Quem conhece a denúncia que a lava jato apresentou contra
Lula no caso triplex terá a dimensão exata do impacto da seguinte frase: a ação
da Promotoria de São Paulo sobre o suposto enriquecimento ilícito e improbidade
administrativa de Fernando Haddad consegue ser pior do que a obra de Curitiba,
com enredo e acervo probatório ainda mais precários. A equipe de Deltan
Dallagnol não só fez escola como foi superada, em termos de esquizofrenia, pelo
que fez o Ministério Público do Estado em relação a Haddad.
A íntegra da denúncia, a qual a reportagem do GGN teve
acesso, nesta terça (28), tem 177 páginas. Em relação ao ex-prefeito, não é
exagero dizer que é um amontoado de delações premiadas, matérias de jornais e
impressões do promotor Wilson Tafner, que tem uma teoria bem simples: é
"óbvio" que Haddad replicou em São Paulo, com a UTC, o mesmo que o PT
fez nos governos Lula e Dilma, com as empreiteiras contratadas pela
Petrobras.
"Óbvio – e assim deixou muito claro Ricardo Pessoa
em seus vários termos de colaboração e em suas declarações – havia um
interesse econômico enorme daquele grupo empresarial [UTC] em estender a
mesma teia de atuação sobre o governo da CIDADE DE SÃO PAULO, a qual, em
termos de grandes obras de engenharia, só perde para a União e para o
próprio Estado de São Paulo."
Só que (desafiando um pouco a lógica) aqui Haddad teria
"beneficiado" a UTC com contratos que somam mais de meio BILHÃO de
reais, em troca de (1): uma suposta (o delator não lembra o valor exato) doação
eleitoral de R$ 1 milhão na campanha de 2012 (o promotor chama de "doação
polpuda"), mais (2) o pagamento (quem recebeu o dinheiro nega relação com
dívidas remanescentes da campanha de Haddad) de R$ 2,6 milhões para uma
gráfica.
Os delatores não especificaram contratos ou obras que tenham
sido "fraudados" nos moldes da Lava Jato. Disseram que doavam ao PT
de Haddad "com o intuito de 'abrir portas'" e sinalizaram que tinham
interesse na continuação de um projeto licitado por Kassab. Pelas mesmas
delações, Haddad também nunca prometeu nada à UTC. É a Promotoria que faz o
exercício de buscar na imprensa iniciativas que ocorreram após o início da
gestão petista no Paço, só para citá-las na acusação como se fossem as
consequências práticas de dois encontros que Haddad teve com Pessoa (um quando
ele era candidato e, outro, nos primeiros meses como prefeito).
Até aqui, já saltam aos olhos duas questões:
A primeira é que não há uma linha clara entre o que é real e
o que não é. O promotor mistura, sem nenhuma cerimônia, o que está em seu
imaginário - especialmente suas impressões sobre o esquema de corrupção do PT
junto às empreiteiras, a partir do que aconteceu na Lava Jato - com cenas
factuais, que ele narra quase que exclusivamente a partir de acordos de
colaboração firmados entre 2 delatores da UTC junto à Procuradoria Geral da
República, em 2015. O que se vê majoritariamente é a repetição do uso
exacerbado de delações para construir uma tese acusatória.
O segundo problema é que boa parte do que se diz contra
Haddad - o pagamento, pela UTC, de uma dívida do PT, de R$ 2,6 milhões, junto a
uma gráfica que teria trabalhado na campanha do ex-prefeito - já está em
apuração na Justiça Eleitoral. Reclicar imputações, em tese, é uma prática
barrada nos tribunais, justamente para evitar que um mesmo réu seja julgado
pelos mesmos fatos de maneiras distintas.
Não é só no mérito que a denúncia é requentada. A tática
empregada em sua construção foi claramente emprestada da Lava Jato e, no caso
de Lula, ratificada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região na figura do
desembargador Victor Laus. Durante o julgamento do triplex, o magistrado
indicou - memoravelmente - que as delações, sozinhas, não valeriam nada, mas
somadas umas às outras viram uma "colcha de retalhos". São como
pequenos blocos de concreto que formam uma parede - e isso aparentemente basta
aos olhos de alguns juízes.
De maneira sutil, aliás, o MP-SP às vezes parece querer
provar a denúncia contra Haddad com a própria Lava Jato. Trata como irrefutável
que há "um círculo vicioso de dinheiro espúrio que alimentava campanhas
eleitorais para, eleitos os financiados pelas empreiteiras, devolverem o
investimento em suas campanhas através de contratos bilionários (...)." É
neste contexto que a UTC teria exergado a "potencialidade do
candidato" Haddad e usado, para fazer os pagamentos solicitados por Vaccari,
o conhecido esquema de lavagem com Alberto Youssef e outros operadores.
Talvez o exemplo mais intrigante (para dizer o mínimo) de
como o MP-SP tenta provar seu ponto de vista seja o que ganha força a partir da
página 97, quando o promotor repisa a ideia de dolo por parte de Haddad
afirmando categoricamente que o ex-prefeito sabia que tinha uma dívida de R$ 3
milhões com uma gráfica e que Vaccari pediria recursos a UTC para quitá-la.
Como prova, o promotor usou o depoimento de Haddad à Polícia Federal, no qual o
petista diz que tinha reuniões semanais com seu tesoureiro de campanha para
"tomar conhecimento das receitas e despesas que eram realizadas".
Na visão da Promotoria, se (1) Haddad tinha reuniões semanais
com o tesoureiro e (2) sabia que, em 2012, a UTC fez doação para sua campanha,
então é "óbvio que sabia dos serviços gráficos que eram realizados,
declarados ou não!"
A palavra "óbvio", ao final, é tão recorrente na
peça quanto o desprendimento de provas que não sejam delações.
Ainda na tentativa de provar o dolo de Haddad, o MP-SP
continuou (a despeito da desconexão entre fatos) com sua narrativa da seguinte
forma: o ex-prefeito tanto sabia que tinha despesas de campanha a pagar que, em
2016 (ou seja, 3 anos depois da história da gráfica, que é o objeto da ação!),
Haddad fez pessoalmente, nas redes sociais, uma vaquinha para levantar os
recursos que faltavam.
A Promotoria usa o vídeo de Haddad e matéria de um site de
notícias sobre a arrecadação como uma das "provas incontestes" de que
o petista conhecia a fundo a natureza de suas dívidas e sabia que elas não mais
seriam pagas com os esquemas de corrupção. Por que mais Haddad lançaria mão da
vaquinha se não fosse porque a Lava Jato "fechou a torneira" dos
recursos espúrios ao PT?
Outro fato que chama atenção é o incômodo do autor com a
candidatura de Haddad a vice-presidente na chapa de Lula. Ele deixa isso
evidente em ao menos duas passagens:
Na página 107, jogando as delações da Lava Jato em cima de
Haddad:
"(...) mesmo ante as delações dos dirigentes da
UTC/CONSTRAN, da ODEBRECHT, dos marqueteiros Monica Moura e João Santana sobre
como foi feito o financiamento e pagamento de suas dívidas de campanha
anterior, novamente, sai como candidato para o mais elevado cargo
executivo da nação."
E na página 139:
"HADDAD conhece muito bem os meandros do poder e 'como o
jogo era jogado'. Certamente, não por sua ingenuidade e não por sua
insciência do jogo político que o cerca, que novamente é escolhido como
candidato do Partido na chapa ao cargo mais elevado do país!"
O PT, em nota à imprensa, tratou o caso como uma espécie de
operação boca-de-urna, apresentado com o objeto de desgastar a imagem de Haddad
no meio do período eleitoral, e prometeu acionar o promotor responsável pela
ação no Conselho Nacional do Ministério Público.
Ao GGN, a assessoria do MP-SP informou, na manhã desta
terça (28), que a Promotoria não falará sobre o processo. A reportagem havia
questionado quando o inquérito ou outro procedimento prévio à representação
contra Haddad fora instaurado. Pelo que se depreende da acusação, a Promotoria
usou o mesmo inquérito que deu origem à ação por caixa 2 que tramita em
tribunal eleitoral. Além disso, chamou os delatores da UTC para reafirmar os
termos do acordo com a PGR no dia 9 deste mês. Menos de 20 dias depois, as 177
páginas foram encaminhadas à Justiça. O MP-SP valorou a ação em quase R$ 15
milhões.
O processo pode ser consultado sob o número
10421378820188260053.
Do GGN