O
portal Jornalistas Livres publicou nesta quarta (22), com exclusividade,
reportagem que denota que o juiz Sergio Moro, que cuida da Lava Jato em
Curitiba (PR), teria atropelado as leis brasileiras para ajudar os Estados
Unidos numa investigação sobre evasão de divisas, em 2007.
De
acordo com a reportagem, as autoridades estadunidenses atuaram com ajuda da
Polícia Federal e conseguiram de Moro autorização para criar um CPF e uma conta
bancária falsos para um agente infiltrado. Esse agente dos EUA teria provocado
um brasileiro no exterior a enviar dinheiro para a conta falsa, numa operação
ilegal.
No
ordenamento jurídico brasileiro, segundo o portal, não é permitido a figura de
um agente provocador de crimes. Além disso, Moro não teria dado ciência ao
Ministério da Justiça, nem ao Ministério Público Federal, do pedido feito pelas
autoridades dos EUA.
Procurador
pela assessoria de imprensa da Justiça Federal do Paraná, Moro ainda não se
manifestou.
O
Juiz Sérgio Moro determinou em 2007 a criação de RG e CPF falsos e a abertura
de uma conta bancária secreta para uso de um agente policial norte-americano,
em investigação conjunta com a Polícia Federal do Brasil. No decorrer da
operação, um brasileiro investigado nos EUA chegou a fazer uma remessa ilegal
de US$ 100 mil para a conta falsa aberta no Banco do Brasil, induzido pelo
agente estrangeiro infiltrado.
Na
manhã da última terça-feira (20), os Jornalistas Livres questionaram o juiz
paranaense sobre o assunto, por meio da assessoria de imprensa da Justiça
Federal, que afirmou não ter tempo hábil para levantar as informações antes da
publicação desta reportagem (leia mais abaixo).
Todas
essas informações constam nos autos do processo nº. 2007.70.00.011914-0 – a que
os Jornalistas Livres tiveram acesso – e que correu sob a fiscalização do
Tribunal Regional Federal da 4ª Região até 2008, quando a competência da
investigação foi transferida para a PF no Rio de Janeiro.
Especialistas
em Direito Penal apontam ilegalidade na ação determinada pelo juiz paranaense,
uma vez que a lei brasileira não permite que autoridades policiais provoquem ou
incorram em crimes, mesmo que seja com o intuito de desvendar um ilícito maior.
Além disso, Moro não buscou autorização ou mesmo deu conhecimento ao Ministério
da Justiça da operação que julgava, conforme deveria ter feito, segundo a lei.
ENTENDA O CASO
Em
março de 2007, a Polícia Federal no Paraná recebeu da Embaixada dos Estados
Unidos um ofício informando que as autoridades do Estado da Geórgia estavam
investigando um cidadão brasileiro pela prática de remessas ilícitas de
dinheiro de lá para o Brasil. Na mesma correspondência, foi proposta uma
investigação conjunta entre os países.
Dois
meses depois, a PF solicitou uma “autorização judicial para ação controlada”
junto à 2ª Vara Federal de Curitiba, então presidida pelo juiz Sérgio Moro,
para realizar uma operação conjunta com autoridades policiais norte-americanas.
O pedido era para que se criasse um CPF (Cadastro de Pessoa Física) falso e uma
conta-corrente a ele vinculada no Brasil, a fim de que policiais
norte-americanos induzissem um suspeito a remeter ilegalmente US$ 100 mil para
o país. O objetivo da ação era rastrear os caminhos e as contas por onde
passaria a quantia. A solicitação foi integralmente deferida pelo juiz Moro,
que não deu ciência prévia ao Ministério Público Federal da operação que
autorizava, como determina a lei:
“Defiro
o requerido pela autoridade policial, autorizando a realização da operação
conjunta disfarçada e de todos os atos necessários para a sua efetivação no
Brasil, a fim de revelar inteiramente as contas para remeter informalmente dinheiro
dos Estados Unidos para o Brasil. A autorização inclui, se for o caso e segundo
o planejamento a ser traçado entre as autoridades policiais, a utilização de
agentes ou pessoas disfarçadas também no Brasil, a abertura de contas correntes
no Brasil em nome delas ou de identidades a serem criadas.”
No
mesmo despacho, Moro determinou que não configuraria crime de falsidade
ideológica a criação e o fornecimento de documentação falsa aos agentes
estrangeiros: “Caso se culmine por abrir contas em nome de pessoas não
existentes e para tanto por fornecer dados falsos a agentes bancários, que as
autoridades policiais não incorrem na prática de crimes, inclusive de falso,
pois, um, agem com autorização judicial e, dois, não agem com dolo de cometer
crimes, mas com dolo de realizar o necessário para a operação disfarçada e, com
isso, combater crimes.”
Depois
disso, foram feitas outras quatro solicitações da PF ao juiz Moro, todas
deferidas pelo magistrado sem consulta prévia à Procuradoria Federal. Atendendo
aos pedidos, o juiz solicitou a criação do CPF falso para a Receita Federal:
“Ilmo. Sr. Secretário da Receita
Federal,
A
fim de viabilizar investigação sigilosa em curso nesta Vara e realizada pela
Polícia Federal, vimos solicitar a criação de um CPF em nome da pessoa fictícia
Carlos Augusto Geronasso, filho de Antonieta de Fátima Geronasso, residente à
Rua Padre Antônio Simeão Neto, nº 1.704, bairro Cabral, em Curitiba/PR”.
Além
disso, o magistrado solicitou a abertura de uma conta no Banco do Brasil, com a
orientação de que os órgãos financeiros fiscalizadores não fossem informados de
qualquer operação suspeita:
“Ilmo. Sr. Gerente, [do Banco do
Brasil].
A
fim de viabilizar investigação sigilosa em curso nesta Vara e realizada pela
Polícia Federal, vimos determinar a abertura de conta corrente em nome de
(identidade falsa).
(…)
De forma semelhante, não deverá ser comunicada ao COAF ou ao Bacen qualquer operação
suspeita envolvendo a referida conta”.
Criados
o CPF e a conta bancária, as autoridades norte-americanas realizaram a
operação. Dirigiram-se ao suspeito e, fingindo serem clientes, entregaram-lhe a
quantia, solicitando que fosse ilegalmente transferida para a conta fictícia no
Brasil.
Feita
a transferência, o caminho do dinheiro enviado à conta falsa foi rastreado,
chegando-se a uma empresa com sede no Rio de Janeiro. Sua quebra de sigilo foi
prontamente solicitada e deferida. Como a empresa era de outro Estado, a
investigação saiu da competência de Moro e do TRF-4, sendo transferida para o
Rio.
LEI AMERICANA APLICADA NO BRASIL
A
ação que Moro permitiu é prevista pela legislação norte-americana, trata-se da
figura do agente provocador: o policial que instiga um suspeito a cometer um
delito, a fim de elucidar ilícitos maiores praticados por quadrilhas ou bandos
criminosos.
No
caso em questão, o agente norte-americano, munido de uma conta falsa no Brasil,
induziu o investigado nos EUA a cometer uma operação de câmbio irregular (envio
de remessa de divisas ao Brasil sem pagamento dos devidos tributos).
Ocorre,
porém, que o Direito brasileiro não permite que um agente do Estado promova a
prática de um crime, mesmo que seja para elucidar outros maiores. A Súmula 145
do STF é taxativa sobre o assunto:
“Não
há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua
consumação.”
Ou
seja, quando aquele que tenta praticar um delito não tem a chance de se
locupletar por seus atos, caindo apenas em uma armadilha da polícia, o crime
não se consuma.
É
o que explica o advogado criminalista André Lozano Andrade: o agente infiltrado
não deve ser um agente provocador do crime, ou seja, não pode incentivar outros
a cometer crimes. “Ao procurar uma pessoa para fazer o ingresso de dinheiro de
forma irregular no Brasil, o agente está provocando um crime. É muito parecido
com o que ocorre com o flagrante preparado (expressamente ilegal), em que
agentes estatais preparam uma cena para induzir uma pessoa a cometer um crime
e, assim, prendê-la. Quando isso é revelado, as provas obtidas nesse tipo de
ação são anuladas, e o suspeito é solto”, expõe Lozano.
Já
Isaac Newton Belota Sabbá Guimarães, promotor do Ministério Público de Santa
Catarina e professor da Escola de Magistratura daquele Estado, explica que “a
infiltração de agentes não os autoriza à prática delituosa, neste particular
distinguindo-se perfeitamente da figura do agente provocador. O infiltrado,
antes de induzir outrem à ação delituosa, ou tomar parte dela na condição de
co-autor ou partícipe, limitar-se-á ao objetivo de colher informações sobre
operações ilícitas”.
CONTESTAÇÃO JUDICIAL
A
ação policial autorizada por Moro levou à prisão vários indivíduos no âmbito da
Operação Sobrecarga. Uma das defesas, ao impetrar um pedido de habeas corpus
junto à presidência do TRF-4, apontando ilicitude nas práticas investigatórias,
argumentou que seu cliente havia sido preso com base em provas obtidas
irregularmente, e atacou a utilização de normas e institutos dos Estados Unidos
no âmbito do Direito brasileiro:
“Data
venia, ao buscar fundamento jurisprudencial para amparar a medida em
precedentes da Suprema Corte estadunidense, a d. Autoridade Coatora (Sérgio
Moro) se olvidou de que aquela Corte está sujeita a um regime jurídico
diametralmente oposto ao brasileiro.”
“Enquanto
os EUA é regido por um sistema de direito consuetudinário (common law), o
Brasil, como sabido, consagrou o direito positivado (civil law), no qual há uma
Constituição Federal extremamente rígida no controle dos direitos individuais
passíveis de violação no curso de uma investigação policial. Assim, a d.
Autoridade Coatora deveria ter bebido em fonte caseira, qual seja, a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e das demais Cortes do Poder
Judiciário brasileiro.”
O
habeas corpus impetrado, no entanto, não chegou a ser analisado pelo TRF-4. É
que, logo depois, em 2008, a jurisdição do caso foi transferida para a Justiça
Federal do Rio de Janeiro. Lá, toda a investigação foi arquivada, depois que o
STF anulou as interceptações telefônicas em Acórdão do ministro Sebastião
Rodrigues atendendo outro habeas corpus impetrado por Ilana Benjó em defesa de
um dos réus no processo.
Processo
arquivado, crimes impunes.
OUTRO LADO
Os
Jornalistas Livres enviaram na manhã da última terça-feira à assessoria de
imprensa da Justiça Federal no Paraná, onde atua o juiz Sérgio Moro, as seguintes
questões a serem encaminhadas ao magistrado:
“Perguntas referentes ao processo nº.
2007.70.00.011914-0
–
Qual a sustentação legal para a solicitação do juiz Sérgio Moro para que a
Receita Federal criasse CPF e identidade falsa para um agente policial dos
Estados Unidos abrir uma conta bancária no Brasil em nome de pessoa física
inexistente?
–
Por que o juiz Moro atendeu ao pleito citado acima, originário da Polícia
Federal, sem submetê-lo, primeiramente, à apreciação do Ministério Público
Federal, conforme determina o ordenamento em vigor no país?
–
Por que o juiz Moro não levou ao conhecimento do Ministério da Justiça os
procedimentos que autorizou, conforme também prevê a legislação vigente?”
A
assessoria do órgão não chegou a submeter os questionamentos ao juiz. Disse,
por e-mail, que não teria tempo hábil para buscar as informações em arquivos da
Justiça:
“Esse
processo foi baixado. Portanto, para que consiga informações sobre ele
precisamos buscar a informação no arquivo.
Outra
coisa, precisa ver o que realmente ocorreu e entender pq o processo foi
desmembrado para o Rio de Janeiro. Não tenho um prazo definido pra conseguir
levantar o processo. Também preciso entender como proceder para localizar o
processo aqui. Infelizmente essa não é minha política, mas não consigo te dar
um prazo para resposta neste momento. Fizemos pedidos para o juiz e para o
TRF-4.
Sugiro
que vc (sic) tente com a Justiça Federal do Rio de Janeiro também.
Espero
que compreendas.
Assim
que tiver alguma posição, te aviso.”
Do
GGN