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Dias/Agência Brasil
Do
Justificando: Não
existe o princípio “in dubio pro societate” na ordem jurídica, apontam juristas
“In dubio
pro societate”. Com esse jargão em latim, tribunais de todo o país negam
recursos de defesa e se recusam a refutar acusações frágeis e absolver réus,
muitas vezes produzindo condenações injustas, acusações sem base e prisões em
massa no curso do processo. Em suma, pela lógica jurídica dos corredores
forenses, afirmar esse “princípio” seria dizer que havendo dúvida de autoria ou
de materialidade sobre inocência ou condenação do acusado ou da acusada em
algum crime, ela deverá pender “em favor da sociedade”, como se ela
estivesse interessada em processar pessoas com provas frágeis.
Curiosamente,
como explica o Juiz de Direito em São Paulo e Professor na Universidade
Presbiteriana Mackenzie Guilherme Madeira Dezem, o in dubio pro
societate é uma afirmação dos tribunais brasileiros, mas que não encontra
respaldo na doutrina – isto é, livros teóricos de direito respeitados
academicamente – brasileira ou internacional, as quais reafirmam o in
dubio pro reo (na dúvida, absolve-se o réu) – “Autores como Mauricio
Zanoide de Moraes negam a existência deste princípio in dubio pro societate,
sustentando ser o in dubio pro reo a regra até mesmo em casos envolvendo
revisão criminal”.
De outro
lado, explica Madeira, “a jurisprudência [expressão utilizada para
denominar um conjunto de decisões judicias em um mesmo sentido] entende que há
casos que se admite o in dubio pro societate como é o caso do recebimento da
denúncia. (RHC 74510/MS rel Min Ribeiro Dantas j. 20.04.17)”.
O Professor
na Universidade Federal do Rio Grande (FURG) Salah H. Khaled Jr. explica
onde é possível encontrar a afirmação teórica desse famoso “princípio” jurídico
dos tribunais brasileiros – “na doutrina arcaica, é possível encontrar
sim. Na jurisprudência punitivista, também. Não terá tanta sorte se procurá-lo
na Constituição ou em autores comprometidos com processo penal do cidadão. É
típico de concepção fascista de processo penal do inimigo”.
A lógica do
processo penal do inimigo significa dizer que a sociedade tem interesse em
processar e condenar alguém com provas frágeis, que suscitem dúvidas. Em
especial no Brasil esse desejo tem um contexto bem delimitado pela clientela
preferida do Direito Penal – jovens, negros e pobres. Como explica o Promotor de Justiça do Ministério Público de
São Paulo, Gustavo Roberto Costa – “Não se pode dizer que é do
interesse da sociedade que alguém seja processado criminalmente sem base
concreta. A não ser que seja aquela sociedade que sabe que citado princípio
jamais a atingirá, pois feito somente para os outros – e nós sabemos bem quem”.
Inclusive,
pela falta de pressupostos lógicos, parte da jurisprudência nega a existência
desse princípio, como, por exemplo, a ministra do Superior Tribunal de
Justiça Maria Thereza Assis Moura, que notabilizou em decisão a seguinte
passagem: “A acusação, no seio do Estado Democrático de Direito, deve ser
edificada em bases sólidas, corporificando a justa causa, sendo abominável a
concepção de um chamado princípio in dubio pro societate” [STJ, HC
175.639, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., J. 20/03/2012].
Para
discorrer mais profundamente sobre o tema, o Justificando convidou
dois juristas de renome internacional para falarem sobre o tema. Veja as
respostas:
Pergunta:
Existe no ordenamento jurídico brasileiro o princípio “In dubio pro societate”?
Juarez
Tavares, Professor Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro e na Universidade de Frankfurt am Main, na Alemanha:
Não existe
esse princípio na ordem jurídica. O princípio ‘in dúbio pro reo’ é uma
consequência do principio da presunção de inocência, que deixou de ser um
principio procedimental para se constituir numa pilastra do Estado de direito
democrático. Nesse estado, o que se pretende é justamente limitar o poder de
punir e não ampliar suas bases. Afirmar-se o ‘in dúbio pro societate’ é
regressar ao estado despótico. Quando a Constituição do Brasil instituiu a
proteção da dignidade humana como fundamento do Estado democrático já
estabeleceu, nas relações jurídicas, o primado do sujeito sobre a sociedade.
Essa opção do direito positivo não encampa outra interpretação. Mesmo ao dizer
que compete ao Estado zelar pela segurança pública, tal programa
político-jurídico tem como pressuposto a proteção da pessoa individual. A
chamada proteção do estado e da sociedade é, na verdade, uma extensão da
proteção do sujeito. Nesse sentido, na dúvida, a opção deve ser pela pessoa e
não pelo estado ou pela sociedade.
Geraldo
Prado, Professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Em teoria o direito processual penal brasileiro não reconhece o in
dubio pro societate como critério de resolução da incerteza. O critério
vigente, que decorre da presunção de inocência, é o in dubio pro reo.
Convém ressaltar que cada etapa do processo tem seu específico âmbito de
conhecimento. Assim, no início do processo, por exemplo, a dúvida somente se
refere à existência de indícios de autoria e materialidade. Se há dúvida quanto
a existência desses indícios, a acusação deve ser rejeitada.
O caso é
outro se na mesma etapa a dúvida versa sobre a inocência ou culpa do acusado,
reconhecendo-se a existência de indícios. Se os indícios estão presentes, estar
em dúvida sobre culpa ou inocência é algo que não se coloca na etapa inicial,
cabendo acolher a denúncia para que as provas aí sim sejam produzidas. Isso
nada tem a ver com o ‘in dubio pro societate’, também denominado ‘in dubio
contra reum’, resquício de modelos autoritários de processo penal. Não é raro
os tribunais confundirem a cognição sumária inicial com situações de ‘in dubio
pro societate’ e acertarem no resultado, errando porém quanto ao
fundamento.
Do GGN