Há quem
pense que a carência de tudo era a causa “determinante”, para usar uma palavra
das discussões da época, a causa fundamental para o que amávamos então. Assim
como a economia determinava a história, a política, a sociedade, enfim, todo o
universo material e espiritual, porque assim nos teria ensinado Marx – e sempre
conforme o jargão simplificador das nossas encarniçadas discussões -, assim
também a nossa carência de afeto seria a essência do que amávamos. Quando
ouvíamos Tenderly com Ella Fitzgerald, ou os agudos do pistom de Louis
Armstrong, quando ali nos encantávamos com a música, que nos deixava como almas
penadas de carinho a flutuar, isso devia ser consequência do determinante, o
coração que era só fome. Escapava de nós, digamos, a dialética do subjetivo e
do objeto, para usar uma categoria mais filosófica. Mas não. Penso que o
surgimento de Eva estava além dos argumentos da simplificação e do sofisticado.
Stars fell on Alabama, penso, cantava na surdina. Desde a primeira noite,
quando não foi possível tê-la plena, naquela agonia em pé, encostado à parede
de tabique. Amor apressado, veloz, porque lá fora me esperava para ter uma
dormida Olavo Carijó. Maldito. Por que sempre haverá um dever na hora da mais
sublime felicidade? É como uma punição, um freio ou uma interdição dos poderes
ocultos do sagrado evangelho, de Deus, não se poder abandonar ao prazer, ao
amor livre e liberado. É como se não pudesse haver um justo e honrado momento
em nossas vidas para um Summertime. Numa manhã, acordar cantando e abrir as
asas, voar pelo céu, mas até essa manhã não há nada que possa nos ferir, será?
Ainda assim, naqueles minutos concedidos pela carência, guardo a sua delicadeza
e graça ao tocar a porta do quarto onde eu ainda estava sozinho. Tocou a porta,
que cedeu. Não julgava que ela viesse, não acreditava que o convite feito numa
voz cheia da coragem dos bêbados, falada entredentes na pia do corredor, “deixo
a porta encostada”, numa ousadia que não sei onde fui buscar, mas sei, foi a
ousadia da necessidade, eu duvidava que ela aceitasse o convite feito sem as
flores da corte cavalheiresca. Gutural, com a falta de educação dos brutos:
“deixo a porta encostada”. Apesar disso, ela acedeu, acendeu e ascendeu para
mim.
Quando a
porta se abriu, Eva apareceu com a camisola rósea. Uma camisola rósea, eu vi,
que me pareceu ter o melhor gosto da noite, e nela estava a mulher de rosto
redondo, suave, cabelos claros, e um sorriso entre quem se desculpa e se doa.
Se eu fosse um homem livre, teria coberto o seu rosto e pescoço com uma
torrente de beijos, como primeira bem-vinda. Na segunda, num espaço de minutos,
teria descido para os seios, para o ventre, para o seu sexo úmido, que me
prendia na mais feroz indecisão. Devia ir à sua boca de lábios superiores, no
alto, ou saudá-la nos superiores da vulva? Se eu não fosse o escolhido para
abrigar um companheiro perseguido, se eu fosse apenas um jovem livre e solto no
mundo, sem referências, como um astronauta longe da Terra, no espaço das
trevas, eu levaria a estrela para a minha cama, o ninho sobre o capim, e lá
seríamos o melhor encontro de um jovem sozinho com o carinho da fêmea surgido.
É ocioso,
além de triste, falar do que poderia ter sido ou feito na primeira noite. Chega
a ser mórbido, de sabor meio amargo, falar das possibilidades que não se
cumpriram. Então me dirijo ao próprio instante que foi e se foi, apesar do
compromisso abaixo da escada, lá fora. Abstraio num esforço os impedimentos que
pesavam sobre aqueles minutos. Tento abstrair, porque nos abraçamos em pé, nos
abrasamos sem um instante de descanso, penetrei-a enquanto era penetrado pelo
calor dos seios, da sua face, das suas coxas, que se levantavam para mim num
esforço de operação acrobática. Aquela cena escandalosa do cinema em que um
casal urra e resfolega alto, como se o amor precisasse de sonoplastia, não se
deu. Houve uma devoração em silêncio. Com gestos sufocados, ou espasmos de
pernas sem voz, numa compreensão mútua de que o instante único fosse o mais
íntimo segredo. Naqueles minutos em pé, sentidos numa eternidade do tempo do
incêndio, penso que tivemos a intuição de que a experiência era irrepetível.
Penso também que o reflexo do raio, da luz de flash que ilumina o artilheiro no
futebol na pequena área, e que ele não perde, nos tomou naquela noite. Diferente
de quando tantas vezes somos acometidos por reflexos falhos, retardados, que
para serem reflexos, por se deterem no exame do visto, perdem a sua
oportunidade. Do gênero da moça que nos envia de repente um beijo antes de
fechar o portão da sua casa, e de tanta surpresa, ao tentarmos responder já
será tarde, porque ela fugiu, arrependida do impulso generoso. Assim como
tantos carinhos súbitos, entrevistos na forma de bens repentinos, que nos
alcançam, mas atentos à conveniência, aos reparos dos burros e malditos
costumes, deles não tomamos posse. De tão fugazes, nem os detemos, porque não
realizamos o breve na ocasião da brevidade, como um poema que não foi possível
porque seria uma haicai, ali não. Aquela primeira noite com Eva, ao contrário
de toda experiência, possuiu a felicidade, em sonho, do que nunca mais seria
repetido. Creio ter ficado com cabelos seus em meu corpo e na boca. É claro,
disso não tenho a consciência. No máximo, a intuição. No mínimo, a obediência à
necessidade. E aqui a memória se confunde com outros encontros em seu caminho.
Teriam sido os cabelos de Eva que perduraram em outras mulheres, como uma pista
que nos acompanha, ou terão sido os seus que resistem na lembrança?
O fato é que
mais sobrevive e marca a gente o abrasar, os beijos, o seu rosto e cabelos, os
seus lábios, o pescoço, os seios, a camisola que era só a cortina bela,
transparente do palco. Aquela cor rosa, na luz frágil da lâmpada incandescente
que deveria ser de 40 watts, dá a cor do ambiente do quarto, como se as paredes
se cobrissem por ela. Eva, a sua camisola, em pé, com os olhos que choravam,
descia para a melhor posição do coito. Naquela hora, não havia ainda a
intimidade para que ela pegasse o meu sexo e melhor o dirigisse para dentro de
si. Era como se ela o evitasse, santa entre as santas da delicadeza, ainda que
o buscasse para melhor acomodação no seu íntimo. As suas bochechas eram um
quadro ainda não pintado da madona. E se a memória filtra para o seu rosto,
seios e pescoço, como se fosse anfíbia, sereia, é porque seleciona o mais
agradável, que não era no instante o mais buscado, o fogo do vai e vem da
penetração. Por quê? Atento à hora do
ponto com o companheiro lá embaixo, mas sem perder o momento tão raro, não
houve a felicidade do que seria e deveria ser o clímax. O clímax foi antes, em
mais de um sentido. Nos momentos que antecederam o chamado gozo seminal é que
se deteve a felicidade. Depois, porque depois seria o cumprimento do dever, e
se não o cumprisse não seria um homem, fugiu a alegria. Para ser homem no
sentido moral, deixei de ser um, no sentido restrito de macho.
No entanto,
o desastre que me dirigiu para o ponto com Olavo Carijó não destruiu a relação
com Eva. Tanto no significado dos dias que se seguiram na pensão, quanto no da
recordação. Aquilo foi bom, aquela primeira noite foi maravilhosa, eu a teria
repetido, se pudesse, mesmo com o cumprimento do dever lá fora. Houve um
encanto, um prazer que não cessa, que tem crescido porque ali houve uma ação
que jamais seria repetida, ou seja, o encontro da necessidade com o seu
impedimento. O limite, no limite do tempo mais precioso em que o jogador
lampeja o gol e não o perde. O flash repentino em que se vislumbra o amor. E
dele nos penetramos, numa ação rara de força e ousadia. Como negá-lo pela
frustração do seu clímax? O ponto mais alto foi antes, como uma vida invertida
em que o gozo da maturidade foi o choro do bebê. E por obediência ao gênero do
que houve, fecho o capítulo antes do seu fim.
*Do romance
“A mais longa duração da juventude”. Link , AQUI.
Do GGN/ Vermelho