A dinâmica parlamentar da crise e
a omissão da esquerda
GGN, Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e
Política (FESPSP
Em termos políticos, o Brasil é
um dos países mais esquisitos do mundo. Ocupa uma das primeiras posições no
ranking das desigualdades sociais e, contudo, essa ignominiosa condição não se
traduz em indignação, em ação em luta política. Nunca fomos capazes de fazer
uma revolução social e nem uma revolução política. Somos uma sociedade
acostumada ao mando. Primeiro, ao mando dos colonizadores, dos senhores de
engenho; depois, ao mando dos coronéis das oligarquias estaduais, enfim, ao
mando de um rosário de chefes, delegados, empresários, empreiteiros, prefeitos,
paramentares, padres, pastores, doutores etc. Uma visceral disposição para
mandar de alguns e de obedecer dos muitos.
As lutas sindicais, com uma
exceção aqui outra acolá, terminam em bom convívio entre o trabalho e o
capital. No campo, em que pese toda a violência, prevalece o mando do senhor
das terras. Quando os representantes dos trabalhadores chegam ao poder,
verifica-se o bom convívio, os bons modos, a conciliação.
No Brasil, o Estado sempre foi
tudo: criou, serviu e serve o capital; mais dele do que das lutas sociais
descenderam alguns parcos direitos e políticas sociais; fez banqueiros,
empreiteiros e os grandes conglomerados da agroindústria (vide a JBS); salvou
os cafeicultores, os usineiros e os trambiqueiros em geral. Grosso modo,
o dinheiro tem uma via única: sai do suor dos trabalhadores e dos pobres,
vai para o Estado e daí para os ricos.
Em que pese as brutais
desigualdades e tragédias sociais, os principais conflitos políticos se situam
no teatro do Estado e nas suas instituições. Lá é o espaço onde os interesses
sociais e econômicos são decididos e onde as decisões são descendidas para um
povo acostumado ao mando e resignado à obediência. O teatro do Estado
expressa a aparência da tragédia real e, ao mesmo tempo, é o real que a
constitui. No Brasil, a política é autônoma quase que no sentido estrito do
termo. Lá os partidos representam a si mesmos, não têm lastro social, ou
representam quadrilhas. Servem os diversos grupos do capital, destinam migalhas
aos mais pobres. Lá indivíduos e grupos criam sublegendas dentro dos partidos,
bancadas específicas que atravessam vários partidos e surgem políticos que
representam a si mesmos.
No Brasil não tivemos a
impetuosidade de uma revolução burguesa, não tivemos a êxtase da fúria
destruidora do jacobinismo, não tivemos uma revolta camponesa, uma rebelião de
escravos, uma guerra da independência, uma revolução republicana. Não tivemos
nem a fantasia e nem a poesia da emancipação proletária. Tivemos golpes,
presidentes que não terminam os seus manados e quase nenhuma resistência
popular.
A dinâmica parlamentar da crise e
a segunda derrota das esquerdas
Talvez a autonomia do teatro do
Estado e esta tipologia do par mando/obediência expliquem, ao menos em parte, a
conduta das esquerdas e das forças progressistas no processo do
golpe-impeachment. Note-se, antes de tudo, que o capital ficaria com Dilma se
esta tivesse mostrado capacidade de articular a governabilidade com o Congresso
e se tivesse feito um ajuste fiscal que fosse satisfatório para os seus
interesses. Desembarcou do governo Dilma e embarcou no governo Temer que, para
se viabilizar, prometeu reformas retrógradas. Agora, pode desembarcar do
governo Temer para embarcar no governo de Rodrigo Maia ou de outro qualquer,
desde que haja uma continuidade da política econômica. Este mesmo capital que
financiou quase todos os partidos extraindo recursos do Estado.
A dinâmica do golpe teve um
elevado grau de autonomia em relação a esses interesses. Por um lado, foi
articulado pelos caprichos individuais de Aécio Neves que queria "encher o
saco do PT". Por outro, foi ardilosamente construído pela quadrilha do
PMDB, liderada por Temer, que queria tomar o poder para continuar cometendo
crimes e para garantir o foro privilegiado para alguns de seus membros.
Tudo isto se articulou, com
acordos e desacordos, com o Partido do Estado, que também tem seus grupos
específicos internos. O Partido do Estado é constituído pelo Ministério
Público, pela PGR, pela PF, pelo STF e outros setores do Judiciário. O Partido
do Estado sempre se articula quando o sistema político entra em colapso pela
via da ingovernabilidade e da corrupção. Em vários momentos, o Partido do
Estado foi representado pelas Forças Armadas, que agora ficaram à margem da
crise.
Desde o início do processo do
golpe as esquerdas e as forças progressistas ficaram na defensiva, seja por
incompreensão da conjuntura, por arrogância, por incompetência ou por covardia.
Perderam as ruas e, sem forças sociais organizadas e mobilizadas, o governo
Dilma foi derrubado. Naquele momento, a decisão política combinou mobilização
de rua e agregação de força paramentar em favor do golpe.
Consumado o golpe e com o governo
ilegítimo caminhando para um isolamento social crescente, as oposições não
tiveram capacidade para impor uma dinâmica das ruas para protagonizar um evento
de mudança política. A partir disso, a política brasileira voltou ao seu leito
tradicional, ao teatro do Estado.
O governo foi sendo sustentado
pelo Congresso, aceito pelo mercado, mas acossado pelo Partido do Estado
confrontado pela quadrilha de Temer, determinada a esvaziar a Lava Jato. As
ruas passaram a ficar de fora desse processo, sem protagonismo, e as esquerdas,
sem força congressual, tornaram-se expectadoras das lutas e dissensões
alheias. Sem as ruas, a demanda pelas diretas já está inviabilizada e FHC
tornou-se quase o principal defensor dessa consigna. Se as reformas forem
freadas não será pela forças das ruas, mas pelas conveniências eleitorais dos
partidos e dos políticos que derrubaram Dilma. Isto fica evidente nos
movimentos de Renan Calheiros, que é uma espécie de líder informal das
oposições.
Independentemente de qual for o
desfecho de Temer, as oposições saem derrotadas. Se Temer permanecer no
governo, será a continuidade da derrota do golpe. Se Temer sair, será algo
decidido sem a participação das oposições e sua substituição não passará de um
rearranjo de nomes para dar continuidade à mesma política, ao mesmo bloco de
poder, cada um visando se posicionar em relação a 2018.
No Brasil não há nenhuma
revolução à vista, nenhuma transformação social profunda no futuro próximo,
nenhum caminho promissor de justiça e de igualdade. Não temos heróis para
ressuscitar para que possam glorificar novas lutas, não há fantasias para
exagerar, nem espectro da revolução e menos seu espírito. O que há é uma
contínua comédia política para acobertar a normalidade trágica da realidade.
Normalidade trágica porque naturalizamos a tragédia social do país e seu modo
violento de ser. Parece que os nossos políticos se sentem mais confortáveis com
a máscara da comédia política para dançar no baile brasiliense, fruição
prazerosa que esconde o mal-estar da sociedade. E nós, que estamos nas
planícies, nos entretemos, nos distraímos, com as danças cínicas dos planaltos.
Para encontrar um caminho
promissor de mudanças, precisamos criticarmo-nos constantemente a nós mesmos,
interrompendo esta paralisia, esta marcha para o retrocesso, este olhar fixo
num passado inglório. Precisamos encarar com sobriedade e responsabilidade o
fracasso das forças progressistas na história do Brasil. Fracasso que se traduz
nesta desigualdade inaceitável, nos precários direitos, nos poucos avanços e
nas muitas derrotas.