O texto de Pablo Ortellado publicado na Folha de S. Paulo no
último sábado busca desvendar a “narrativa” do golpe, pela qual o PT teria
cooptado a militância de esquerda em defesa do legado lulista. Por esta
“narrativa”, segundo Ortellado, se tenta “interpretar todo o processo político
recente como uma orquestração conservadora contra os avanços sociais dos
governos de esquerda”.
O álibi de Ortellado é a crítica ao programa apresentado
nesta semana, “gasto e limitado (…) muito aquém da urgência social imposta pela
desigualdade brasileira”, “muito parecido com o que praticou (o PT) nos anos
2000
No texto, nenhuma palavra sobre o conteúdo do programa do PT.
Nada sobre a necessidade expressa de um programa emergencial para sairmos da
crise econômica e voltarmos a buscar o pleno emprego. Nada sobre a reforma
tributária com olhos para justiça social e distribuição de renda e riqueza.
Nada sobre a necessidade de se aumentar o crédito barato às famílias. Nada sobre
o resgate da soberania nacional e uma política externa altiva e ativa. Nada
sobre a democratização dos meios de comunicação de massa. Nada sobre o combate
aos privilégios. Nada sobre a necessidade de um processo Constituinte que possa
fazer o Brasil avançar, não andar para trás. Nada, enfim, sobre a revogação das
medidas do governo golpista.
A narrativa de Ortellado não faz concessões à disputa
política a sangue quente. Sua racionalidade é plana, cartesiana, pretensamente
ingênua em sua busca da verdade e denúncia de “narrativas” enganadoras e que
falseiam os fatos.
A Lava Jato apenas teria cumprido seu papel de desvelar a
corrupção na Petrobrás, e não se transformara em um instrumento de perseguição
política com suas suspeitas delações e sua heterodoxia judicial.
Dilma teria sofrido um impeachment por ter um “movimento de
massas” em seu encalço, como se as massas trajadas com as caras camisas da CBF
fossem justiceiras com todos os corruptos, de maneira apartidária e apolítica.
Dilma teria perdido o controle do Congresso por pura
incapacidade política, sem que haja uma única frase que considere as
circunstâncias do processo político no Congresso pós 2013 e sobretudo em 2015,
com a eleição de Eduardo Cunha. Como se Dilma pudesse ter “cooptado” o Congresso,
assim como Ortellado acusa o PT de o fazer com a militância de esquerda.
É como se o PT jogasse sozinho. Como se não houvessem outros
atores no jogo. Como se estes agentes não percebessem a janela de oportunidade
aberta - a real fraqueza política do governo em 2015 - e provocassem o golpe.
Como se Aécio e o PSDB não tivessem atuado, desde as primeiras horas após a
derrota eleitoral para vencer no tapetão. Como se Temer e Jucá não tivessem
atuado deliberadamente pela solução golpista.
A narrativa do “combate à corrupção” tem sido utilizada pelos
adversários políticos do PT para dizima-lo e mesmo que diversas figuras
públicas petistas tenham reconhecido que, sim, houve erro e má conduta com o
dinheiro público nos governos petistas, permanece a sanha por vincular
corrupção ao petismo. Essa é a “narrativa”, caro Pablo, que venceu até
aqui.
A ação desencadeada pelo PT em meio ao golpe foi e é uma
estratégia política de sobrevivência em um meio e uma conjuntura absolutamente
hostil. Se não houvesse algum fundamento na “narrativa” petista, Lula não seria
campeão de intenções de voto e com risco a vencer as eleições no primeiro
turno.
Os limites, os equívocos e as vitórias do petismo ao longo
dos governos Lula e Dilma se devem ao próprio petismo, mas não só. Devem-se
também ao modo como funcionam as instituições políticas do país e ao modo como
reagiram seus adversários e seus aliados de ocasião, algo próprio do mundo da
política realmente existente.
Ortellado expressa uma visão que faz a crítica da “narrativa”
petista sem que se pesem os retrocessos ocorridos após a destituição de Dilma.
Hoje, os grupos que mandam no país não mais têm que lidar com o PT à frente do
poder executivo federal. Pode ser pouco para Ortellado, que elabora sua crítica
sob o manto de um pseudo-descortinamento da realidade que não considera os
percalços e aprendizados do experimentar a política. Mas o povo pé-no-chão que
quer Lula e o PT de novo no poder sabe muito bem o que está em jogo nestas
eleições.
Wagner Romão é professor de ciência política da Unicamp
Do GGN