sempre os traumas provocados pela selvageria da repressão.
Procuradores
envolvidos com a justiça de transição aprenderam que, no final da vida, muitos
torturadores sentem necessidade de falar. Vamos a três casos que mostram a
maneira como a “tigrada” ainda atua.
Caso Paulo Manhães
Paulo
Manhães foi na Comissão Nacional da Verdade (CNV) e deu depoimentos importantes
que ajudaram a esclarecer algumas das mortes da ditadura. Logo depois, foi
assassinado. No dia seguinte ao do anúncio da sua morte, o Ministério Público
Federal do Rio de Janeiro pediu busca e apreensão em sua casa. Chegaram até um
diário que ajudou a desvendar o atentado do Rio Centro, comprovando que o carro
utilizado no atentado era de um dos militares dos porões.
O
assassinato de Manhães, não foi interpretado como queima de arquivo – pois já
tinha denunciado o que sabia -, mas como aviso.
Caso Cláudio Guerra
Cláudio
Guerra virou pastor, se converteu à Igreja Evangélica e começou a falar. Pouco
depois da morte de Manhães, divulgou a informação de que os mortos na Casa da
Morte, em Petrópolis, foram queimados nas usinas de açúcar de Campos. A
Comissão Nacional da Verdade foi até lá e nada encontrou.
Deu
depoimentos, foi protagonista do filme “O Pastor que Assassinava e Queimava
Corpos”. Não se sabe se era uma verdade que vinha a conta gotas ou se era contra
informação.
Logo
depois, sua mulher foi assassinada, assim como o filho. E os homicídios foram
atribuídos a ele. Por ter mais de 70 anos e estar doente, conseguiu transformar
a pena em prisão domiciliar. Foi punido, mas não pelos crimes da ditadura.
Provavelmente, foi vítima de uma armação.
Caso Chico Dólar
Chico
Dólar escreveu livro Macaba, nome de uma serra do Araguaia. Contava histórias
macabras, como a exigência dos oficiais de que a morte dos guerrilheiros fosse
comprovada com a entrega das suas cabeças e dedos – para reconhecimento pelas
impressões digitais e não identificação dos corpos. Depois, alguns dos
“tigrões” faziam colar com os dedos decepados dos guerrilheiros mortos.
No
livro, ele cita mais de 200 colegas que participaram desse movimento e, hoje em
dia, querem anistia. Chico acreditava piamente que fez um trabalho relevante
para a República e, assim como os colegas, ficou com distúrbios emocionais pelo
resto da vida.
Logo
depois apareceu morto. A alegação foi de suicídio, em um caso raríssimo de
suicida com tiro na testa.
Os
três casos comprovam que as forças dos porões estão vivas, ativas. Parte delas
migrou para as milícias, assim como os delegados que se tornaram bicheiros nos
anos 70. É nesse ecossistema que se deu a formação de de Jair Bolsonaro. Portanto,
está corretíssimo Janio de Freitas ao ver a ligação permanente de Bolsonaro com
a morte.
Peça 3 – o caso Marielle
Franco e Bolsonaro
Já
publicamos diversos artigos mostrando o envolvimento dos Bolsonaro com as
milícias, especialmente aquelas ligadas à morte da vereadora Marielle Franco.
Há
uma hipótese de investigação que sugere envolvimento direto de Bolsonaro, a
partir das seguintes evidências:
Quando
começou a abertura política, a “tigrada” planejou o atentado do Riocentro
dentro de uma lógica de disfarce: a idéia seria atribuir o atentado à esquerda.
Bolsonaro
se mostrou vivamente contrário à intervenção militar no Rio de Janeiro.
Provavelmente por atrapalhar as ligações históricas das milícias com as forças
policiais.
Ronie
Lessa, o assassino de Marielle, pesquisou pelo Google nomes de vários
vereadores que se colocaram contra a intervenção. Marielle era o nome em mais
evidência, por ter sido indicada para presidir uma comissão incumbida de
fiscalizar a intervenção. Há elementos para uma tática diversionista, de
atribuir o atentado aos defensores da intervenção militar.
O
principal acusado, além de comerciante de armas era vizinho de condomínio do
próprio Bolsonaro. O motorista que o levou era ligado a Flávio Bolsonaro. Outro
integrante do Escritório do Crime – grupo de matadores profissionais das
milícias – , capitão Adriano Magalhães, teve mãe e esposa empregadas por Flávio
Bolsonaro.
Peça 4 – Bolsonaro e o
golpe
Há
inúmeras manifestações dos Bolsonaro, pai e filhos, sobre a importância de
armar a população para resistir ao Estado. A liberação das armas foi um
movimento nítido de fortalecimento da economia das milícias – que têm no
tráfico de armas seu principal negócio – e de armar grupos aliados para uma
futura resistência a qualquer tentativa de impeachment.
Abordamos
várias vezes essa possibilidade.
Peça 5 – Cenários:
Bolsonaro ou Mourão
Não
se tenha dúvidas sobre os propósitos democrático do vice-presidente, general
Hamilton Mourão: decididamente, ele não é um defensor da democracia como
sistema de governo. Ele é da linha do general Augusto Heleno. Este é
intelectualmente medíocre, assustadoramente medíocre, diria. Mourão, não.
Não
são pequenos os riscos de um futuro governo Mourão. Ele avançaria, com
estratégia, empunhando quase todas as bandeiras defendidas por Bolsonaro.
Há
poucas evidências de que tenha um projeto de nação na cabeça, que trabalhe o
conceito de interesse nacional, que impeça os negócios que estão sendo montados
pelos negocistas que aproveitaram a onda Bolsonaro.
Mas
impediria o desmonte total perpetrado pelo hospício que Bolsonaro levou ao
governo, dos quais os principais são o desmonte da Eletrobrás e da Petrobras,
da diplomacia, do sistema de meio ambiente, da Anvisa, da educação.
Principalmente, barraria o controle do país pelas milícias.
Trata-se de uma autêntica
“escolha de Sofia”:
Cenário 1 –
a manutenção de Bolsonaro, que prosseguiria em sua política de terra arrasada
até o final do governo, tentando armar suas milícias particulares e tentar o
auto-golpe. A esperança da oposição é que, ao final dos quatro anos, o governo
estaria tão desmoralizado que abriria espaço para o grande pacto nacional em
torno de eleições livres e diretas. Não há condições de avaliar o tamanho do
estrago produzido até lá. Os hunos de Bolsonaro destroem e salgam a terra.
Cenário 2 –
impeachment e governo com Hamilton Mourão. Haveria racionalidade e lógica na
estratégia implementada. No final do governo, o país estaria menos destruído,
mas também seriam reduzidas as possibilidades do sistema de abrir espaço para
eleições livre.
Cenário 3 –
queda do governo e novo governo mediado pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia.
Aí, se trata do imponderável. Antes de apostar no fator Mourão, dificilmente o
sistema aceitaria a hipótese Rodrigo Maia.
Confesso
minha total incapacidade para apontar o melhor caminho. Não tenho a menor
pretensão a demiurgo.
A
saída se dará por pequenos solavancos, pequenas aproximações entre o lado
civilizado da Nação, até que haja massa crítica para, em algum momento do
futuro, se chegar ao grande pacto civilizatório nacional.
Quanto
tempo levará? Sou um mero jogador de xadrez, não uma pitonisa. Limito-me a
olhar as nuvens e tentar prever sua próxima formação. Sem me descuidar do fato
de que o chefe da polícia, Sérgio Moro, e a chefe dos procuradores, Raquel
Dodge, são os principais avalistas do chefe das milícias na Presidência.
A
grande vantagem da oposição é que a queda de Bolsonaro depende muito mais dele,
Bolsonaro, do que dela, oposição.
Do
GGN