Segundo o historiador francês e uma das mais respeitadas
autoridades em Idade Média Jacques Le Goff o feudalismo é: “um sistema de
organização econômica, social e política baseado nos vínculos de homem a homem,
no qual uma classe de guerreiros especializados – os senhores –, subordinados
uns aos outros por uma hierarquia de vínculos de dependência, domina e explora
uma massa campesina”.
É de conhecimento mundial que parte do judiciário brasileiro
vive e se comporta como verdadeiros senhores feudais em pleno século XXI. As
causas desse descalabro são as mais variadas. Vai desde a formação
historicamente elitista, a ações autoritárias em suas regiões administrativas
ou alianças entre pares para assegurar regalias e privilégios. Além disso,
podemos destacar com certo grau de certeza, a participação direta de setores e
pessoas da magistratura nacional em rupturas políticas ao longo dos últimos cem
anos, pelo menos.
A construção desse “feudalismo à brasileira”, para muitos
especialistas em direito no país, vem de longa data. Esse comportamento ilegal
e antiético medonho parece fazer parte das entranhas da justiça quase como um
todo. São raras as exceções e, quando aparecem têm a cabeça cortada ou por seus
próprios pares ou até mesmo, por órgãos importantes que deveriam existir não
proteger a cada um tão somente, mas, proteger a justiça, o direito e o cidadão,
como por exemplo, o CNJ.
No último século, desde o advento da República, por sinal
criada de um golpe civil-militar, parte significativa do judiciário tupiniquim
participou ativamente da vida pública não apenas como juízes ou magistrados em
suas funções de operadores do direito e da justiça, mas, como opositores ou
apoiadores de causas políticas que, normalmente, impactaram na vida de todo o
país.
O “Manifesto Republicano” de 1870 que foi publicado no jornal
da época “A República” trazia entre outros signatários, advogados defensores da
causa. Esse é um exemplo que poderia ser destacado como rara participação
positiva na histórica da elitista carreira de advogado da maioria dos
operadores do direito desse país.
No entanto, o curso de direito nunca foi voltado ou teve a
verdadeira preocupação em formar pessoas de origem popular. Era assim no início
do século passado é assim, por incrível que possa parecer, ainda hoje. Os
poucos do povo que adentram as universidades para cursar direito entram em
faculdades particulares que, em sua grande maioria, possuem cursos para formar
advogados da classe média com o objetivo de aprovação em concurso público.
Instituições que deixam muito a desejar na formação humanística, social,
política e de direitos humanos de seus egressos. Como consequência, a maioria
dos profissionais formados e aprovados em concursos da magistratura, são
naturalmente, conservadores.
Outra explicação possível para a baixa qualidade dos cursos,
não apenas na área do direito, mas em praticamente, todas as áreas da
graduação, pode ser o espetacular crescimento da oferta de cursos superiores em
instituições particulares por todo o país na última década e, consequentemente,
a deficiência na fiscalização permitindo que instituições e cursos surjam sem o
devido processo de construção tanto do curso em si como também da escolha de
professores e a preocupação em ofertar uma grade curricular apropriada à
realidade social e histórica do país.
É sabido que o curso de direito no Brasil, desde as escolas
mais famosas como a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco
criada no início do século XIX ou a Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco em São Paulo do início do XX entre outras instituições importantes,
historicamente, receberam e formaram os filhos homens das elites brasileiras,
não que essas faculdades não tenham formado alguns poucos bons nomes, mas, em
sua maioria, parece não restar dúvida, logrou em oferecer ao mercado
“competentes” profissionais com pensamento liberal e, profundamente elitistas.
A participação direta de órgãos importantes como a OAB, o STF
nos golpes de 1964 no de 2016 e o comportamento arrogante e autoritário de
parte dos juízes no trato com pessoas do povo que, por sinal, os vê como
verdadeiros deuses em suas circunscrições judiciárias (verdadeiros feudos)
atesta para quem quiser ver, o profundo distanciamento de parte da justiça dos
verdadeiros interesses da sociedade, do povo e da nacionalidade brasileira.
Como não bastasse a participação ilegal, oportunista e
canalha de parte significativa do judiciário nos movimentos políticos
importantes, esta semana o país conheceu mais uma faceta, no mínimo imoral, dos
respeitáveis senhores e senhoras que deveriam dar o exemplo. Juízes, e não são
poucos, entre eles os “moralistas” Sr. Moro e seu fiel seguidor Bretas, foram
pegos recebendo auxílio moradia de R$ 20 mil sendo que ambos possuem imóvel
próprio na cidade que trabalham.
Tem mais, segundo notícias veiculadas em blogs progressistas,
apenas no estado de São Paulo cerca de 500 juízes entraram recentemente com
pedido do mesmo auxílio moradia. Quantos desses têm legalmente direito?
Nesse sentido, podemos destacar aqui a crítica infundada da
classe rica e parte da classe média ao Programa Bolsa Família que atende (ou
atendia) mais de 13 milhões de famílias, beneficiando cerca de 50 milhões de
pessoas, entre elas, a maioria crianças, com um orçamento anual que representa
menos de 0,5% do PIB. Quanto custa aos cofres públicos essa regalia dos juízes?
Segundo o site 247 o benefício poderá atingir R$ 1 bilhão/ano para atender um
grupo de menos 1.800 famílias do judiciário brasileiro.
Le Goff, o historiador francês, escreveu sobre a Idade Média
um tempo onde não se debatia a lei escrita, pelo menos na maior parte das
regiões da Europa Ocidental. O que existia era a lei do mais poderoso, a lei
que saia da boca do senhor que controlava e explorava o povo, que tinha o
acesso à palavra e a imposição da espada ou da fé cristã. Era um tempo de
infortúnios, sofrimento e perseguições de toda ordem. A oposição aos senhores
feudais tinha apenas a sua voz contra todo um aparato de leis não escritas
(talvez com exceção da Inglaterra que possuía alguns pontos escritos de uma
legislação dos senhores para os senhores), toda a região vivia e morria sob a
vontade do rei e seus vassalos.
No entanto, os tempos mudaram, os movimentos de construção do
Estado Moderno acompanharam toda uma evolução do direito e da justiça. O
Iluminismo, a Revolução Francesa, apesar de um movimento burguês, trouxe para o
cenário das relações humanas novas e interessantes construções para o debate
sobre leis e direitos dos cidadãos e cidadãs.
Nesse sentido, o Brasil não pode aceitar de forma nenhuma que
pessoas, operadoras da lei e da justiça, possam acessar de forma ilegal e
imoral, certas regalias e privilégios enquanto outras pessoas, grupos de
profissionais e a sociedade pobre não tenham os mesmos direitos e padeçam à
mingua como é o caso do povo mais pobre que é, muitas vezes, alijado de todo e
qualquer acesso aos mínimos direitos de cidadania.
A lei e a justiça têm que ser concretamente para todos e
todas. Como afirmou recentemente a professora Beatriz Vargas da UnB: “O
‘ninguém está acima da lei’ é assumir que ninguém esteja à margem da lei”.
Nenhum juiz verdadeiramente voltado para a justiça pode agir fora da lei. E,
definitivamente não é exatamente isso o que vem acontecendo. As ações ilegais
de algumas autoridades do judiciário demonstram que agem certos de quem tem a
guilhotina nas mãos, certos de que tomaram para si o direito de inovar o
direito com o intuito de perseguir seus opositores ideológicos e políticos.
Senhores e senhoras que agem como Suseranos e Vassalos, numa
aliança que faz corar de vergonha àqueles e aquelas que operam o direito com
honestidade, seriedade profissional e zelo pelos interesses do país e do seu
povo.
José Gilbert Arruda Martins - Graduado em História pela
Universidade Estadual do Ceará (1988), Mestre em Ciência Política pelo
Unieuro-DF (2017).
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