Especulação imobiliária
avança, mesmo em meio à crise. Metrópoles expandem-se horizontalmente,
tornam-se mais caras e segregadas. Um novo projeto é indispensável — e precisa
superar inclusive as ambiguidades da esquerda.
Com o boom imobiliário vivido pelas cidades brasileiras nos
últimos anos — mas especialmente entre 2009 e 2015, a chamada dispersão urbana
foi radicalmente ampliada. A histórica especulação rentista baseada na propriedade
fundiária e imobiliária foi potencializada a níveis nunca vividos nas cidades.
Loteamentos fechados — erradamente (e convenientemente) chamados de condomínios
horizontais — e os conjuntos habitacionais populares do Programa Minha Casa
Minha Vida (PMCMV) funcionaram como vetores de dispersão e fragmentação
urbanas. Em 7 anos, aproximadamente R$ 788 bilhões provenientes do FGTS,
Orçamento Geral da União (OGU) ou setor privado foram investidos nos mercados
residenciais urbanos, isto é, sem considerar as demais obras urbanas como as de
mobilidade e saneamento (MARICATO E ROYER, 2017). Ao invés da necessária
regulação fundiária e imobiliária para aplacar o vendaval especulativo,
governos e câmaras municipais flexibilizaram a legislação e ampliaram o perímetro
urbano incluindo nele verdadeiros latifúndios, especialmente nas cidades de
porte médio.
O resultado dessas práticas foi o aumento do preço do metro
quadrado de construção e aumento generalizado do preço dos aluguéis muito acima
do custo de vida (SECOVI-SP, 2017). Eles se mantêm em patamar alto mesmo após o
desaquecimento da economia, acrescentando alguns graus no sofrimento das
camadas populares submetidas ao aumento do desemprego e da informalidade
especialmente depois do golpe de 2016. Diferentemente de outras mercadorias, a
moradia não tem queda do preço com o aumento da produção. Para que a redução
aconteça, as atividades especulativas devem ser freadas ou reguladas — como
acontece em países do capitalismo central para os quais a elite brasileira gosta
muito de viajar.
A cidade (hiper) dispersa, como mostra vasta bibliografia
sobre urbanismo é insustentável do ponto de vista ambiental, mas também
econômica e socialmente. Dados da Associação Nacional de Transporte
Público (ANTP) mostram por meio do SIM – Sistema de Informação sobre Mobilidade
o aumento no tempo médio das viagens para todas as formas de transporte
(“modais”), nos últimos anos (ANTP, 2016a)[1]. Os dados mostram também o aumento do
custo nos transportes individual e coletivo com a extensão das periferias.
Claro que a desoneração fiscal para compra de automóveis, medida tomada pelo
governo federal no mesmo período, tem sua parcela de responsabilidade nessa
cena. Entre 2003 e 2014, o número de automóveis mais do que dobrou nas ruas e
avenidas urbanas, contribuindo para ampliar a irracionalidade resultante da
ocupação do solo orientada pelo rentismo fundiário e imobiliário.
https://i2.wp.com/outraspalavras.net/wp-content/uploads/2018/04/tabela-1...
768w, https://i2.wp.com/outraspalavras.net/wp-content/uploads/2018/04/tabela-1... 1024w, https://i2.wp.com/outraspalavras.net/wp-content/uploads/2018/04/tabela-1... 1474w"
style="border:3px solid rgb(238, 238, 238);"
width="485">
https://i0.wp.com/outraspalavras.net/wp-content/uploads/2018/04/tabela-1...
768w, https://i0.wp.com/outraspalavras.net/wp-content/uploads/2018/04/tabela-1... 140w, https://i0.wp.com/outraspalavras.net/wp-content/uploads/2018/04/tabela-1... 1020w"
style="border:3px solid rgb(238, 238, 238);"
width="485">
A cidade dispersa resulta muito mais cara e improdutiva, pois
acarreta a elevação do custo de implantação das redes de água, esgoto,
drenagem, iluminação pública, dos serviços de coleta de lixo domiciliar, saúde,
educação, etc. Mas se muitos perdem com a extensão da ocupação urbana
rarefeita, poucos ganham e ganham muito. O rentismo imobiliário funciona como
uma espécie de ralo da riqueza social que se cola no preço das propriedades. A
burguesia brasileira parece ter migrado da atividade industrial – que cai a
partir de 1980 – para o rentismo imobiliário além do rentismo financeiro. As
formas como se deram os acordos entre proprietários de imóveis, capitais
ligados à produção do ambiente construído e investimento público chegaram a
promover aumentos de até 700% no preço de imóveis, entre 2002 e 2012, na cidade
do Rio de Janeiro (SECOVI-RIO, 2012)[2], apenas para dar um exemplo radical.
Redirecionar esse rumo tomado pelas cidades exige contrariar
interesses seculares no Brasil. A partir do final dos anos 1980, parecia que
caminhávamos nessa direção. Logramos aprovar um dos arcabouços legais que estão
entre os mais avançados do mundo com a Constituição Federal de 1988, o Estatuto
da Cidade (Lei no10.257/2001), a Lei Federal da Mobilidade Urbana (Lei nº
12.587/2012), o Estatuto da Metrópole (Lei nº 13.089/2015), entre outras. Mas
foi inútil pois, embora constando dos Planos Diretores, essa legislação não tem
sido aplicada. E mais: o Judiciário mostra desconhecê-la na maior parte dos
julgamentos. Sentenças judiciais que determinam despejos de populações
vulneráveis, como foi o caso do Pinheirinho, em São José dos Campos, e
desapropriações com remunerações milionárias, mesmo em se tratando de imóveis que
devem milhões em impostos, mostram que manter a propriedade ociosa pode
contrariar a lei (que prevê a função social da propriedade) mas é um bom
negócio.
No momento em que forças vivas da sociedade brasileira reagem
à perda de direitos sociais e agressão à soberania nacional retomando a
construção de um projeto para o país (Projeto Brasil Nação, Projeto O Brasil
que o Povo Quer, Projeto Popular para o Brasil e Plataforma Vamos) é hora de
repensar também as cidades. A defesa de algumas condições é elemento de unidade
para urbanistas do mundo todo, em que pese a diversidade das cidades e regiões.
A cidade compacta (contrária à a dispersão horizontal), a mobilidade ativa
(mais viagens a pé ou de bicicleta), o mix de usos (viabilizando a rua viva e
segura durante a noite e durante o dia) são características que devem se somar
à cidadania informada e participativa e ao combate à desigualdade de renda,
raça e gênero. Nossas cidades que têm um histórico de desigualdade social e
patrimonialismo estão bem longe dessas condições. Há muito trabalho pela
frente.
Um bom começo para a retomada de Um Projeto para as Cidades
do Brasil – BrCidades seria
ampliar as informações sobre elas. Seria importante começar, por exemplo, pelo
conhecimento dos grandes proprietários urbanos – especialmente das terras e
imóveis vazios e ociosos – a concentração das propriedades e as dívidas
em IPTU. [3]
São Paulo é uma das poucas cidades no Brasil (se não a única)
a abrir publicamente o cadastro imobiliário fiscal do IPTU, o que aconteceu
durante a gestão de Fernando Haddad, por meio da plataforma Geosampa.
Muitas e importantes informações vieram à tona.
Em maio de 2016, a Prefeitura de São Paulo
disponibilizou, através do Geosampa, a base completa do cadastro
imobiliário fiscal do IPTU do município de São Paulo inteiro, em formato
aberto. Em outras palavras, qualquer cidadão pode ter acesso aos proprietários
de todos os imóveis da cidade. Qual a importância disso?
A plataforma Geosampa, seguindo as diretrizes do Plano
Diretor , reúne mais de 150 tipos de dados georreferenciados — dentre
eles cerca de 12 mil equipamentos urbanos, consulta do Zoneamento atual e
antigos, rede de transporte público, infraestrutura urbana, mapas geotécnicos e
dados populacionais, entre outros[4].
Este cadastro tem 3,3 milhões registros imobiliários, sendo
que destes 8 mil são registrados em nome da prefeitura, governo do estado e
união.
1% dos donos de imóveis na cidade concentra 45% do valor
imobiliário de São Paulo. São R$ 749 bilhões em casas, apartamentos, terrenos e
outros bens registrados no nome de 22,4 mil proprietários – os mais ricos entre
2,2 milhões de proprietários de imóveis da capital. Em dados quantitativos,
isso representa 820 mil imóveis[5]
Os bens imobiliários desses 1% dividem-se em três grupos. O
primeiro é composto por imóveis caros em áreas ricas da cidade: quase metade
desse patrimônio está em 10 dos 96 distritos paulistanos mais valorizados:
Itaim, Jardim Paulista, Pinheiros, Santo Amaro, Moema, Vila Mariana, Morumbi,
Consolação, Bela Vista e Vila Andrade. O segundo tem galpões e outras áreas de
grande metragem em antigos bairros industriais, como Barra Funda, Brás, Lapa e
Vila Leopoldina. Por último, há vários terrenos vazios nas franjas da cidade,
em distritos como Cidade Tiradentes².
O empresário João Carlos Di Genio, fundador do Grupo Objetivo
e da Universidade Paulista (Unip), uma das maiores instituições educacionais do
país, tem mais de R$ 1 bilhão em imóveis. O segundo no ranking é o empresário
Hugo Eneas Salomone, fundador da Construtora e Imobiliária Savoy, que tem 66
anos de história e é proprietário de pelo menos 180 mil m2, dos quais 93 mil m2 no
centro da cidade. Dentre eles, o Shopping Aricanduva, Shopping Central Plaza,
Shopping Interlagos, Galeria Olido e grande parte do Conjunto Nacional.
Em terceiro lugar no ranking, está o espólio da mãe do
deputado federal Paulo Maluf (PP), ex-prefeito e ex-governador, e o
empresário Alécio Pedro Gouveia, um dos donos da rede de supermercados
Andorinha. Seus 19 imóveis valem quase R$ 450 milhões. Entre eles há terrenos e
galpões que pertenciam à Eucatex, empresa fundada por Salim Maluf, pai do
ex-prefeito[6]
O acesso aos dados permitiu também à imprensa chegar a
informações inesperadas. O desembargador José Antônio de Paula Santos Neto, com
salário de R$ 30.471,11 além de receber auxílio-moradia, tem 60 imóveis
registrados em seu nome na base do IPTU. Seu patrimônio inclui apartamentos em
bairros valorizados da capital paulista, como Bela Vista, Perdizes, Pacaembu,
Cerqueira Cesar, Higienópolis e Morumbi[7].
A questão da terra (rural e urbana) continua, há 500 anos, no
centro do conflito social no Brasil. Há muitos interesses em jogo, lobbies
fortes e bem organizados econômica e politicamente, inclusive
internacionalmente. A ONG Transparência Internacional realizou pesquisa na qual
demonstra que 3,4 mil imóveis em São Paulo avaliados em R$ 8,5 bilhões estão ou
estiveram em nome de empresas offshore registradas em países como
EUA, Panamá, Suiça, Uruguai e outros[8]. Por outro lado, existem os excluídos de
sempre, que passam horas espremidos nos transportes públicos na metrópole de
São Paulo, sacrifício que tem tudo a ver com os processos de valorização
imobiliária e segregação urbana.
O nó da terra nas cidades pode ser escancarado através de
ferramentas como o Geosampa. Ela deveria ser replicada nas cidades do país. A
Lei de Acesso à Informação (Lei
nº 12.527/2011) possibilitou a qualquer pessoa, física ou jurídica,
receber, em 20 dias, informações públicas dos órgãos da União, Estados e
Municípios, inclusive aos Tribunais de Conta e Ministério Público. A
Constituição Federal prevê a Função Social da Propriedade e a Função Social da
Cidade (art. 182 da CF de 1988). Vamos aplicar as leis. Não cabe mais
ingenuidade sobre a dimensão que assumiu esse conflito de interesses. É por aí
que poderemos retomar a luta por cidades mais justas, produtivas e sustentáveis.
Ermínia Maricato é Profa. Titular aposentada da USP. Foi
Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo (1989-1992),
Coordenadora do Curso de Pós Graduação da FAUUSP (1997-2002), Secretária
Executiva do Ministério das Cidades (2003-2005). É membro do Conselho de
Pesquisa da USP (2007-2009). Publicou, entre outros, Metrópole na periferia do
capitalismo (Hucitec, 1996) e Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana
( Vozes, 2001).
Ana Gabriela Akaishi é arquiteta e urbanista, doutoranda da
FAUUSP.
_______________________
[1]Fonte: http://files.antp.org.br/2016/9/3/sistemasinformacao-mobilidade–comparativo-2003_2014.pdf.
Acesso em: 28/03/2018
[2]Fonte: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/rio-precos-de-imoveis-aumentam-ate-700-em-dez-anos-20120420.html.
Acesso em: 04/04/2018.
[5]Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,1-dos-donos-de-imoveis-concentra-45-do-valor-imobiliario-de-sao-paulo,10000069287.
Acesso em: 28/03/2018
[6]Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,top-5-do-patrimonio-imobiliario-tem-espolios-e-empresarios,10000069289.
Acesso em: 28/03/2018
[7]Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/02/metade-dos-juizes-que-ganham-auxilio-moradia-em-sp-tem-imovel.shtml.
Acesso em: 28/03/2018
[8]Fonte: https://www.transparency.org/whatwedo/publication/sao_paulo_a_corrupcao_mora_ao_lado.
Acesso em: 04/04/2018.
____________________________
REFERÊNCIAS:
Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Sistema
de Informações da Mobilidade Urbana. Relatório Geral 2014. São Paulo, 2016.
Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Sistema
de Informações da Mobilidade Urbana. Relatório Comparativo 2003-2014. São
Paulo, 2016a.
MARICATO, E. e ROYER, L. A política urbana e de habitação. In
MARINGONI, G. e MEDEIROS, J. (orgs) Cinco mil dias- o Brasil na era do lulismo.
São Paulo/Boitempo. 2017
ONG TRANSPARENCIA INTERNACIONAL. SÃO PAULO: A CORRUPÇÃO MORA AO
LADO? Empresas offshore e o setor imobiliário na maior cidade do hemisfério
sul. São Paulo, 2017.
ROYER, Luciana de Oliveira. Financeirização da política
habitacional: limites e perspectivas. Tese de doutoramento. Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.
SECOVI-SP. Relatório Aluguel Índice do Valor Médio
Contratado. Série histórica. 2017.
SITES:
GGN