O maior partido de esquerda da América Latina, o PT, entra
hoje oficialmente em "modo desobediência civil".
A inscrição de um candidato preso injustamente, Lula, mantém
o partido em alinhamento com a ampla maioria do eleitorado e em compromisso com
a ampla maioria da base do povo brasileiro. Em meio à maré revolta, o navio
petista singrará as águas eleitorais orientado pela bússula da defesa da
democracia, do desenvolvimento e da maior liderança popular da história do
Brasil, mirando ousadamente as brechas do golpe para tentar conquistar presença
eleitoral, uma vaga no segundo turno e a vitória na corrida presidencial.
A estratégia correta vem acompanhada de uma tática tão
inédita quanto arriscada, uma saída excepcional para tempos e estados de
exceção, que põe o partido a enfrentar: o desconforto de progressistas aliados
mas concorrentes; as instabilidades impostas pelo judiciário, no TSE, no STJ e
no STF; as incertezas sobre a participação nos debates e na propaganda
eleitoral; a complexidade de uma eventual operação de transferência de votos e
a engenharia de administração do tempo em que todo esse processo deve ocorrer,
de modo a minimizar novos e maiores sobressaltos.
Para o PT, qualquer outra saída que não passe pela manutenção
persistente da candidatura Lula não é exequível, seria praticar uma espécie de
"impugnação preventiva", antecipando um trabalho sujo que, se for
feito, cabe ao Judiciário e não ao partido; além disso, seria uma deslealdade
anti-ética e irresponsável com a inocência e a proteção de Lula, patrimônio do
PT e do país; mais ainda: se trataria de sequestrar da maioria do eleitorado e
dos militantes a possibilidade de explicitar seu desejo nas urnas, o que seria
um suicídio político e eleitoral para o partido, e para o conjunto da esquerda.
Menos certezas existem sobre como devem proceder, nesse
período, os porta-vozes mandatados diretamente por Lula para vocalizar suas
propostas e ideias, com especial atenção para o desafio, disciplinadamente,
assumido por Fernando Haddad nessa conjuntura. São muitos os que opinam sobre a
situação, menor é o número dos que se dispõe a enfrentá-lá, por fortuna ou
virtú coube ao ex-prefeito essa missão. Nesse sentido, informa o boa regra do
realismo político, a partir de agora o melhor nome de porta-voz passa a ser o
que temos e não o que imaginávamos que poderíamos ter.
De Haddad se espera que cada ideia enunciada venha antecedida
da denúncia e da lembrança de que quem deveria estar ali é Lula; cada proposta
apresentada deve ser precedida da denúncia do golpe em curso e do estado de
exceção que se instalou no país; cada argumento mobilizado deve ter como
pressuposto a certeza de que uma disputa de poder dessa magnitude não será
enfrentada devidamente apenas com tecnocratas e tecnologias sociais de
políticas públicas; deve ter como premissa a certeza de que manter coesa as
bases do petismo e do lulismo é mais importante do que diálogos evasivos com a
alta elite e a alta classe média; Haddad deve exercitar o desprendimento de sua
visão republicana liberal para incorporar em sua fala um projeto democrático,
nacional e popular bem mais amplo e complexo do que a visão de Estado cultivada
na USP, a noção de mercado glorificada no INSPER ou a leitura de sociedade
presente na elite e na intelectualidade paulista.
Da militância se espera a resistência e o empenho na
travessia dessa maré. Temos um projeto, uma estratégia e o povo do nosso lado,
não nos cabe esmorecer no cansaço ou no desencanto. Empenhados que estavam em
proteger seus interesses pessoais, o condomínio golpista perdeu força, eles
subestimaram a capacidade de o PT levar adiante sua "guerra híbrida",
sendo pragmático nas alianças locais e ousado na manutenção de uma candidatura
nacional, segundo eles, "fora-da-lei". O derrotismo, portanto, não se
justifica, o golpe deixou frestas e pode sofrer uma derrota real no processo
eleitoral e nas urnas.
Tal constatação, entretanto, não deve justificar diagnósticos
simplistas, o gêmeo siamês do fatalismo é a ingenuidade, a vitória na batalha
das urnas não é sinônimo, imediatamente, de vitória na guerra contra o golpe.
As forças no poder tentarão inviabiabilizar, nessa ordem, Lula, Haddad, o PT, a
chapa, e, eventualmente, uma posse ou um governo. Temos que estar
estrategicamente preparados desde já para pelo menos três possíveis situações:
ser retirados das eleições e deixar espaço para a extrema-direita bolsonarista,
ter permissão de participar das eleições e enfrentar a direita tucana, e vencer
as eleições com a obrigação de criarmos outro tipo de relação com o Poder e com
o Estado, com menos "conciliação republicana" e mais enfrentamento
democrático.
A mera participação do PT retira as eleições da
extrema-direita e a recoloca na centro-direita, pois muda, indiretamente, a
correlação de forças entre Bolsonaro e Alckmin. Se esse cenário será
devidamente aproveitado depende não só do PT, mas de o PSDB alavancar Alckmin e
de o mercado não cometer a irresponsabilidade de encampar em bloco a
candidatura Bolsonaro, daí o risco assumido pelo PT, ou leva a esquerda para o
segundo turno ou será acusado de ter sido negligente com a onda fascistóide que
assombra o país. O partido, portanto, está indo à raiz do problema, colocando
seu próprio pescoço à prova, em uma postura radical, como é da natureza da
desobediência civil contra o estado de exceção.
Como Dilma, entre 15 de agosto e 17 de setembro lembremos de
Maiakóvski: "Não estamos alegres, é certo, mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as
guerras havemos de atravessá-las. Rompê-las ao meio, cortando-as como uma
quilha corta as ondas."
William Nozaki - Professor da Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo. Possui graduação em Ciências Sociais pela
USP e mestrado em Economia pela UNICAMP onde realiza o doutorado em
Desenvolvimento Econômico. Atua nas áreas de economia política e brasileira
pesquisando temas como crescimento econômico, concentração de riqueza e
distribuição de renda.
GGN