Enseada
do Brito: terra disputada por guaranis e posseiros
Perdão
leitores e turistas: reapresento a história da índia guarani da mão cortada a
faconaços.
É
necessário para recontar as circunstâncias desta brutal agressão ocorrida
em Santa Catarina no feriado de Finados – consequência da luta pela
terra entre brancos e guaranis.
O
ataque foi um gesto nada sutil. O objetivo da barbárie é expulsar os guaranis
da Terra Indígena do Morro dos Cavalos, onde 300 deles resistem às investidas.
A
vítima da hora foi mesmo a índia que mostramos com exclusividade aqui no DCM:
Ivete de Souza, fotografada num leito do Hospital Regional São José na noite
dessa terça, 21.
O
que agora se sabe é que ela foi marcada para morrer porque é ninguém menos do
que a matriarca dos guaranis da aldeia. Figura respeitadíssima e mãe da
combativa cacica Eunice.
Seu
verdadeiro nome é Juxiká.
Na
língua deles significa “divindade das sementes” – Ivete é apenas o nome
aportuguesado dela, assim registrado no BO da polícia e no hospital.
Juxiká
é de poucas palavras. Sua voz é só um murmúrio, cada frase soa como um suspiro.
Ela
já estava na aldeia quando a reencontrei na quinta, dia 23. O coto da mão
cortada estava enrolado em bandagens encardidas. Tinha os cabelos desgrenhados,
vestia roupas surradas, o esmalte vermelho descascando das unhas da mão que lhe
sobrou.
Não
foi fácil chegar ao esconderijo dela, só possível depois de negociações com
lideranças guaranis em São Paulo.
Aqui
não posso descrever o local, porque os índios me pediram sigilo, por segurança
– vai que quem a atacou queira terminar o serviço.
Posso
dizer que a sala era pobre, mas ampla e arejada, com um mapão na parede.
A
velha índia contou, sem alterar a voz, que não identificou quem queria seu mal.
Descarta
rixa com algum índio: “Minha vida era só carpir, plantar e cozinhar para a
família”.
A
família pela qual ela lutava de enxada na mão é composta pela filha cacica, uma
neta (filha de cacica) e uma bebê, bisneta, quatro gerações sob o mesmo teto.
Olhando
a big picture, e sabendo que Eunice é uma liderança guarani conhecida e
respeitada internacionalmente, que nunca anda desprotegida, entende-se por que
Juxiká se tornou alvo.
Juxiká,
ou Ivete de Souza, cuja mão foi decepada num ataque
Eunice
dá entrevista com a mãe. Também por segurança, pede que fotos da filha e da
bebê não sejam publicadas – posso atestar que a menina era linda, saudável e
irrequieta, rolando pela casa num andador cor de rosa. A danadinha interrompeu
a entrevista várias vezes.
O
que não percebemos na primeira reportagem foi a verdadeira natureza e a
dimensão do ataque, parcialmente escondido pela grande mídia.
Notícias
do conflito poderiam causar impacto negativo no turismo do Mercosur – os
gringos que entram em Floripa não suspeitam do caldeirão de ódio e violência
que é a paisagem idílica da janela do carro, o parque estadual da Serra do
Tabuleiro, onde há décadas os 300 guaranis sobrevivem enfrentando um rosário de
desigualdades.
A
tribo, da qual a maioria pensa que são só os vendedores de cestos bem do alto
do Morro dos Cavalos, às margens da BR101, é hostilizada pelos posseiros
brancos que ocupam a terra deles.
Os
posseiros têm apoio de políticos locais, no Judiciário, Legislativo, Executivo
dos três níveis e da imprensa – índio não lê jornal.
Os
fins de semana da tribo são de puro terror.
Nos
findis os posseiros têm mais tempo livre e passeiam pela área, disparando para
o alto, às vezes mandando bala no casebres da turma.
Os
relatos dos ataques são fartos, comprovados com queixas na polícia e na
internet, mas pouca gente se importa.
A
bela e Santa Catarina só divulga as qualidades boas de seu povo e as baladas do
verão, escondendo o lado sujo dos guaranis.
Não
falo aqui de direitos ancestrais às terras.
A
área foi demarcada (em 2008) pelo Ministério da Justiça da Era Lula. Eis o
documento:
Portaria
Declaratória 771, do Ministério de Justiça, declara de posse permanente dos
grupos indígenas Guarani Mbyá e Nhandéva a Terra Indígena Morro dos
Cavalos, de aproximadamente 1.988 hectares. (Fonte: site do MJ)
Portanto,
no papel, os 300 poderiam chamar de seu aquele cantinho.E viver ali para pescar
e colher goiabas.
Estava
tudo pronto para o então presidente assinar a homologação da área e despejar
ajuda federal nela, quando os posseiros, organizados por prefeitos da região,
foram ao STF contestando a medida.
O
STF levou oito anos para decidir que os índios tinham razão.
Não
adiantou: quando os posseiros perderam, foi a vez do governador Raimundo
Colombo (PFL/DEM/PSD) entrar no tapetão. Eis outro documento:
O
Estado de Santa Catarina pediu a anulação da demarcação da terra indígena no
Morro dos Cavalos, em Palhoça, na Grande Florianópolis. Para isso, a
Procuradoria Geral do Estado protocolou no STF solicitação para tornar sem
efeito a Portaria Nº 771, do MJ. O governo pede mais: se perder a terra, que ao
menos o STF afaste os índios do leito da BR101 (Fonte: site da PGE/SC)
Protocolar
no STF é jogar o caso para as calendas.
Provocação:
“Enseada é terra de gente”
E
o novo pedido veio com uma barganha que os posseiros não pensaram: se os
ministros mantiverem a decisão de que a terra é dos guaranis, que pelo menos
eles (os índios, não os ministros) sejam chutados do alto do Morro dos Cavalos,
para que se possa dar uma reformada na BR101.
FALTOU
UMA CANETADA
Dilma
teve uma chance para desafiar tudo e assinar a homologação. Os índios mais
espertos perceberam que ela ia cair e foram ao palácio. Um dia antes do
impeachment imploraram por um canetaço dela – mas ela não teve, digamos, bolas
para tanto. Estava tão siderada com o golpe que deixou os índios se virarem
sozinhos.
Aí,
caiu na mão de quem para assinar o decreto de homologação da área indígena?
Dele,
Michel Temer. Quem conhece o tema garante que ele só assinará uma homologação
destas no dia em que as galinhas criarem dentes.
Mais:
foi já na gestão dele que os brancos ganharam a última escaramuça, apertando o
torniquete nos índios.
A
ajuda do mal foi dada pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), órgão
do Ministério da Agricultura. Ela cortou a cesta básica que durante anos
pingava na tribo.
Chega
a ser provocação: o site da empresa mostra que entre suas tarefas está “a distribuição
de cestas de alimentos, compostas por 22kg de produtos da linha básica de consumo,
destinadas à suplementação alimentar de segmentos da população em situação de
vulnerabilidade social, tais como comunidades indígenas” – mas, neca pros
guaranis do Morro dos Cavalos.
TOMARAM
A TERRA, QUEREM A ÁGUA
Como
é a terra disputada?
O
naco dos guaranis tinha tudo para ser um pedaço do paraíso dentro do paraíso
que são os 84 mil hectares do parque estadual da Serra do Tabuleiro (1% do
território catarinense).
Os
guaranis ocupam menos de um 1% deste 1%, mas mesmo assim incomodam. Os melhores
mananciais de água limpa nascem nas terras deles – e os brancos a bebem lá
embaixo.
Os
300 que vivem lá dentro dominam as terras entre os rios Maciambu e do Brito,
mas 70 famílias de brancos estão enraizadas no meio deles – uns passam pelos
outros de olho arregalado.
No
ponto mais alto, as terras indígenas cortam a rodovia vital dos catarinenses,
aquela que traz ondas de gaúchos e argentinos para o turismo. Ninguém entra em
Floripa vindo do Sul sem passar pela terra deles.
Também
é dos guaranis uma das praias mais lindas do litoral catarinense, a Enseada do
Brito, com uma vista monumental do continente – do outro lado está Floripa, dá
para ir nadando.
Para
sobreviver, tudo o que os índios fazem nelas, além de suas roças de mandioca, é
explorar a venda de bugigangas, cestas de palha e caldo de cana. Os posseiros
têm negócios variados: postos de combustível, borracharias e puteiros.
O
cocoruto do morro e o conflito pelas obras da 101 são a parte visível, sempre
com os índios pintando nas páginas da maioria dos jornais como inimigos do
progresso.
Os
índios resistem com suas barraquinhas de suvenires pros viajantes na passagem
do morro porque sabem que se forem varridos do alto, serão varridos do parque –
já dá para imaginar bandeirantes modernos nos grotões caçando para deportação
aos últimos vendedores de caldo de cana.
A
luta continua, sem noção: hoje, as lideranças indígenas fazem periódicas
peregrinações ao Planalto para pedir ao ministro Eliseu Padilha que encaminhe o
decreto de homologação para assinatura do presidente Temer – os pajés sonham
com o dia das galinhas dentuças.
Barraquinha
de venda de suvenires às margens da BR101, no Morro dos Cavalos
Depois
da judicialização do caso pelo governo de SC, o governo federal se sente
confortável para deixar o caso pras calendas – tanto que ele continua dormindo
no STF.
Os
índios e o as autoridades já tinham acertado até como fazer para preservar os
cocorutos do Morro dos Cavalos pra BR101 – o DNIT deveria fazer túneis, projeto
pronto. No ano passado, o TCU vetou os túneis e reabriu a ferida de passar pela
terra indígena sem se importar com os vendedores de suvenires.
Semanas
atrás um grupo de políticos e empresários de Palhoça foi a Brasília pedir ao
mesmo Eliseu Padilha que interceda em favor da expulsão dos índios – neste
caso, é bom levar a galinha para ser examinada no dentista porque aí sim ela
pode criar dentes.
INDIOZINHOS
EXIBIDOS EM ESCOLAS
Um
historiador local, ouvido pelo DCM, ex-presidente do conselho de moradores da
Enseada do Brito, defende que não havia guaranis no pedaço “antes das ONGs”
(defensoras dos índios) dizerem que eles estavam lá por séculos – conforme
laudo antropológico da área, aceito pelo MJ.
Segundo
a tese dele, uma família de sobrenome Moreira teria acampado no Morro dos
Cavalos nos anos 60, durante a construção da 101, daí se originando o que hoje
é o grupo estimado em 300 resistentes escondidos naqueles grotões.
Ele
contou que até levou algumas crianças indígenas para exibi-las aos seus alunos,
no tempo em que lecionava nas escolas da região.
Defende
a permanência dos brancos posseiros no pedaço porque “são famílias que estão
aqui desde o tempo dos açorianos”, os colonizadores da vizinha Floripa.
Explicou
também que a água consumida nas casas dos moradores brancos que ocuparam a
Enseada vem toda da terra indígena, através de mangueiras que captam no alto do
morro: “Vamos deixar toda água com os índios”? pergunta, assustado.
Hoje
a causa dos brancos é defendido por uma funcionária pública, também integrante
do conselho de moradores, que não quer ter seu nome publicado.
Ela
sustenta que os índios chegaram mais tarde ainda do que a tal família Moreira.
Na
versão dela teria sido em 1993. Ela aposta numa vitória do governo de Santa
Catarina para despejar a indiarada. De lambuja, não quer nem sua foto publicada
no DCM – desejo aceito.
Ela
tem a ainda uma tese “líquida” de que a tribo entrincheira no morro não tem
guaranis legítimos: “Onde você viu guaranis que tomam chimarrão”?
Aqui
o repórter foi obrigado a buscar esta rápida info na web sobre a erva Ilex
paraguairiensis: diz a história que foram os guaranis que descobriram seu uso,
passando o conhecimento aos espanhóis.
Ou
seja, quando os brancos chegaram na América os guaranis já tomavam aquela
beberagem.
VERSÃO
OFICIAL DO ATAQUE É FANTASIA
Os
dois integrantes do conselho de moradores disseram saber que são os atacantes
que deram os faconaços em Juxiká.
Registro
que os dois se disseram horrorizados com o acontecido.
A
versão deles é a mesma versão oficial do ataque: de que ele foi perpetrado
por lideranças indígenas adversárias da cacica Eunice.
O
que nos leva de novo à cena do crime: Juxiká estava sozinha em seu casebre
quando dois adolescentes (hoje detidos, com identidades preservadas de acordo
com o Estatuto da Criança e do Adolescente) a atraíram para uma casa vizinha.
Lá
dentro havia um homem, adulto, com um facão, pronto pra suprema covardia: bater
até a morte numa velhinha de 1m52, desprevenida: “Eu senti o primeiro gole na
cabeça e o sangue escorrendo”, lembra Juxiká, estoica, sem derrubar nenhuma
lágrima.
Não
foi possível apurar mais detalhes do ataque porque ela disse que perdeu a visão
com o sangue nos olhos: “Senti tudo, mas não entendi direito e só me defendi” –
bem provável que se o cara deu o primeiro faconaço na cabeça dela queria mesmo
era matá-la.
Sem
especulações: dona Juxiká não perdeu a consciência, tentou se defender com os
braços, recebeu mais golpes pelo corpo, sangrou muito e teve a mão esquerda
decepada.
Caída
numa poça de sangue, a “divindade das sementes” foi deixada para
morrer. É provável que atacante tenha achado que o
serviço estava pronto e sumiu, deixando-a pronta pra semear nos sete palmos.
Como
vai a investigação da Polícia Civil de Santa Catarina ?
Lembremos
que seu governo quer a saída dos índios do pedaço.
Na
delegacia da Mulher de Palhoça, os agentes não dão prioridade ao caso.
Eles
espalham um boato, pedindo para que nada seja publicado antes do final das
investigações: o atacante seria outra liderança indígena, um suposto cacique
Luiz.
E
aí deram uma dica para o repórter: “Procure por ele nos mesmos morros, mais
para cima, num trecho perto dos garapuvus, foi visto próximo de uma roça de
melancias” – eu é que não sou bobo de procurar cacique em roça de melancias,
pelo que eu sei esta fruta só dá no plano.
A
cacique Eunice repudia as versões genéricas: “Cada vez que um dos nossos é
atacado, as pessoas pensam em desistir e mudar-se, é isto que os atacantes
querem. Está óbvio que não são indígenas, nosso povo está unido. É coisa deles”
– com “deles” em língua em guarani e em português, quer dizer gente de fora da
aldeia, brancos.
Os
300 guaranis do Morro dos Cavalos não fazem aquelas cenas de se pintar para
guerra ou usar arco e flecha na frente das câmeras.
Para
resistir às provocações, todos os findis, e durante a noite, a hora mais
temida, os guaranis, já acostumados com os sustos, se reúnem em vigília, em
locais protegidos.
As
crianças enroladas em cobertores, os cachorros soltos, pra avisar qualquer
coisa.
Os
guerreiros ficam no smartphone, as mulheres vendo TV.
As
famílias cozinham pinhão e mandioca.
Muitos
passam a noite em claro, de cuia na mão, tomando chimarrão.
Juxiká
(de costas) com a filha, cacica Eunice
DCM