Estou na revisão final da biografia de Walther Moreira Salles
– com lançamento previsto para março. Alguns dos capítulos descrevem as crises
políticas dos anos 50.
São interessantes os paralelos com o quadro atual, inclusive
para identificar os bordões historicamente acionados pelas lideranças de
direita.
A lógica é sempre a mesma.
Todo o poder emana do povo. O povo elege o Presidente da
República e elege os parlamentares. E há um quarto poder atuante, que é a
mídia. A disputa pela Presidência é imprevisível; a do Parlamento, menos, já
que girando em torno de lideranças regionais e coronéis políticos.
As eleições podem consagrar um candidato popular, como o
segundo governo Vargas, um desenvolvimentista, como JK, um populista de
direita, como Jânio. E, depois da redemocratização, perfis tão distintos como
Fernando Collor, FHC e Lula. Já o Parlamento é ferreamente amarrado a práticas
clientelistas e, em um segundo plano, às pressões da mídia sobre seu
eleitorado.
É a velha dicotomia entre federalismo e centralismo que se
tornou um dos motores da crise política brasileira.
Historicamente, o modelo de democracia representativa, padrão
EUA, foi montado visando permitir o controle das massas por minorias
supostamente ilustradas. Todo o modelo funda-se no financiamento privado. E os
processos de inclusão são lentos e assimiláveis. Momentos de mudanças radicais
– grandes inclusões sociais, urbanização acelerada – geram fricções que são
aproveitadas pelos derrotados políticos. E, aí, ao lado do álibi da luta contra
a corrupção entre o álibi das reformas.
Antes, quando se perdia o controle político, apelava-se para
as intervenções militares.
No pós-redemocratização, a América Latina abrigou dois tipos
de golpe. O primeiro, o golpe parlamentar-midiático, que vitimou Carlos Andres
Perez, na Venezuela, e Collor, no Brasil. Perdida a maioria parlamentar, a
mídia trata de desenvolver uma campanha permanente de denúncias verdadeiras ou
factoides, criando a legitimação para o golpe. Nos últimos anos, esse modelo
foi substituído pelo golpe jurídico-midiático.
Em todos esses casos, apela-se para o mesmo discurso. A
deslegitimação da eleição popular se dá através da “reformite” – como apelidei
em 2000 o discurso pelas reformas.
A “reformite” visa atender a duas demandas. A primeira, substituir
a incapacidade dos governantes de montar políticas públicas consistentes. A
segunda, de empurrar goela abaixo do Legislativo mudanças que não seriam
convalidadas por eleições. Não se generalize. Há reformas que precisam ser
feitas, para adaptar o país às mudanças sociais e tecnológicas e há momentos em
que a inércia política impõe grandes nós que precisam ser desfeitos. Mas, na
grande maioria, são bandeiras vazias brandidas por governantes vazios.
Lacerda e a delegação
de poderes
Em alguns momentos da história, aqui e lá fora, tentou-se
reduzir esses conflitos através de uma figura nova, a “delegação de poderes”,
utilizada com sucesso pelo presidente francês Mendès France para fazer a paz
com a Indochina.
Por ela, o parlamento concedia um poder especial ao
presidente, por prazo determinado e com objetivos definidos.
Getúlio Vargas tentou se valer desse instrumento no seu
segundo governo. E foi duramente criticado por Carlos Lacerda. Quando assumiu
Café Filho, Lacerda levantou a possibilidade de uma delegação de poderes no
artigo “O golpe sem lágrimas”, de 7 de julho de 1955. Aliás, a lógica é
extremamente parecida com a maioria parlamentar conquistada pela quadrilha que
tomou o poder no Brasil.
Mais tarde, esse artigo serviu de inspiração para a tentativa
de golpe destrambelhado de Jânio Quadros, conforme relato em detalhes no livro.
Mas é interessante acompanhar o pensamento de Lacerda sobre a
democracia, expresso nesse artigo e com as citações de Mendès France. Aliás,
até algum tempo antes, a Tribuna da Imprensa tratava o francês como um
esquerdistas irresponsável. Depois, passou a incensa-lo.
Do artigo de Lacerda
“(...) No mundo inteiro a Democracia sofre um processo de
renovação. Cada povo, sobretudo os que tem lideres, isto e, elementos capazes
de certa previsão, forceja por ultrapassar um liberalismo já morto, que os
sufoca, para salvar a verdadeira liberdade, que com ele, frequentemente, se
confunde.
No caso da França, vimos ha dias o general De Gaulle — de
cujas ideias, em alguns casos discordamos, mas que não pode ser chamado por
qualquer Pitombo francos de "traidor”, reclamar a mudança de regime. (...)
Vejamos o que propunha ao Parlamento de Franca o sr. Mendes France, ate
fevereiro deste ano.
Diz Mendès Francve:
“(...)a causa fundamental dos males que esmagam o pais é a
multiplicidade e peso das tarefas que ele procura absorver ao mesmo tempo (...)
Governar é escolher, por mais difíceis que sejam as escolhas. .
“(...) é o que sobressai do contraste entre uma extrema
miséria e um luxo provocante, contraste que ofende a razão tanto quanto ao
coração. Por outro lado, com demasiada frequência a produtividade ou a baixa da
produtividade e protegida, e com ela a rotina.
“ (...) Não me escondo, nem vos escondo, as dificuldades de
realizar reformas. Não é por acaso que, na história, as reformas foram sempre
tão difíceis que alguns julgam necessária uma revolução para atingi-las. (...)
Um pais democrático no qual a maioria tem de ter preponderância, pode
realizar pacificamente e dentro da ordem o que esta no Interesse do maior
numero, no Interesse da Nação”.
“(...) O Conselho de Estado, no seu parecer de 6 de fevereiro
de 1953, considerou que, se a Constituição proíbe a Câmara (Assembleia
Nacional) “de abandonar ao Governo o exercício da soberania nacional”, não
impede que o Parlamento autorize ou convide • Governo a tomar medidas para modificar
ou completar as disposições legislativas em vigor, desde que sejam fixados o
campo de aplicação, o objetivo e o quadro dos decretos a baixar”.
“(...) Os decretos (leis) de ante-guerra tendiam a modificar
a direção dos negócios públicos sem restrição nem limites. O meu projeto visa a
permitir aos poderes públicos suplantar as dificuldades que todos consideram
temporárias. A sua finalidade consiste em dar ao Governo os poderes que lhe são
atualmente indispensáveis para atingir os objetivos que o Parlamento lhe traça
ao endossar um programa de ação que será anexado à lei, constituindo contrato
preciso entre o Parlamento e o Governo”.
Aliás, antes da digitalização do jornal no Arquivo Nacional,
passei dias na Biblioteca Nacional consultando microfichas, pior do que
procurar agulha em palheiro.
Viva a tecnologia!
GGN