Marcelo
Auler conta em "Enciclopédia do Golpe" os métodos nada ortodoxos
utilizados pelos procuradores e policiais federais de Curitiba para destravar
as delações que ajudaram a derrubar o governo do PT. Como Sergio Moro vai
julgar a testemunha explosiva, processada pela Lava Jato somente após decidir
revelar os bastidores?
Na
coletânea "Enciclopédia do Golpe", que será lançada no final de
novembro em Curitiba, o repórter e blogueiro Marcelo Auler registrou os
bastidores iniciais de uma ação penal que está em curso, na Vara Federal
comandada por Sergio Moro, com poder de dar muita dor de cabeça aos
procuradores e policiais. Isso, claro, se no establishment que
circunda a Lava Jato ainda puder existir o mínimo de interesse em fazer valer
as leis contra os abusos praticados na raiz da operação.
Auler
detalha no livro como Meire Poza, a contadora de Alberto Youssef, foi usada
pelas equipes lideradas pelo delegado Marcio Anselmo e pelo procurador da
República Deltan Dallagnol para forçar delações premiadas e até mesmo produzir
provas possivelmente ilegais.
Desde
2014, Meire foi para a Lava Jato, nas palavras do agente Rodrigo Prado Pereira,
o que os federais chamam de “ganso”. Uma pessoa que estava muito “empolgada”
para ajudar nas investigações, confiante de que não seria denunciada. A fé da
contadora residia, segundo seus advogados, nas palavras do delegado Anselmo,
que afirmou: "Se te denunciaram, me coloca de testemunha que vou pedir o
perdão judicial."
A
promessa caiu por terra poucos meses depois de o escritório de Meire ser
incendiado, em mais uma possível ameaça contra sua vida e sua família.
Abandonada pela Lava Jato de, Meire decidiu contar como foi seu relacionamento
com a força-tarefa a um procurador de São Paulo, em meados de 2015 - um ano
após iniciar sua missão de “agente infiltrada” em Curitiba.
Auler
cravou no texto que integra a Enciclopédia, ao qual o GGN teve acesso
na íntegra, que coube à Meire “o papel de convencer (pressionar?) presos a
prestarem a delação premiada.”
Sem
o “empurrão” dela, delações como as de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef
não sairiam a tempo de a Lava Jato montar uma operação boca-de-urna contra o PT
e Dilma Rousseff.
PRESSÃO PSICOLÓGICA
Meire
destravou tudo a pedido, segundo relatos que constam no livro “Assassinato de
Reputações, muito além da Lava Jato”, do delegado de Curitiba Eduardo Mauat,
que acabou dando autorização para ela “visitar” e "convencer" o
advogado Carlos Alberto Pereira da Costa, empregado de Youssef.
Costa,
de acordo com a publicação, era “arrogante demais, tripudiou com o Ministério
Público e vai ficar de castigo. Você não pode visitá-lo”, teria dito o agente
Rodrigo Prado. Mais um elemento a corroborar as críticas de que as prisões
foram e são usadas como nos tempos medievais.
“A
sua insistência acabou levando o delegado Eduardo Mauat a permitir o encontro e
dele tirar proveito. Permitiu dez minutos de contato para que ela o convencesse
a falar o que sabia. Para isso, levou um recado curto e grosso: Se não aderisse
à delação, não vamos libertar ele, é capaz do Alberto (Youssef) sair e ele
ficar preso aqui’ (sic)”, escreveu Auler.
Meire
chorou, implorou, apelou para a família e para a falta de perspectiva de sair
da prisão, e convenceu o advogado a colaborar. Na prática, não teve delação
oficial e homologada. Teve - como nos casos de Léo Pinheiro, Antonio Palocci e
Renato Duque, em ações contra Lula - depoimento ao juiz Sergio Moro. Tudo
dentro do script.
No
dia em que o testemunho de Carlos Alberto foi colhido por Moro, Paulo Roberto
Costa envergou: se encontrou com a equipe de Dallagnol para fechar um termo de
delação. Motivado, é claro, pela transferência súbita de cela do funcionário de
Youssef, que teria feito o mesmo que Meire: pressionou o ex-diretor da
Petrobras a dançar de acordo com a música. Depois disso tudo, foi solto por
Moro.
Quem
defendeu os interesses de Carlos Alberto em sua "delação expontânea"
foi ninguém mais, ninguém menos que o advogado Rodrigo Castor de Mattos, irmão
do procurador da Lava Jato Diogo Castor de Mattos. A informação foi revelada no
bojo da delação do casal João Santana e Mônica Moura. Castor admitiu que fez a
defesa até 7/10/2014 e "posteriormente, quando já era assistido pela
Defensoria Pública da União, o réu celebrou acordo de colaboração com o
Ministério Público Federal em 27/4/2016, sendo homologado em audiência na data
de 6/6/2016”.
“Ao
pé da letra da lei sancionada em 2013, a negociação por uma deleção premiada
deve se iniciar com uma decisão espontânea do acusado. Precisa ter sempre a
participação de seu defensor. Mas, junto à Força Tarefa a presença de advogados
nem sempre era uma exigência respeitada”, ressaltou Auler.
Com
a delação de Costa e vazamentos sistemáticos de depoimentos de Meire à
imprensa, Alberto Youssef também se rendeu ao MPF, já por volta de setembro de
2014.
Meire,
o “ganso” dos policiais federais de Curitiba, entregou inúmeros documentos ao
Márcio Anselmo. Segundo os relatos de Auler, este último chegou a forjar
operações de busca e apreensão para esquentar os papéis e usá-los nos
inquéritos. “Do contrário não haveria como justificar aquelas ‘provas’ na
investigação.”
A
contadora também ajudou a Lava Jato a identificar números de telefones relacionados
a Youssef. Desde que operação era embrionária, a força-tarefa enfrentava o
obstáculo com números de pessoas que tinham foro privilegiado e, portanto, só
poderiam ser objetos de investigação sob a batuta do Supremo Tribunal Federal.
Mas os esforços da República de Curitiba eram todos no sentido de evitar a
avocação dos processos.
Agora
que Meire, depois de enxotada da sua função de “ganso”, é processada pela Lava
Jato, o agente Rodrigo Prado até confessou em depoimento a Moro que, “por
vontade própria”, a contadora fez gravações provavelmente clandestinas que
foram “relevantes” para as investigações.
No
depoimento que ela ofereceu ao MP em São Paulo [em anexo], ela disse mais:
revelou empréstimos de Youssef com bancos internacionais que não despertaram o
interesse dos procuradores. Contou dos episódios em que foi orientada a não
busca advogado. Acrescentou que o delegado Anselmo a orientou a ter boas
relações com os jornalistas que costumam ter privilégios na cobertura da Lava
Jato em Curitiba.
O
depoimento completo, no qual Prado diz que Meire não contratou advogado para se
precaver porque não queria gastar dinheiro com isso, está disponível abaixo.
O
curioso nesta ação penal contra Meire é o fato de que ela usa como crime a
venda de uma propriedade de Youssef para pagar dívidas da empresa que a
contadora ajudava a gerenciar, deixadas pelo doleiro após sua prisão. Segundo
os advogados dela, os procuradores e os federais sabiam da transação e não
ameaçaram com nenhum processo.
Em
busca de absolvição, a defesa de Meire quer fazer Moro reconhecer que ela foi
fundamental para a Lava Jato.
Por
volta dos 13 minutos do vídeo abaixo, um dos advogados da contadora expõe uma
lista que deixa Márcio Anselmo perdido, de pessoas e empresas delatados.
Constam IT7, Marcelo Simões, contratos com GPI, UTC, Moinho Cearense, a
história do empréstimo do avião de Youssef ao ex-deputado André Vargas;
denúncias contra Adarico Negromonte, os precatórios do Maranhão e eventos sobre
Breno Altman, que ajudaram a Lava Jato a explorar politicamente a morte de
Celso Daniel. José Janene, Cândido Vacarezza, João e Ciro Nogueira, Renan
Calheiros. O leque de Meire era deveras sortido, embora atendesse ao interesse
da Lava Jato em atingir o núcleo político que orbitava o PT.
Com
Meire destravando a delação de Carlos Pereira e, por tabela, de Paulo Roberto
Costa e Alberto Youssef, a chamada República de Curitiba municiou a grande
mídia, às vésperas da eleição de 2014. A capa mais emblemática desse período
talvez seja a de Veja afirmando que, segundo o doleiro, Dilma e Lula “sabiam de
tudo” o que acontecia de ilícito na Petrobras.
A
denúncia contra Meire foi aceita por Moro em dezembro de 2016. A contadora
arrolou Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima como testemunhas.
Eles declararam-se, em manifestação a Moro, suspeitos para cumprir tal papel em
um processo que ajudaram a instruir. “Membros do Ministério Público não podem
oficiar em ação penal ou investigação quando tiverem presenciado os fatos sob
apuração”, disseram.
O
delegado Anselmo, por outro lado, não conseguiu se livrar do depoimento. Mas
não teve o desconforto de responder a uma pergunta que os defensores de Meire,
para evitar rusgas, não tiveram a audácia de fazer: por que a Lava Jato decidiu
processar sua agente infiltrada?
A
dúvida instiga ainda mais quando se tem conhecimento, pela imprensa, de que em
2015, quando Meire estava em vias de procurador o MP em São Paulo para relatar
tudo os feitos que fez a pedido da Lava Jato, o então ministro da Justiça
Eugênio Aragão mandou investigar se, de fato, ela foi usada como agente
infiltrada. A julgar pelo tamanho da lista de delatados por Meire, o
comprometimento das provas certamente é o maior temor da força-tarefa.
Ao
aceitar a denúncia, Moro sinalizou que não é porque Meire está, somente agora,
sendo processada pela Lava Jato, desprovida de um acordo de delação premiada
formal, que seu esforço não poderá vir a render-lhe nenhum benefício.
Resta
saber o que juiz fará com o destino de uma testemunha explosiva.
Arquivos
procuradores_nao_querem_depor.pdf
Do GGN