Os extratos
médios, diz o sociólogo, defendem de forma acrítica os interesses dos donos do
poder e perpetuam uma sociedade cruel forjada na escravidão.
Paulo
Pinto/Fotos Públicas
Inocentes
úteis? Ou só úteis?
Em agosto, o
sociólogo Jessé Souza lança novo
livro, A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato. De certa forma,
a obra compõe uma trilogia, ao lado de A Tolice da Inteligência
Brasileira, de 2015, e de A Ralé Brasileira, de 2009, um esforço de
repensar a formação do País.
Neste novo
estudo, o ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada aprofunda
sua crítica à tese do patrimonialismo como origem de nossas mazelas e localiza
na escravidão os genes de uma sociedade “sem
culpa e remorso, que humilha e mata os pobres”. A mídia, a Justiça e a
intelectualidade, de maneira quase unânime, afirma Souza na entrevista a
seguir, estão a serviço dos donos do poder e se irmanam no objetivo de manter o
povo em um estado permanente de letargia. A classe média, acrescenta, não
percebe como é usada. “É feita de imbecil” pela elite.
CartaCapital: O impeachment de Dilma Rousseff, afirma o
senhor, foi mais uma prova do pacto antipopular histórico que vigora no Brasil.
Pode explicar?
Jessé
Souza: A construção desse pacto se dá logo a partir da libertação dos escravos, em 1888. A uma ínfima
elite econômica se une uma classe, que podemos chamar de média, detentora do
conhecimento tido como legítimo e prestigioso. Ela também compõe a casta de
privilegiados. São juízes, jornalistas, professores universitários. O capital
econômico e o cultural serão as forças de reprodução do sistema no Brasil.
Em outra
ponta, temos uma classe trabalhadora precarizada, próxima dos herdeiros da
escravidão, secularmente abandonados. Eles se reproduzem aos trancos e
barrancos, formam uma espécie de família desestruturada, sem acesso à educação
formal. É majoritariamente negra, mas não só. Aos negros libertos juntaram-se,
mais tarde, os migrantes nordestinos. Essa classe desprotegida herda o ódio e o
desprezo antes destinados aos escravos. E pode ser identificada pela carência
de acesso a serviços e direitos. Sua função na sociedade é vender a energia
muscular, como animais. É ao mesmo tempo explorada e odiada.
CC: A sociedade brasileira foi
forjada à sombra da escravidão, é isso?
JS: Exatamente. Muito se fala sobre a escravidão e
pouco se reflete a respeito. A escravidão é tratada como um “nome” e não como
um “conceito científico” que cria relações sociais muito específicas.
Atribuiu-se muitas de nossas características à dita herança portuguesa, mas não
havia escravidão em Portugal.
Somos, nós
brasileiros, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família
específico, uma Justiça específica, uma economia específica. Aqui
valia tomar a terra dos outros à força, para acumular capital, como
acontece até hoje, e humilhar e condenar os mais frágeis ao abandono e à
humilhação cotidiana.
CC: Um modelo que se perpetua,
anota o senhor no novo livro.
JS: Sim. Como essa herança nunca foi refletida e
criticada, continua sob outras máscaras. O ódio aos pobres é tão intenso que
qualquer melhora na miséria gera reação violenta, apoiada pela mídia. E o tipo
de rapina econômica de curto prazo que também reflete o mesmo padrão do
escravismo.
CC: Como isso influencia a
interpretação do Brasil?
JS: A recusa em confrontar o passado escravista gera
uma incompreensão sobre o Brasil moderno. Incluo no problema de interpretação
da realidade a tese do patrimonialismo, que tanto a direita quanto a esquerda,
colonizada intelectualmente pela direita, adoram. O conceito de patrimonialismo serve para encobrir os
interesses organizados no chamado mercado. Estigmatiza a política e o Estado,
os “corruptos”, e estimula em contraponto a ideia de que o mercado é um poço de
virtudes.
"O ódio aos pobres é
intenso"
CC: O moralismo seletivo de
certos setores não exprime mais um ódio de classe do que a aversão à corrupção?
JS: Sim. Uma parte privilegiada da sociedade passou
a se sentir ameaçada pela pequena ascensão econômica desses grupos
historicamente abandonados. Esse sentimento se expressava na irritação com a
presença de pobres em shopping centers e nos aeroportos, que, segundo essa elite,
tinham se tornado rodoviárias.
A irritação
aumentou quando os pobres passaram a frequentar as universidades.
Por quê? A partir desse momento, investiu-se
contra uma das bases do poder de uma das alas que compõem o pacto antipopular,
o acesso privilegiado, quase exclusivo, ao conhecimento formal considerado
legítimo. Esse incômodo, até pouco tempo atrás, só podia ser compartilhado em
uma roda de amigos. Não era de bom tom criticar a melhora de vida dos mais
pobres.
"O ódio aos pobres é
intenso"
CC: Como o moralismo entra em
cena?
JS: O moralismo seletivo tem servido para atingir
os principais agentes dessa pequena ascensão social, Lula e o PT. São o alvo da ira em um sistema
político montado para ser corrompido, não por indivíduos, mas pelo mercado. São
os grandes oligopólios e o sistema financeiro que mandam no País e que promovem
a verdadeira corrupção, quantitativamente muito maior do que essa merreca
exposta pela Lava Jato. O procurador-geral, Rodrigo Janot, comemora a devolução de 1 bilhão de
reais aos cofres públicos com a operação. Só em juros e isenções fiscais o
Brasil perde mil vezes mais.
Souza: novo
livro em agosto (Foto: Filipe Vianna)
CC: Esse pacto antipopular pode
ser rompido? O fato de os antigos representantes políticos dessa elite terem se
tornado alvo da Lava Jato não fragiliza essa relação, ao menos
neste momento?
JS: Sem um pensamento articulado e novo, não. A
única saída seria explicitar o papel da elite, que prospera no saque, na
rapina. A classe média é feita de imbecil. Existe uma elite que a explora.
Basta se pensar no custo da saúde pública. Por que é tão cara? Porque o sistema
financeiro se apropriou dela. O custo da escola privada, da alimentação. A
classe média está com a corda no pescoço, pois sustenta uma ínfima minoria de
privilegiados, que enforca todo o resto da sociedade. A base da corrupção é uma
elite econômica que compra a mídia, a Justiça, a política, e mantém o povo em
um estado permanente de imbecilidade.
CC: Qual a diferença entre a
escravidão no Brasil e nos Estados Unidos?
JS: Não há tanta diferença. Nos Estados Unidos, a
parte não escravocrata dominou a porção escravocrata. No Brasil, isso jamais
aconteceu. Ou seja, aqui é ainda pior. Os Estados Unidos não são, porém,
exemplares. Por conta da escravidão, são extremamente desiguais e violentos. Em
países de passado escravocrata, não se vê a prática da cidadania. Um pensador
importante, Norbert Elias, explica a civilização europeia a partir da ruptura
com a escravidão. É simples. Sem que se considere o outro humano, não se
carrega culpa ou remorso. No Brasil atual prospera uma sociedade sem culpa e
sem remorso, que humilha e mata os pobres.
CC: Algum dia a sociedade
brasileira terá consciência das profundas desigualdades e suas consequências?
JS: Acho difícil. Com a mídia que temos, desregulada
e a serviço do dinheiro, e a falta de um padrão de comparação para quem recebe
as notícias, fica muito complicado. É ridícula a nossa televisão. Aqui você tem
programas de debates com convidados que falam a mesma coisa. Isso não existe em
nenhum país minimamente civilizado. É difícil criar um processo de aprendizado.
CC: O senhor acredita em
eleições em 2018?
JS: Com a nossa elite, a nossa mídia, a nossa
Justiça, tudo é possível. O principal fator de coesão da elite é o ódio aos
pobres. Os políticos, por sua vez, viraram símbolo da rapinagem. Eles roubam
mesmo, ao menos em grande parte, mas, em analogia com o narcotráfico, não
passam de “aviõezinhos”. Os donos da boca de fumo são o sistema financeiro e os
oligopólios. São estes que assaltam o País em grandes proporções. E somos cegos
em relação a esse aspecto. A privatização do Estado é montada por esses grandes
grupos. Não conseguimos perceber a atuação do chamado mercado. Fomos
imbecilizados por essa mídia, que é paga pelos agentes desse mercado. Somos
induzidos a acreditar que o poder público só se contrapõe aos indivíduos e não
a esses interesses corporativos organizados. O poder real consegue ficar
invisível no País.
CC: O quanto as manifestações de
junho de 2013, iniciadas com os protestos contra o reajuste das tarifas de
ônibus em São Paulo, criaram o ambiente para a atual crise política?
JS: Desde o início aquelas manifestações me
pareceram suspeitas. Quem estava nas ruas não era o povo, era gente que
sistematicamente votava contra o projeto do PT, contra a inclusão social.
Comandada pela Rede Globo, a mídia logrou construir uma espécie de soberania
virtual. Não existe alternativa à soberania popular. Só ela serve como base de
qualquer poder legítimo. Essa mídia venal, que nunca foi emancipadora, montou
um teatro, uma farsa de proporções gigantescas, em torno dessa soberania
virtual.
CC: Mas aquelas manifestações
foram iniciadas por um grupo supostamente ligado a ideias progressistas...
JS: Só no início. A mídia, especialmente a Rede
Globo, se sentiu ameaçada no começo daqueles protestos. E qual foi a reação? Os
meios de comunicação chamaram o seu povo para as ruas. Assistimos ao retorno da
família, propriedade e tradição. Os mesmos “valores” que justificaram as
passeatas a favor do golpe nos anos 60, empunhados pelos mesmos grupos que
antes hostilizavam Getúlio Vargas. Esse pacto antipopular sempre buscou tornar
suspeito qualquer representante das classes populares que pudesse ser levado
pelo voto ao comando do Estado. Não por acaso, todos os líderes populares que
chegaram ao poder foram destituídos por meio de golpes.
Da Carta
Capital