O
tempo é outro, o personagem é outro, mas as razões, as intenções e os métodos
são espantosamente iguais. Tanto que o professor Paulo César de Araújo, em
artigo publicado na Folha, sequer precisa citar um nome para que
associação seja imediata. Basta que você leia, suas lembranças recentes irão
trocando, com imensa facilidade, os nomes e as situações.
Nos anos 1960, um ex-presidente era
investigado por causa de apartamento
Naquela manhã de
domingo, o ex-presidente tomou seu café saboreando também a primeira página do
jornal com pesquisa do Ibope que o colocava na liderança à Presidência da
República, com 43,7% das intenções de voto.
Meses depois, a
candidatura dele seria homologada, por unanimidade, por seu partido, num evento
com a presença de vários artistas.
Parecia mesmo apenas
uma questão de tempo para Juscelino Kubitschek voltar a governar o Brasil.
“JK venceria se eleição
fosse hoje”, dizia o “Correio da Manhã” com os números da pesquisa, em setembro
de 1963.
Mas aí veio o golpe
civil-militar, em março do ano seguinte, e a candidatura dele ficou seriamente
ameaçada. Iria se iniciar a caçada ao ex-presidente, que na época, aos 62 anos,
era senador da República.
O golpe foi realizado
sob o pretexto de combater a corrupção e livrar o país dos comunistas. Num
primeiro momento, os militares procuravam guardar algum sinal de legitimidade,
prevalecendo aquilo que Elio Gaspari chamou de “ditadura envergonhada”.
Eleito pelo Congresso
Nacional –inclusive com o voto de JK–, o primeiro general-presidente, Castelo
Branco, disse que manteria as eleições presidenciais de outubro de 1965 e daria
posse ao eleito. O seu governo seria de transição, prometendo fazer uma espécie
de limpeza geral no país, especialmente da corrupção.
PRESIDENTE
E JUIZ
“Até o problema do
comunismo perde expressão diante da corrupção administrativa nos últimos anos”,
afirmava o marechal Taurino de Resende, presidente da Comissão Geral de
Investigação (CGI).
A este órgão cabia
investigar, reunir documentos e indicar quem deveria ser cassado por corrupção
ou subversão. A lista era levada ao Conselho de Segurança Nacional que podia
acatar ou não a denúncia, mas o julgamento final era do presidente (e neste
caso, juiz), Castelo Branco – que defendia, em discurso, não apenas punição aos
malfeitores, mas também “reformas de profundidade na estrutura orgânica da
administração pública” para curar “a enfermidade da corrupção no país”.
Como Getúlio Vargas já
havia morrido e lideranças como João Goulart e Leonel Brizola estavam no
exilio, os golpistas se voltaram contra Juscelino Kubistchek, o erigindo a
símbolo do que não podia mais prosperar na política nacional.
Diziam que sempre se
roubou no Brasil, porém, num nível imensamente maior a partir do governo JK
–que seria culpado também pela inflação e a recessão econômica.
Com sua fúria punitiva
o governo militar iniciou então uma devassa na vida do ex-presidente. Foram
vasculhadas empresas e bancos nacionais, americanos e suíços na tentativa de
localizar investimentos em nome dele ou de familiares.
“Não tenho um centavo
em banco estrangeiro. Deveria ter para qualquer eventualidade. Mas não tenho
nada, rigorosamente nada”, se defendia.
Foi também investigado
quanto o ex-presidente havia recebido por viagens de conferências no exterior,
na suposição de que ele não teria pago o imposto de renda.
Documentos sobre
supostos atos de corrupção em seu governo eram liberados para a imprensa pela Secretaria
do Conselho de Segurança Nacional. “Não havia dia em que não se verificasse
algum tipo de imputação contra sua honra para justificar a punição iminente”,
afirma seu biógrafo Claudio Bojunga.
TRÍPLEX
EM IPANEMA
A denúncia que se
tonaria mais rumorosa envolveu um novíssimo prédio de cinco andares, na avenida
Vieira Souto, em Ipanema, onde JK foi morar, pouco depois de deixar a
Presidência. Ele residia no segundo andar e, oficialmente, pagava aluguel ao
seu amigo (e ex-ministro da Fazenda) Sebastião Paes de Almeida.
Mas, segundo a
denúncia, o amigo, embora milionário, era um “laranja” do ex-presidente, usado
para encobrir o real proprietário do edifício construído com dinheiro doado por
empreiteiros de grandes obras no governo JK.
No processo afirmava-se
que a localização, o projeto arquitetônico, a decoração do prédio, tudo teria
sido feito ao gosto de Juscelino Kubistchek e de sua esposa Sarah.
Testemunhas teriam
visto o ex-presidente visitando as obras; outros afirmavam que dona Sarah era
quem determinava alterações nos pavimentos. Dizia-se ainda que inicialmente
eles iriam morar num tríplex nos andares superior mas “quando começaram rumores
sobre a propriedade do edifício, o ex-presidente abandonou a ideia do tríplex e
resolveu habitar apenas no 2º pavimento”.
Outro indício estaria
no nome do edifício – “Ciamar” -, interpretado como anagrama de Márcia, filha
de Juscelino Kubitschek.
Esta denúncia não
prosperaria na Justiça comum, sendo arquivada por falta de provas, em maio de
1968. Mas até lá, muita tinta foi gasta em reportagens sobre “o edifício de
Kubitschek” –chancelando nas manchetes o que o ex-presidente negava.
E tudo isto servia de
combustível para quem desejava tirá-lo da disputa à presidência em 1965, e para
a qual ele abraçara o discurso das reformas sociais. “Reformas com paz e
desenvolvimento”, seria o mote da campanha de JK.
NA
IMPRENSA
“A Revolução estará
sendo traída enquanto o rei da corrupção permanecer impune”, cobrava o deputado
e repórter Amaral Neto, enfatizando “que há muito tempo esse moço já deveria
estar na cadeia”.
Por sua vez, “O Estado
de S. Paulo” dizia que “pelos crimes cometidos contra o erário público” durante
o governo de JK com a “deslavada conivência dele” era “perfeitamente justa e
merecida” a sua cassação. E o “Jornal do Commercio” sentenciava que “o sr.
Kubitschek é incompatível com a nova era que se iniciou”.
Após investigações da
CGI, em maio de 1964 o Conselho de Segurança Nacional opinou pela cassação de
JK por corrupção e alianças com comunistas. Caberia agora, portanto, ao
presidente (e juiz) Castelo Branco condená-lo ou absolvê-lo.
A partir daí o drama de
Juscelino Kubitschek empolgou o país, gerando suspense no mercado e em todos os
círculos políticos.
O seu partido, o PSD,
sofria junto porque não tinha um plano B sem JK –que fez no Senado um discurso
de repercussão, afirmando que estava sendo perseguido, não pelos seus defeitos,
mas por jamais “compactuar com qualquer atentado à liberdade e agir sempre com
dignidade administrativa”.
Em meio à expectativa
da condenação surgiram boatos de que o ex-presidente poderia ter também sua
prisão preventiva decretada –algo que o próprio Palácio do Planalto tratou de
desmentir.
Porém, o suspense
continuava; afinal, tratava-se do destino da maior liderança política do país
após Getúlio Vargas e o líder das pesquisas eleitorais. Àquela altura, o
telefone do ex-presidente já estava grampeado pelo recém-criado SNI e Castelo
Branco ouviu uma das conversas em que JK se referia a ele como “filho da puta”.
DEFENSORES
Apesar do clima
policialesco e repressivo, vozes saiam em defesa do ex-presidente.
“Por que, sr. general,
cassar o mandato de Juscelino Kubistchek?”, indagava o jurista Sobral Pinto, e
ele próprio respondia que “na impossibilidade de vencer o ex-presidente nas
urnas, seus adversários querem arrancar-lhe o direito da cidadania, único
expediente capaz de afastá-lo da luta eleitoral”.
Dias antes, Danton
Jobim também escreveu artigo direcionado ao presidente Castelo Branco,
convidando o “supremo juiz” à reflexão.
“O país não vai
lembrar-se amanhã dos coronéis que instruíram o inquérito ou dos políticos
odientos que instigam essa caçada humana, no qual um dos maiores brasileiros do
nosso tempo é perseguido como criminoso vulgar. Mas o nome de Vossa Excelência
ficará indissoluvelmente ligado à cassação do mandato de Juscelino Kubitschek”.
No último dia de maio,
lia-se na coluna de Carlos Castelo Branco que a candidatura de JK se sustentava
“apegada apenas a um fio de esperança”.
Uma semana depois não
restaria mais nada.
Às 19h27, de
segunda-feira, dia 8 de junho, o programa A voz do Brasil irradiou o decreto do
marechal Castelo Branco, que cassava o mandato de JK e suspendia seus direitos
políticos por dez anos.
Para alegria dos
adversários, o grande favorito às eleições presidenciais de 1965 estava banido
da disputa.
Carlos Lacerda –que
naquela pesquisa do Ibope figurava em segundo lugar–, elogiou a decisão contra
JK. Disse que foi “um ato de coragem política, de visão, embora preferisse
batê-lo nas urnas”.
Seu colega udenista
Edson Guimarães também afirmou que a decisão de Castelo Branco “veio na hora
exata” para mostrar “que a Revolução não foi feita para manter privilégios, mas
realmente para mudar o cenário da política nacional”.
A ditadura era
envergonhada mas não se avexou de banir o ex-presidente com justificativas
frágeis –fato destacado no editorial do “Diário Carioca”: “Sem provas de
espécie alguma, absolutamente sem provas, baseando-se apenas em indícios e
suposições, cortou-se sumariamente o curso de uma vida púbica dedicada desde os
seus primórdios aos interesses da nação, negando-se com isso ao povo o direito
de votar num de seus líderes mais representativos, dono de um passado de
realizações tão importantes quando internacionalmente consagradas”.
Concluía o editorial
dizendo que se JK “hoje não é mais candidato à Presidência da República, é
muito mais que isto: é o símbolo vivo e fremente da vontade de um povo”.
O “Correio da Manhã”
também criticou a cassação “sem provas convincentes”. No mesmo jornal, Carlos
Heitor Cony desabafou: “Afinal, foi consumada a grande estupidez”, prevendo que
com aquele ato o presidente Castelo Branco “selou seu destino perante a nação e
perante a história: é um homem mesquinho”.
O “Correio da Manhã” e
o “Diário Carioca” foram exceções entre os principais jornais do país, porque a
grande imprensa, em sua quase totalidade, apoiou a cassação de Juscelino
Kubitschek.
A Folha de S.Paulo, “O
Estado de S. Paulo”, “O Dia”, a “Tribuna da Imprensa”, o “Jornal do Commercio”,
o “Jornal do Brasil” e, principalmente, “O Globo”, com um editorial intitulado
“Uma lição para o futuro”, afirmando que “as medidas excepcionais e enérgicas
que estão sento tomadas pelo governo, visando à punição dos responsáveis pela
corrupção” teria “o mérito maior de mostrar a todo o mundo que desta vez se
realizou algo para valer”.
A Folha de S.Paulo
também justificou que ao ex-presidente foi concedido “o direito de defender-se
amplamente e com a máxima ressonância”.
A condenação de JK foi
destaque na mídia internacional –mas lá numa visão favorável ao criador de
Brasília.
O jornal “Le Monde”, o
“New York Post”, a “Time” e a “Newsweek”, por exemplo, criticaram a decisão do
marechal Castelo Branco.
E o matutino El Espectador,
de Bogotá, refletiu que “antes que uma garantia de paz política e social no
Brasil” aquele ato seria “destinado a causar mais sérios e talvez irreparáveis
traumatismos no presente e no futuro do pais”.
Juscelino Kubistchek
recebeu a notícia da cassação cercado de amigos e familiares em seu
apartamento, na Vieira Souto.
Dona Sarah mostrava-se
muito abatida e revelou ter tomado tranquilizantes. “Isso tudo foi uma
barbaridade”, desabafou.
Lá fora, uma multidão
se aglomerava nas imediações do Edifício Ciamar (hoje, JK) e o tráfego ficou
congestionado nas duas pistas da avenida.
Algumas senhoras
choravam pelo ex-presidente, enquanto um grupo de golpistas e lacerdistas
gritava “ladrão! ladrão!”. Houve então um início de briga, foram acionadas
tropas da Policia Militar e algumas pessoas ficaram levemente feridas.
O tumulto só terminou
quando os manifestantes anti-JK bateram em retirada pela praia de Ipanema. Por
volta das 22 horas, Juscelino Kubitschek apareceu à janela abraçado com sua
esposa, ocasião em que os populares deram vivas à democracia e cantaram o Hino
Nacional e o Peixe vivo.
Protesto
em apoio à condenação do ex-presidente Lula, em Brasília
Pouco depois, com a voz
embargada o ex-presidente ditou um manifesto em que afirmava: “Sei que os meus inimigos
me temem porque temem a manifestação do povo, e assim, com esse ato brutal, me
afastam do caminho das urnas, única manifestação válida num regime
verdadeiramente democrático”.
Disse também que embora
“silenciado pela tirania, restarão documentos irrefragáveis, restará a
reparação que a história oferece, dignificando os que forem sacrificados pela
má fé, pela incompreensão, pelo ódio”.
E ele então concluía
com um vaticínio certeiro e profético. “Este ato não marcará o fim do arbítrio.
O vendaval de insânias arrastará na sua violenta arrancada mesmo os meus mais
rancorosos desafetos. Um por um, eles sentirão os efeitos da tirania que
ajudaram a instalar no poder.”
Tijolaço