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Ferreira/STF
I – Introdução
Em 1950,
foram publicadas as conclusões da pesquisa conduzida por Theodor W. Adorno e
outros pesquisadores, realizada nos Estados Unidos da América, logo após o fim
da 2ª Guerra Mundial e a derrota dos fascistas, com o objetivo de
verificar a presença naquele país de tendências antidemocráticas, mais
precisamente de indivíduos potencialmente fascistas e vulneráveis à propaganda
antidemocrática. Os dados produzidos na pesquisa, tanto quantitativos quanto
qualitativos, não deixaram dúvida: a potencialidade antidemocrática da
sociedade norte-americana já era um risco presente naquela oportunidade.
Neste breve
texto, prévio à elaboração de pesquisa mais profunda sobre a tradição
autoritária dos atores jurídicos, a ser conduzida pelo Núcleo de Pesquisa da
Passagens – Escola de Filosofia, buscar-se-á, a partir dos caracteres da
personalidade autoritária identificados por Adorno, demonstrar que eventual
potencialidade fascista de juízes brasileiros é um risco à democracia no
Brasil, em especial porque o Poder Judiciário deveria funcionar como
guardião dos direitos e garantias fundamentais, isto é, como limite ao
arbítrio em nome da democracia e não como fator antidemocrático.
A
investigação segue a hipótese formulada por Adorno: que as convicções
políticas, econômicas e sociais de um indivíduo formam com frequência um padrão
amplo e coerente, o que alguns chamam de “mentalidade” ou “espírito”, e que
esse padrão é expressão de profundas tendências de sua personalidade. No caso
dos juízes brasileiros, a aposta era de que seria possível falar em uma
tradição ou uma mentalidade antidemocrática, que vislumbra o conteúdo material
da democracia, os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, como um
obstáculo a ser afastado em nome da eficiência do Estado.
Para
identificar o espírito ou a mentalidade antidemocrática, para os fins deste
pequeno artigo, a proposta é de que o leitor compare artigos, entrevistas e
decisões judiciais com sintomas e características identificadas por Adorno em
1950 como tendencialmente antidemocráticos.
II – Dos sintomas antidemocráticos
Em Estudos
sobre a personalidade autoritária, Adorno identifica uma série de
características que revelam uma disposição geral ao uso da força em detrimento
do conhecimento e à violação dos valores historicamente relacionados à
democracia. Na lista de Adorno estão, dentre outros:
01. Convencionalismo: aderência
rígida aos valores da classe média, mesmo que em desconformidade com os
direitos e garantias fundamentais escritos na Constituição da República. Assim,
por exemplo, se é possível encontrar na sociedade brasileira, notadamente na
classe média, apoio ao linchamento de supostos infratores ou à violência
policial, o juiz autoritário tenderia a julgar de acordo com opinião média e
naturalizar esses fenômenos. No Brasil, a sociedade foi lançada em uma tradição
autoritária e acostumou-se, em especial após o Estado Novo de Vargas e a
ditadura civil-militar instaurada em 1964, com o uso da violência em resposta
aos mais variados problemas sociais. Atos como linchamentos e arbítrios
policiais tornaram-se objeto de aplausos e até de incentivo de parcela dos
meios de comunicação de massa, e passam a integrar o repertório de ações
aceitas pela classe média e, consequentemente, por juízes tendencialmente
antidemocráticos. Ao aderirem a esses valores da classe média autoritária,
esses juízes abandonariam a natureza contramajoritária da função jurisdicional,
que exigiria o respeito aos direitos e garantias fundamentais, mesmo contra a
vontade de maiorias de ocasião, para atuar de maneira populista e julgar de
acordo com a opinião média;
02. Submissão
autoritária: atitude submissa e acrítica diante de autoridades idealizadas
no próprio grupo. O juiz autoritário tenderia a ser submisso com
desembargadores e ministros, em relação aos quais se considera inferior e a
quem atribui uma autoridade moral idealizada. Essa submissão acrítica faria com
que o juiz autoritário aplauda medidas administrativas tomadas por seus
“superiores”, mesmo que contrárias às prerrogativas da magistratura, e
reproduza acriticamente as decisões dos tribunais, desde que o prolator da
decisão seja tido como do mesmo “grupo moral” a que considera pertencer. Assim,
repudiaria decisões que ampliem os espaços de liberdade e incorporaria em seu
repertório jurisprudencial as decisões que, mesmo contra o texto expresso da
Constituição, afastam direitos e garantias fundamentais;
03. Agressão
autoritária: tendência a ser intolerante, estar alerta, condenar, repudiar
e castigar as pessoas que violam os valores “convencionais”. O juiz
antidemocrático, da mesma forma que seria submisso com as pessoas a que
considera “superiores” (componente masoquista da personalidade autoritária),
seria agressivo com aquelas que etiqueta de inferiores ou diferentes
(componente sádico). Como esse tipo de juiz se revela incapaz de fazer qualquer
crítica consistente dos valores convencionais, tenderia a repudiar e castigar
severamente quem os viola, por ser incapaz de entender a razão pela qual esse
valor foi questionado. De igual sorte, não se pode descartar a hipótese de que
a vida que esse juiz considera adequada, inclusive para si, é muito limitada, o
que faz com que as pulsões sexuais e agressivas sejam reprimidas de tal forma
que retornam na forma de violência contra todos aqueles que, por suas posturas,
incitam sua ansiedade e o seu próprio medo de castigo. A grosso modo, pode-se
supor que o juiz autoritário, convencido que alguém deve ser punido por exteriorizar
posições que ele considera insuportáveis, expressa em sua conduta profissional,
ainda que inconscientemente, seus impulsos agressivos mais profundos, enquanto
tenta reforçar a crença de si como um ser absolutamente moral. Como é incapaz
de atacar as autoridades do próprio grupo, e em razão de sua confusão
intelectual é incapaz de identificar as causas tanto de sua frustração quanto a
complexidade dos casos postos à sua apreciação, o juiz autoritário teria que, a
partir de algo que poderia ser chamado de uma necessidade interna, escolher um
“bode expiatório”, em regra dirigir sua agressão contra grupos minoritários ou
aqueles que considera traidores do seu grupo;
04. Anti-intracepção: oposição
à mentalidade subjetiva, imaginativa e sensível. O juiz autoritário tenderia a
ser impaciente e ter uma atitude em oposição ao subjetivo e ao sensível,
insistindo com metáforas e preocupações bélicas e desprezando análises que
busquem a compreensão das motivações e demais dados subjetivos do caso. Por
vezes, a anti-intracepção se manifesta pela explicitação da recusa a qualquer
compaixão ou empatia. Segundo a hipótese de Adorno, o indivíduo
anti-intraceptivo tem medo de pensar em fenômenos humanos e de ceder aos
sentimentos, porque poderia acabar por “pensar os pensamentos equivocados” ou
não controlar os seus sentimentos;
05. Simplificação
da realidade e pensamento estereotipado: tendência a recorrer a
explicações primitivas, hipersimplistas de eventos humanos, o que faz com que
sejam interditadas as pesquisas, ideias e observações necessárias para um
enfoque e uma compreensão necessária dos fenômenos. Correlata a essa “simplificação”
da realidade, há a disposição a pensar mediante categorias rígidas. O juiz
autoritário tenderia a recorrer ao pensamento estereotipado, fundado com
frequência em preconceitos aceitos como premissas, que faz com que não tenha a
necessidade de se esforçar para compreender a realidade em toda a sua
complexidade;
06. Poder e
“dureza”: preocupação em reforçar a dimensão domínio-submissão somada à
identificação com figuras de poder (“o poder sou Eu”). A personalidade
autoritária afirma desproporcionalmente os valores “força” e “dureza”, razão
pela qual opta sempre por respostas de força em detrimento de respostas
baseadas na compreensão dos fenômenos e no conhecimento. Essa ênfase na força e
na dureza leva ao anti-intelectualismo e à negação de análises minimamente
sofisticadas. Não é possível descartar a hipótese de que o juiz antidemocrático
reafirma posições duras (“lei e ordem”) como reflexo tanto de sua própria
debilidade quanto da natureza da função que ele é chamado a exercer. O juiz
autoritário veria tudo em termos de categorias como “forte-débil”,
“dominante-dominado”, “herói-vilão”, etc.
07. Destrutividade
e cinismo: hostilidade generalizada somada à desconsideração dos valores
atrelados à ideia de dignidade humana. Há um desprezo à humanidade de tal modo
que o juiz antidemocrático exerce uma agressão racionalizada. Ou seja, o juiz
antidemocrático buscaria justificações para agressões, em especial quando
acreditasse que a agressão seria aceita pelo grupo do qual participa. Em meio a
juízes que aceitam agressões à pessoa, o juiz autoritário busca justificativas,
ainda que contrárias à normatividade constitucional que o permitam agredir;
08. Projetividade: disposição
para crer que no mundo existem ameaças e ocorrem coisas selvagens e perigosas.
O juiz antidemocrático acredita que o mundo está sempre em perigo e que sua
função, ainda que insuficiente, torna o mundo menos selvagem. Em suas ações,
contudo, vislumbrar-se-ia a projeção de fortes impulsos emocionais
inconscientes. Deve-se admitir a hipótese de que os impulsos reprimidos de
caráter autoritário do juiz antidemocrático tendem a projetar-se em outras
pessoas, em relação às quais ele acaba por atribuir toda a culpa por pulsões e
pensamentos que, na realidade, dizem respeito a ele. Se um juiz insiste em
“demonizar” uma pessoa (um acusado do crime de tráfico, por exemplo)
atribuindo-lhe propósitos hostis para além da conduta imputada, sem que existam
provas de nada além dos fatos imputados, existem boas razões para acreditar que
o juiz autoritário tem as mesmas intenções agressivas e está buscando
justificá-las ou reforçar as defesas da instância repressiva pela via da
projeção. Da mesma maneira, deve-se assumir a possibilidade de que quanto maior
for a preocupação com a “criminalidade organizada”, o “aumento da corrupção” ou
as “forças do mal”, mais fortes seriam os próprios impulsos inconscientes do
juiz antidemocrático no âmbito da destrutividade e da corrupção;
09. Preocupação
com a sexualidade: preocupação exagerada com o “sucesso” sexual e com a
sexualidade alheia. O juiz antidemocrático teria medo de falhar no campo sexual
e compensaria suas inseguranças com condutas que acredita reproduzirem a imagem
do homem viril. Penas altas e desproporcionais, por exemplo, procurariam
compensar a impotência, o medo de falhar e quiçá a insegurança com o tamanho do
pênis. Não se pode descartar a hipótese de que juízas procurariam reproduzir a
imagem do “homem viril” como forma de se afastar do estereótipo do sexo frágil.
Com Adorno, pode-se apostar na força das pulsões sexuais inconscientes do
sujeito na formação da personalidade autoritária;
10. Criação de
um inimigo imaginário: o juiz antidemocrático, que trabalha com
estereótipos e preconceitos distanciados da experiência e da realidade,
acabaria por fantasiar inimigos e riscos sem amparo em dados concretos. Nessas
fantasias, marcadas por adesão acrítica aos estereótipos, prevalecem ideias de
poder excessivo atribuído ao inimigo escolhido. A desproporção entre a
debilidade social relativa ao objeto (por vezes, um pobre coitado morto de fome
que comercializa drogas ilícitas em uma comunidade como meio de sobrevivência)
e sua imaginária onipotência sinistra (“capitalista das drogas ilícitas e
responsável pela destruição moral da juventude brasileira”) parece demonstrar
que há um mecanismo projetivo em funcionamento. No combate ao inimigo
imaginário com superpoderes igualmente imaginários, os sentimentos
implicitamente antidemocráticos do juiz autoritário apareceriam por meio de sua
defesa discursiva da necessidade do afastamento das formas processuais e dos
direitos e garantias fundamentais como condição à eliminação do inimigo e da
ameaça;
11. O fiscal
como juiz e a promiscuidade entre o acusador e o julgador: a confusão
entre o fiscal/acusador e o juiz é uma característica historicamente ligada ao
fenômeno da inquisição e à epistemologia processual autoritária. A hipótese é
de que, no momento em que o juiz tendencialmente fascista se confunde com a
figura do acusador, em que passa a exercer funções típicas do acusador como
tentar confirmar a hipótese acusatória, surge um julgamento preconceituoso, uma
paródia de juízo, com o comprometimento da imparcialidade que atuaria como
condição de legitimidade democrática do julgamento. Tem-se, então, o primado da
hipótese sobre o fato. A verdade perde importância diante da “missão” do juiz,
que aderiu psicologicamente à versão acusatória, de comprovar a hipótese
acusatória ao qual está comprometido;
12. Ignorância e
confusão: uma característica da personalidade autoritária é que ela se
desenvolve no vazio do pensamento. Assim, o juiz autoritário em suas
manifestações deixaria claro a ignorância e a confusão acerca de conceitos
políticos, econômicos, culturais, criminológicos, etc. A hipótese, nesse
particular, é que se o indivíduo não sabe sobre o que se manifesta, razão pela
qual substitui o conhecimento pela força em uma postura anti-intelectual, que
ele disfarça como “senso prático” (“eu faço”, “eu entendo porque sou eu que
faço”, “eu sei porque passei em um concurso”, etc.”), precisa preencher o vazio
cognitivo com chavões, senso comum, preconceitos difundidos na classe média e
estereótipos. O pensamento estereotipado, que atua em favor de tendências
reacionárias (todo movimento e propaganda antidemocrática busca o ignorante e,
por vezes, alcança também o “semi-formado”, aquele que tem uma formação
“superior” e diplomas, mas é incapaz de reflexão porque não consegue articular
as informações recebidas ou as desconsidera por acha-las desimportantes para
suas metas individuais). Impressiona, ainda hoje, o grau de ignorância e
confusão observado em pessoas com nível educacional formal relativamente alto.
Também não se pode descartar o fato de que a ignorância e a confusão, não raro,
são incentivadas e produzidas pelos meios de comunicação de massa e pela propaganda,
muitas vezes direcionada a fins antidemocráticos ou pseudodemocráticos;
03. Pensamento
etiquetador: o pensamento etiquetador é fenômeno conexo ao pensamento
estereotipado. O fundo de ignorância e confusão, mesmo que inconscientemente,
gera um quadro de ansiedade, semelhante ao estranhamento e a ansiedade
infantil, o que faz com que o indivíduo recorra a técnicas que afastem essa
ansiedade e orientem a ação, mesmo que essas técnicas sejam grosseiras e
falsas. Os estereótipos e as etiquetas, com as quais divide o mundo e as
pessoas (“homem mau”, “pessoas de bem”, “homem do saco”, “personalidade voltada
para o crime”, etc.), servem ao indivíduo como um substituto do conhecimento
(ou uma forma de conhecimento precária e tendencialmente falha) que torna
possível que ele tome decisões e posições (tendencialmente antidemocráticas,
uma vez que falta a informação que legitima as escolhas verdadeiramente
democráticas). A hipótese aqui é a de que o juiz antidemocrático recorre ao
pensamento etiquetador para produzir em si uma ilusão de segurança intelectual
ou como forma de buscar apoio popular no meio que também só pensa a partir de
estereótipos e outras estratégias de simplificação da realidade;
14. Pseudodemocracia: a
personalidade autoritária, por questões ligadas à ideologia, muitas vezes,
caracteriza-se por recorrer a distorções de valores e categorias democráticas
para alcançar resultados antidemocráticos. Há, nesses casos, um descompasso
entre o discurso oficial e a funcionalidade real. Isso ocorre, por exemplo, ao se
defender práticas racistas em uma sociedade racista a partir da afirmação do
princípio democrático da maioria (“se a maioria é racista, o racismo está
legitimado”). A hipótese, portanto, é de que o juiz autoritário recorre ao
argumento de estar atendendo às maiorias de ocasião, muitas vezes forjadas na
desinformação, para violar direitos e garantias fundamentais.
III – Desafio ao leitor
Agora, cabe
ao leitor para ter uma ideia do pensamento e da mentalidade dos juízes
brasileiros comparar artigos, entrevistas, decisões e demais manifestações
desses importantes atores jurídicos com os sintomas e caraterísticas
identificados por Adorno como tendencialmente antidemocráticos.
Importante
ter em mente que as características e sintomas descritos por Adorno, em regra,
apresentam nexos entre si, mas se referem apenas a uma tendência. As conclusões
sobre a aderência, ou não, de cada pessoa às características da personalidade
tendencialmente fascista nos servem para refletir sobre a formação da
subjetividade de nossa época e a responsabilidade dos atores sociais na defesa
da democracia.
Rubens
Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais e Juiz de Direito do
TJ/RJ
Do GGN