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sábado, 6 de abril de 2019

BARROSO FAZ POLÍTICA COLOCANDO SUPOSTOS ANSEIOS DA SOCIEDADE ACIMA DA CONSTITUIÇÃO, POR MARCELO SEMER

A ideologia do que se pensa que é ou deveria ser a sociedade não permite que se ultrapasse os valores que ela expressamente firmou na Constituição.
Em Revista Cult, O dono das ruas
“A legislação precisa evoluir, como a sociedade tem evoluído”.
O ministro Luís Roberto Barroso parece ter se especializado em ser uma espécie de consciência da sociedade no plenário do STF. Algo como um tradutor para o mundo dos tribunais, dos anseios mais íntimos ou das necessidades mais prementes da nação.
Ao votar pelo esvaziamento da presunção de inocência com a prisão em segunda instância, privilegiou, segundo firmou no próprio voto, “as legítimas demandas da sociedade”. “O fim da prisão em segunda instância faria o crime compensar”, disse depois em entrevista. Isso porque rever o tema serviria à impunidade que a sociedade não mais suporta…. Para decidir sobre a validade da candidatura Lula, todavia, não se preocupou em frustrar a opção de voto de quase metade dos eleitores.
Em palestras, Barroso costumava dizer que há momentos em que a sociedade está em um impasse e o arranjo institucional empaca e impede certos avanços necessários. O Judiciário, dizia o professor, pode dar um empurrãozinho.
Supondo-se que a tese fosse mesmo palatável seria o caso de se perguntar: empurrar, mas para que lado?
A frase que abre esse artigo, por exemplo, foi dita na votação da constitucionalidade da terceirização, com a qual o STF, por sete votos a quatro, sepultou um tradicional entendimento da Justiça Trabalhista no sentido de que a terceirização não valeria para atividades-fim. Uma escola, afinal, deveria ter seus próprios professores, e não contratá-los por meio de um intermediário.
Seria essa nova posição uma evolução da sociedade, que as leis devem acompanhar? Não é o que parece.
Pouco antes da aprovação da reforma, a rejeição da sociedade ao projeto era intensa, conforme concluíram os mais variados institutos de pesquisa. O Datafolha, por exemplo, fincava em mais de 60% a contrariedade com as mudanças. Trechos das respostas, ademais, mostraram que os trabalhadores tinham entendido bem o recado: para a maior parcela, ela trará menos direitos aos trabalhadores; entre os que tomaram conhecimento do assunto o pessimismo é maior (70%); e quanto aos benefícios que a reforma trabalhista irá trazer, 64% avaliaram que ela trará mais benefícios aos empresários do que para os trabalhadores.
Ninguém duvida de que esta foi uma reforma projetada pelos patrões, financiada pelos patrões e até redigida pelos patrões – as pegadas foram visíveis nas comissões do Congresso.
O objetivo era simples: desconstruir a legislação protetiva que o país edificou ao curso de muitas décadas, da criação da CLT por Getúlio Vargas às consagrações dos direitos sociais na Constituição Cidadã. Um dos poucos fragmentos, aliás, do nosso esquálido estado social que ainda estava de pé.
Para reformar as leis trabalhistas, não foram poupados esforços: seu enlace envolveu até mesmo a deposição da presidenta eleita. A reforma foi feita, assim, no único espaço em que ela seria possível, tamanha a sua impopularidade: na interinidade de um presidente que jamais submeteu o tema a seus eleitores em campanha. A ponte para o futuro que Michel Temer prometeu ao mercado – e a todos que entendem que a legislação deve evoluir, porque a sociedade evoluiu – só existiu diante da subtração eleitoral que o impeachment concretizou.
Um dos pilares desta reforma foi justamente a tese de que o negociado devia prevalecer sobre o legislado, já por si só uma antítese do sistema protetivo, preterido em face da lei do mais forte.
Acordo, consensos, união de todos em prol dos melhores objetivos para a economia e mais empregos. Pelo sim pelo não, os reformistas cuidaram criteriosamente de esvaziar o poder sindical antes que as negociações começassem. Primeiro, nos caixas, porque era absurdo que os sindicatos fossem mantidos com dinheiro dos próprios trabalhadores. Como de costume, a liberdade foi o pretexto.
E como isso ainda era pouco para quebrar a espinha dorsal dos sindicatos, veio também a terceirização, para obstar que os trabalhadores continuem se reunindo por categorias, porque, como boa mercadoria que são, estarão submetidos aos mais inusitados mercadores de mão-de-obra.
Como lembra Marcus Barberino Mendes em Terceirização: o que é, o que não é, e o que pode ser (Estúdio Editores), “é como se figuras conhecidas da época do regime econômico mercantil-escravista, como o capataz, o capitão do mato ou o comerciante ‘negreiro’, adquirissem nova roupagem no âmbito da sociedade capitalista”.
Realidade por realidade, as pesquisas também indicam, de forma consistente, que os terceirizados trabalham mais, ganham menos, se acidentam mais e ficam menos tempo nos empregos. A ministra Carmen Lúcia se apressou em dizer que, se por acaso, vier a precarização “há o Judiciário para impedir esses abusos”. Difícil crer que este discurso, proferido na mesma sessão que consagrou a terceirização ampla, geral e irrestrita, possa servir para tranquilizar qualquer trabalhador.
A questão que nos cerca, todavia, vai além da desmontagem do direito do trabalho– e, a serem cumpridas as ameaças que se propagam conjuntamente, também da Justiça do Trabalho: é compreender o que legitima a leitura evolucionista que permite que ministros do STF, Luís Roberto Barroso em especial, se entendam competentes para dar um empurrãozinho na história e como escolhem os lados desse tranco. Afinal, ouvir a voz das ruas nas matérias penais e ignorá-las nas questões eleitorais não parece propriamente ser um atributo compatível com o Estado Democrático de Direito.
Os votos que colocaram Dilma Rousseff por duas vezes na Presidência da República não eram de patrões ansiosos por fazer a legislação evoluir, tal qual seus prestimosos interesses. Foram os de trabalhadores receosos pelo extermínio de seus direitos. Não foram de empreendedores que buscam um Estado que não os atrapalhasse; mas daqueles que, como diria pejorativamente Luís Roberto Barroso, são viciados em Estado. Enfim, não foram daqueles que entoam a liberdade como trampolim para a opressão.
É estranho que esses votos tenham se transformado justamente no mecanismo que viabilizou a concretização dos mais tenebrosos pesadelos de seus eleitores.
Talvez seja o caso de aprendermos um pouco mais com os Estados Unidos, de onde importamos a tradição de o presidente da República indicar os ministros da Suprema Corte. A questão chega a ser, inclusive, tema de campanha eleitoral. Os democratas escolhem liberais; os republicanos escolhem conservadores. Quando a Corte está dividida, já se sabe para onde tenderão as questões mais candentes, de acordo com o resultado das eleições. Não é uma surpresa ou uma decepção. Os eleitores sabem com antecedência que tipo de empurrão o pode-se esperar do Judiciário.
Tanto lá como cá, os juízes são independentes, mas não neutros. Tem diferentes compreensões da sociedade e na interpretação dos textos legais repousa um inarredável componente ideológico. Todas as tentativas de manter tais diferenças submersas redundaram em alguma forma de autoritarismo e uma porção ainda maior de ideologia. Mas cabe um alerta: nem a ideologia do que se pensa que é ou deveria ser a sociedade permite que se ultrapasse os valores que ela expressamente firmou na Constituição.
Quando o juiz busca interpretar a realidade por sobre as normas constitucionais, está judicializando a política. Terceirizando, por assim dizer, o papel dos políticos, que são quem detêm legalmente essa competência.
Por exemplo, ao dizer que a sociedade não aguenta mais a impunidade e por isso deve valer a prisão automática em segunda instância – mesmo que a Constituição diga o reverso. Ou que a sociedade está evoluindo e, portanto, este deve ser o critério de interpretação da norma sobre terceirização – e não, propriamente, o fato de que ela esvazia todo o sentido protetivo da legislação trabalhista abrigada na própria Constituição.
É curioso que isto tenha se viabilizado especialmente pela judicatura de Luís Roberto Barroso, de quem gerações de estudantes e profissionais do direito aprenderam a primeira lição sobre a nova hermenêutica: a Constituição não deve ser vista apenas como um documento político e sim como um documento jurídico. Ou seja, vale o que está escrito.
Usar o álibi da voz das ruas pode ser um componente perigoso, portanto, para quem tem o compromisso de zelar pela Constituição – até porque, em certas situações, a Constituição tem a função de defender o povo de si mesmo.
Mas para além da usurpação de funções, o mecanismo traz ainda um problema de difícil resposta, que é o de saber, efetivamente, o que as ruas estão dizendo.
O brocardo italiano tradutor, traidor parece se amoldar com ainda mais precisão nestes momentos.
MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
GGN