A
ideologia do que se pensa que é ou deveria ser a sociedade não permite que se
ultrapasse os valores que ela expressamente firmou na Constituição.
Em
Revista Cult, O
dono das ruas
“A
legislação precisa evoluir, como a sociedade tem evoluído”.
O
ministro Luís Roberto Barroso parece ter se especializado em ser uma espécie de
consciência da sociedade no plenário do STF. Algo como um tradutor para o mundo
dos tribunais, dos anseios mais íntimos ou das necessidades mais prementes da
nação.
Ao
votar pelo esvaziamento da presunção de inocência com a prisão em segunda
instância, privilegiou, segundo firmou no próprio voto, “as legítimas demandas
da sociedade”. “O fim da prisão em segunda instância faria o crime compensar”,
disse depois em entrevista. Isso porque rever o tema serviria à impunidade que
a sociedade não mais suporta…. Para decidir sobre a validade
da candidatura Lula, todavia, não se preocupou em frustrar a opção de voto
de quase metade dos eleitores.
Em
palestras, Barroso costumava dizer que há momentos em que a sociedade está em
um impasse e o arranjo institucional empaca e impede certos avanços
necessários. O Judiciário,
dizia o professor, pode dar um empurrãozinho.
Supondo-se
que a tese fosse mesmo palatável seria o caso de se perguntar: empurrar, mas
para que lado?
A
frase que abre esse artigo, por exemplo, foi dita na votação da constitucionalidade
da terceirização, com a qual o STF, por sete votos a quatro, sepultou um
tradicional entendimento da Justiça Trabalhista no sentido de que a
terceirização não valeria para atividades-fim. Uma escola, afinal, deveria ter
seus próprios professores, e não contratá-los por meio de um intermediário.
Seria
essa nova posição uma evolução da sociedade, que as leis devem acompanhar? Não
é o que parece.
Pouco
antes da aprovação da reforma, a rejeição da sociedade ao projeto era intensa,
conforme concluíram os mais variados institutos de pesquisa. O Datafolha, por
exemplo, fincava
em mais de 60% a contrariedade com as mudanças. Trechos das respostas,
ademais, mostraram que os trabalhadores tinham entendido bem o recado: para a
maior parcela, ela trará menos direitos aos trabalhadores; entre os que tomaram
conhecimento do assunto o pessimismo é maior (70%); e quanto aos benefícios que
a reforma trabalhista irá trazer, 64% avaliaram que ela trará mais benefícios
aos empresários do que para os trabalhadores.
Ninguém
duvida de que esta foi uma reforma projetada pelos patrões, financiada pelos
patrões e até redigida pelos patrões – as pegadas foram visíveis nas comissões
do Congresso.
O
objetivo era simples: desconstruir a legislação protetiva que o país edificou
ao curso de muitas décadas, da criação da CLT por Getúlio Vargas às consagrações
dos direitos sociais na Constituição Cidadã. Um dos poucos fragmentos, aliás,
do nosso esquálido estado social que ainda estava de pé.
Para
reformar as leis trabalhistas, não foram poupados esforços: seu enlace envolveu
até mesmo a deposição da
presidenta eleita. A reforma foi feita, assim, no único espaço em que ela
seria possível, tamanha a sua impopularidade: na interinidade de um presidente
que jamais submeteu o tema a seus eleitores em campanha. A ponte para o futuro
que Michel Temer prometeu ao mercado – e a todos que entendem que a legislação
deve evoluir, porque a sociedade evoluiu – só existiu diante da subtração
eleitoral que o impeachment concretizou.
Um
dos pilares desta reforma foi justamente a tese de que o negociado devia
prevalecer sobre o legislado, já por si só uma antítese do sistema protetivo,
preterido em face da lei do mais forte.
Acordo,
consensos, união de todos em prol dos melhores objetivos para a economia e mais
empregos. Pelo sim pelo não, os reformistas cuidaram criteriosamente de
esvaziar o poder sindical antes que as negociações começassem. Primeiro, nos caixas,
porque era absurdo que os sindicatos fossem mantidos com dinheiro dos próprios
trabalhadores. Como de costume, a liberdade foi o pretexto.
E
como isso ainda era pouco para quebrar a espinha dorsal dos sindicatos, veio
também a terceirização, para obstar que os trabalhadores continuem se reunindo
por categorias, porque, como boa mercadoria que são, estarão submetidos aos
mais inusitados mercadores de mão-de-obra.
Como
lembra Marcus Barberino Mendes em Terceirização: o que é, o que não é, e o
que pode ser (Estúdio Editores), “é como se figuras conhecidas da época do
regime econômico mercantil-escravista, como o capataz, o capitão do mato ou o
comerciante ‘negreiro’, adquirissem nova roupagem no âmbito da sociedade
capitalista”.
Realidade
por realidade, as pesquisas também indicam, de forma consistente, que os
terceirizados trabalham mais, ganham menos, se acidentam mais e ficam menos
tempo nos empregos. A ministra Carmen Lúcia se apressou em dizer que, se por
acaso, vier a precarização “há o Judiciário para impedir esses abusos”. Difícil
crer que este discurso, proferido na mesma sessão que consagrou a terceirização
ampla, geral e irrestrita, possa servir para tranquilizar qualquer trabalhador.
A
questão que nos cerca, todavia, vai além da desmontagem
do direito do trabalho– e, a serem cumpridas as ameaças que se propagam
conjuntamente, também da Justiça do Trabalho: é compreender o que legitima a
leitura evolucionista que permite que ministros do STF, Luís Roberto
Barroso em especial, se entendam competentes para dar um empurrãozinho na
história e como escolhem os lados desse tranco. Afinal, ouvir a voz das ruas
nas matérias penais e ignorá-las nas questões eleitorais não parece
propriamente ser um atributo compatível com o Estado Democrático de Direito.
Os
votos que colocaram Dilma Rousseff por duas vezes na Presidência da República
não eram de patrões ansiosos por fazer a legislação evoluir, tal qual seus
prestimosos interesses. Foram os de trabalhadores receosos pelo extermínio de
seus direitos. Não foram de empreendedores que buscam um Estado que não os
atrapalhasse; mas daqueles que, como diria pejorativamente Luís Roberto
Barroso, são viciados em Estado. Enfim, não foram daqueles que entoam a
liberdade como trampolim para a opressão.
É
estranho que esses votos tenham se transformado justamente no mecanismo que
viabilizou a concretização dos mais tenebrosos pesadelos de seus eleitores.
Talvez
seja o caso de aprendermos um pouco mais com os Estados Unidos, de onde
importamos a tradição de o presidente da República indicar os ministros da
Suprema Corte. A questão chega a ser, inclusive, tema de campanha eleitoral. Os
democratas escolhem liberais; os republicanos escolhem conservadores. Quando a
Corte está dividida, já se sabe para onde tenderão as questões mais candentes,
de acordo com o resultado das eleições. Não é uma surpresa ou uma decepção. Os
eleitores sabem com antecedência que
tipo de empurrão o pode-se esperar do Judiciário.
Tanto
lá como cá, os juízes são independentes, mas não neutros. Tem diferentes
compreensões da sociedade e na interpretação dos textos legais repousa um
inarredável componente ideológico. Todas as tentativas de manter tais
diferenças submersas redundaram em alguma forma de autoritarismo e uma porção
ainda maior de ideologia. Mas cabe um alerta: nem a ideologia do que se pensa
que é ou deveria ser a sociedade permite que se ultrapasse os valores que ela
expressamente firmou na Constituição.
Quando
o juiz busca interpretar a realidade por sobre as normas constitucionais, está
judicializando a política. Terceirizando, por assim dizer, o papel dos
políticos, que são quem detêm legalmente essa competência.
Por
exemplo, ao dizer que a sociedade não aguenta mais a impunidade e por isso deve
valer a prisão automática em segunda instância – mesmo que a Constituição diga
o reverso. Ou que a sociedade está evoluindo e, portanto, este deve ser o
critério de interpretação da norma sobre terceirização – e não, propriamente, o
fato de que ela esvazia todo o sentido protetivo da legislação trabalhista
abrigada na própria Constituição.
É
curioso que isto tenha se viabilizado especialmente pela judicatura de Luís
Roberto Barroso, de quem gerações de estudantes e profissionais do direito
aprenderam a primeira lição sobre a nova hermenêutica: a Constituição não deve
ser vista apenas como um documento político e sim como um documento jurídico.
Ou seja, vale o que está escrito.
Usar
o álibi da voz das ruas pode ser um componente perigoso, portanto, para quem
tem o compromisso de zelar pela Constituição – até porque, em certas situações,
a Constituição tem a função de defender o povo de si mesmo.
Mas
para além da usurpação de funções, o mecanismo traz ainda um problema de
difícil resposta, que é o de saber, efetivamente, o que as ruas estão dizendo.
O
brocardo italiano tradutor, traidor parece se amoldar com ainda mais
precisão nestes momentos.
MARCELO
SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, é
também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
GGN