Em
2013, o defensor público Bruno Shimizu, de posse de parecer médico que indicava
a necessidade de banho quente para presos tuberculosos, pediu ao Estado água
aquecida nos presídios de São Paulo. Conseguiu uma liminar que determinava a
instalação de chuveiros elétricos, restritos, àquela época, a 7% das
penitenciárias estaduais. Suspensa pelo presidente do Tribunal de Justiça do
Estado, a liminar acabou tendo decisão favorável em abril deste ano por
determinação do Superior Tribunal de Justiça.
Suspensões
favoráveis ao Estado são rotina na segunda instância judicial paulista.
Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Luciana Zaffalon analisou 566
processos que passaram pela presidência do TJ entre 2012 e 2015. Encontrou uma
única situação em que o Estado foi derrotado 100% das vezes: ao questionar a
aplicação do teto remuneratório no serviço público, em especial das carreiras
do Judiciário, as mais bem pagas do Estado.
Luciana
não se limitou às decisões do TJ. Debruçou-se sobre as 404 proposições
relativas ao sistema judicial apresentadas à Assembleia Legislativa entre 2011
e 2016. Apenas 17% das mudanças legislativas não tiveram repercussão
orçamentária, sendo que metade das leis aprovadas nesta seara resultou em
aumentos, vantagens, bonificações, abonos e auxílios. O governador Geraldo
Alckmin foi o principal autor das benesses. Aprovou 91% das propostas que
apresentou. Foi contemplado ainda com a possibilidade de suplementação
orçamentária sem o crivo da Assembleia, o que, apenas no ano de 2015, resultou
em quatro acréscimos às verbas do Tribunal de Justiça do Estado.
Os
levantamentos foram a base da tese de doutorado apresentada por Luciana à
Fundação Getúlio Vargas (FGV), que será transformada em livro, pela Hucitec,
neste semestre. O título ("Uma Espiral Elitista de Afirmação Corporativa:
Blindagens e Criminalizações a partir do Imbricamento das Disputas do Sistema
de Justiça Paulista com as Disputas da Política Convencional") poderia ser
resumido em uma lápide: aqui jaz Montesquieu. O imbricamento mapeado por
Luciana não é mais uma tese sobre a judicialização da política, mas da outra
face da moeda, a politização do Judiciário.
O
ineditismo de sua tese está na demonstração de como a elite judiciária de São
Paulo ao mesmo tempo em que blinda a política de segurança pública do Executivo
tem garantido uma política remuneratória que se vale de subterfúgios para
extrapolar o teto constitucional. O dueto é avalizado pela Assembleia, em
prejuízo do contribuinte e, principalmente, da democracia.
Os
últimos sete secretários de Segurança Pública do Estado são egressos do
Ministério Público. A tese demonstra que não se trata de uma coincidência. A
repressão a manifestações (96 bombas de gás por dia no primeiro semestre de
2016) e as políticas prisionais seguem sem questionamentos daquele que deveria
ser um principais contrapesos ao monopólio da violência pelo Estado. País com a
quarta população carcerária do mundo (depois de EUA, China e Rússia), o Brasil
é o único desses líderes a manter índice crescente de encarceramento. Mais de
um terço dos presos brasileiros está em São Paulo.
A
Defensoria Pública, criada em São Paulo depois que a maior parte dos Estados
brasileiros já o havia feito, não aparece uníssona na ameaça à blindagem entre
os poderes. Coordenadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
(IBCCRIM), Luciana Zaffalon foi ouvidora-geral da defensoria, instituição
judicial mais bem-sucedida na estratégia de conseguir aumentos remuneratórios
retroativos. Seu portal da transparência informa um rendimento médio mensal de
R$ 26.980,00 (sem contar férias e 13º salário). Dos 716 registros do seu
universo de análise, 12 estavam acima do teto constitucional daquele ano
(2015), R$ 33.763,00.
As
vantagens obtidas pelos defensores, no entanto, não são comparáveis àquelas com
as quais os procuradores foram agraciados. De 1.920 matrículas do MP estadual,
encontrou apenas 3% aquém do teto constitucional. O rendimento médio no MP em
São Paulo em 2015 foi de R$ 45.036,30 (sem contabilizar férias e 13º). Naquele
ano, a complementação para vantagens, abonos e outras indenizações alcançadas
pela carreira impuseram ao orçamento estadual gastos de R$ 421 milhões, o
equivalente a 12 vezes a previsão daquele ano para as políticas de
enfrentamento ao crack.
Dos
três órgãos do sistema judicial paulista, o menos amigável à investigação foi a
magistratura. O formato em que as informações são prestadas afronta resolução
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e dificulta o manejo dos dados. A
pesquisadora valeu-se do orçamento aprovado e do órgão de controle da
magistratura para se aproximar da caixa-preta da toga paulista. Na Alesp,
presidida durante a maior parte do período pesquisado por um parlamentar
egresso do MP (Fernando Capez), encontrou um fundo especial de despesas do TJ lá
aprovado e destinado ao custeio de penduricalhos como auxílio alimentação,
creche e funeral. Em relatório do CNJ identificou que a despesa média mensal
com magistrados na Justiça estadual em 2015 foi de R$ 45.906,00.
Às
dificuldades enfrentadas, contrapôs acórdão do ex-ministro do STF, Carlos Ayres
Britto: "A publicidade é o preço que se paga pela opção por uma carreira
pública no seio de um Estado republicano. A prevalência do princípio da
publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos
de concretizar a República enquanto forma de governo".
Os
dados de que dispunha, no entanto, lhe foram suficientes para concluir que a
remuneração das carreiras judiciais em São Paulo é superior à média federal e à
de cinco países europeus: França, Alemanha, Portugal, Espanha e Suécia. No
Ministério Público, por exemplo, o rendimento médio anual dos procuradores
paulistas em 2015 foi de € 157.130 (com férias e 13º), € 30 mil a mais que o
dos procuradores federais e o dobro do valor nominal dos salários da carreira
congênere na Alemanha. Os defensores paulistas, com um rendimento médio anual
de € 95.239 euros (com férias e 13º), deixam para trás os congêneres alemães e
suecos.
Os
achados convergem com estudos que mostram o Judiciário brasileiro com um gasto
médio por habitante (€ 94,2) superior ao da Suécia (€ 66,7), Itália (€ 50),
Portugal (€ 43,2), Inglaterra (€ 42,2) e mais de três vezes aquele registrado
na Espanha (€ 27). O mesmo acontece com o Ministério Público, com uma proporção
de gastos per capita 15 vezes superior àquela da Alemanha e da Espanha, cinco
vezes maior que em Portugal e três vezes ao registrado na Itália.
Luciana
fez 15 entrevistas em busca de explicações, com defensores, juízes e
procuradores. Esbarrou, no entanto, na negativa do presidente do Tribunal de
Justiça do Estado à época de sua pesquisa, Renato Nalini. Valeu-se de artigo em
que o magistrado reclama da condição de pedinte do Executivo e defende as
despesas do TJ reputando-o como a maior Corte judicial do planeta, argumento
que não explica a dimensão do gasto per capita. Baseou-se ainda em entrevista
concedida a um programa de televisão em que Nalini inclui, como justificativa
para os adicionais, desde o desconto do IR até a necessidade de se vestir bem:
"Hoje o juiz brasileiro ganha bem, mas tem 27% de desconto de imposto de
renda, tem que pagar plano de saúde, tem que comprar terno e não dá para ir
toda hora a Miami para comprar terno, a cada dia da semana ele tem que usar um
terno diferente, uma camisa razoável, um sapato decente, tem que ter um
carro".
Com
inaudita franqueza, o magistrado atribuiu a afronta ao teto constitucional à
necessidade de evitar a depressão dos juízes: "Espera-se que a Justiça,
que personifica uma expressão da soberania, esteja apresentável e há muito
tempo não há reajuste do subídio, então o auxílio moradia foi um disfarce para
aumentar um pouquinho e até para fazer com que o juiz fique um pouco mais
animado, não tenha tanta depressão, tanta síndrome do pânico, tanto AVC. A
população precisa entender isso".
O
outro lado da expressão da soberania judicial é explicitada no destrinchamento
dos 15 processos relacionados ao sistema penitenciário que chegaram ao TJ e
foram analisados na tese. Desses, 13 foram suspensos, em atendimento aos interesses
do governo do Estado. Versavam sobre medidas para sanar a superlotação na
Fundação Casa (a antiga Febem), em presídios e na carceragem de distritos
policiais em todo o Estado, além da requisição de médicos e dos já mencionados
chuveiros elétricos. Em todas as decisões, o TJ alegou que os gastos
necessários para atender os pedidos embaraçariam a gestão pública.
A
simbiose se completa com a omissão do MP paulista em relação à violência
policial, que em 2015 resultou em 2,3 mortes por dia, e à grande proporção de
prisões em flagrante, cerca de 70% do total efetuado no Estado. Inquéritos
capengas que aceitam policiais como testemunhas levam ao arquivamento de mais
de 90% dos processos que questionam os procedimentos. Um Judiciário
aristocratizado, conclui, atua como protagonista na segurança pública e
referenda o direito como território da força do Executivo, em detrimento da
cidadania, com o beneplácito do Legislativo.
Além
dos procuradores que comandam a Segurança Pública há duas décadas, o modus operandi
da carreira já ditou as cartas na Secretaria de Governo (Marcio Elias Rosa) e
hoje ocupa a Secretaria da Educação. A gestão de Renato Nalini foi responsável
pela reforma que levou à ocupação das escolas estaduais no ano passado.
A
aliança precede a chegada dos tucanos no poder. O PMDB ocupava o Palácio dos
Bandeirantes com um titular egresso do MP (Luiz Antonio Fleury Filho) no
massacre do Carandiru. Depois do estrago, um procurador do Estado, Michel
Temer, seria indicado para comandar a Segurança Pública, sinal de que o
consórcio dos Poderes antecede o PSDB, dá gênese à aliança com o PMDB e se
nacionaliza.
Maria
Cristina Fernandes é jornalista do Valor, escreve neste
espaço quinzenalmente.
Do
GGN