Peça 1 – as três
dimensões da política
Para efeito pedagógico, vamos dividir o mercado de opinião
política pós-Constituinte e pré-Lula em três dimensões:
Dimensão intelectual
Um grupo numericamente reduzido de atores que discutia e
ajudava a definir as grandes políticas públicas. Eram intelectuais, com
preponderância para os economistas, acadêmicos, em especial da USP e da FGV,
lideranças empresariais mais esclarecidas, todos com atuação essencialmente
paulistana, orbitando no universo da mídia.
O status político era garantido pela exposição midiática,
inclusive junto ao PT, como foram os casos de Eduardo e Martha Suplicy, Aloisio
Mercadante e Guido Mantega.
Intelectuais e empresários de outros centros, com exceção do
Rio de Janeiro da FGV e da PUC, não eram admitidos no salão principal, e era expressamente
proibida no baile a entrada de sindicalistas, lideranças sociais e movimentos
populares.
No máximo, grupos minoritários obtinham apoio retórico para
algumas causas, servindo de álibi para os bens pensantes mostrarem
sensibilidade social retórica. Se ousassem transpor os sentimentos para o campo
objetivo das políticas públicas seriam marcados na testa com a condenação
definitiva: populistas.
Dimensão política
Os partidos que ajudavam a compor maioria, a quem eram
oferecidas as sobras do banquete do presidencialismo de coalisão. Brilhavam em
seus estados, mas periodicamente precisavam vir a São Paulo comprar bens de
status na Daslu e bens de opinião junto aos intelectuais e políticos tucanos.
Os invisibilizados
Aí entrava a rapa, dos movimentos sociais, sindicais, às
lideranças populares, sem nenhum espaço na mídia desde as Diretas, sem direito
a qualquer forma de protagonismo. As experiências inovadoras que poderiam
elaborar ficavam restritas às prefeituras, nas gestões de Luiza Erundina e
Marta Suplicy em São Paulo e Patrus Ananias em Minas.
Peça 2 – o governo Lula
Especialmente nos dois governos Lula, os invisíveis passaram
a ter protagonismo na definição das políticas públicas, especialmente nos temas
sociais.
Em pouco tempo mostraram uma criatividade inédita, como o
Bolsa Família, juntando o melhor objetivo com a melhor metodologia. Depois, Luz
Para Todos, o programa de cisternas no semiárido, o programa inicial de
biodiesel com selo social, uma chuva de ideias inovadoras e bem elaboradas,
enquanto as áreas técnicas se perdiam em medidas de manual, incapazes sequer de
avaliarem criticamente os resultados, como foi e é a metodologia das metas
inflacionárias.
Resultou em um movimento generalizado de inclusão social, de
fortalecimento das minorias raciais, sociais, sexuais, dos deficientes, na
criação de um ambiente de solidariedade inédito na história do Brasil.
Quando sobreveio a crise, constatou-se que a maior virtude do
PT e Lula, o republicanismo, era sua maior vulnerabilidade.
Esse paradoxo provocou dois resultados contraditórios. O
imediato foi a derrota eleitoral e o golpe do impeachment. O de médio prazo,
significou uma vitória política expressiva, com a esquerda se apropriando das
principais bandeiras civilizatórias, movimento ampliado pela perseguição e
prisão de Lula e pela comparação com o governo Temer, com o desmonte social
apoiado pelo arco do impeachment e com o receituário econômico incapaz de tirar
o país da crise.
Peça 3 – a legitimação
da política
Aí se entra em um território de luta política no sentido mais
profundo: como se dão as formas de legitimação moral das bandeiras políticas.
O ódio produz catarses, desabafos, violência, mas não gera
perenidade, a não ser radicalizando a guerra ao inimigo. No limite, esse
movimento leva à perda de controle das instituições que comandam o jogo –
mídia-cúpula do Judiciário-grupos políticos – para as de uma liderança
carismática qualquer, ou de um poder extra institucional, como os militares. Os
abusos cometidos por Policiais Federais e procuradores, auto investidos na
missão redentora, são a prova cabal dessa perda de referenciais e de controle.
Não é à toa que merecem a resistência de Gilmar Mendes, o mais destemido e
preparado dos gurus do golpe.
O sábio (sem ironia) Olavo de Carvalho, precursor e mestre de
toda uma geração de propagadores de ódio, é dono de um faro invejável para
antecipar os movimentos mais profundos da opinião pública.
Quando parecia que o país tinha descoberto o caminho da paz
social, ele já antecipava o movimento de ódio que viria a seguir. Forneceu
o template do qual se valeram colunistas de esgoto, um receituário
tão funcional que pôde ser utilizado dos mais talentosos aos mais primários.
Um ou dois anos atrás, o mesmo Olavo alertou seus discípulos
para o esgotamento do modelo inicial e a eficiência de um contra discurso que
nascia de novos influenciadores, defensores dos direitos humanos valendo-se das
mídias sociais.
Hoje em dia, os valores civilizatórios se tornaram parte
integrante do arco da esquerda, uma espécie de prêmio de consolação ao lulismo
pelo republicanismo, que, de um lado, consagrou Lula como um pacificador à
altura de Ghandi ou Mandela, mas, de outro, permitiu o golpe jurídico-midiático
mais fácil da história. Do lado de lá, estão os Alexandres Frotas e as
Janaínas.
Como tornar permanente, a não ser pelo poder das armas,
jurídicas ou militares, um modelo moralmente iníquo?
Peça 4 – a direita e a
busca do tempo perdido
Desde sempre, a lógica ancestral do golpe previa um roteiro
ou planejado, ou melhor, conduzido pelos ventos do golpe:
Tirar Lula, PT, esquerda e movimentos sociais do mapa
político e midiático. Para tal, praticar um discurso de ódio e de guerra total
ao inimigo.
Esse discurso tiraria da garrafa o gênio da ultra-direita e
da violência indiscriminada, com os gendarmes tentando levar o freio aos
dentes.
Consumado o golpe, tentativa de recriação de um espaço
minimamente civilizado, como o que se formou no pós-Constituinte, admitindo-se
uma pluralidade restrita e seletiva e combatendo os extremismos.
Há dois objetivos em jogo, além do cuidado em não perder o
controle da situação.
O primeiro, a tentativa de recriação da mídia como locus de
mediação, conferindo um mínimo de legitimação ética ao discurso midiático,
profundamente abalado por anos de ódio e falsificação das notícias. O segundo,
tentar recriar uma centro-esquerda midiática, uma pluralidade sob controle.
De fato, abriram-se espaços para alguns colunistas que
passaram a exercitar os limites do jornalismo. Prosseguindo assim, serão os
jornalistas referenciais da nova geração. Ao mesmo tempo, tentam montar uma
espécie de República de Vichi acadêmica, cooptando alguns intelectuais de
esquerda para um combate sem trégua à “esquerda velha”.
O combate aos fakenews – prática midiática desde
2005 – está servindo como uma espécie de evento de corte, para marcar a “nova
mídia” em relação ao jornalismo de esgoto praticado anteriormente por ela
própria. A cada dia que passa, o jornalismo de esgoto fica restrito à chamada
imprensa de segunda linha ou a colunistas de segunda linha, sem instrumental
para vôos mais sofisticados.
O que impede a busca do tempo perdido? De um lado, o abandono
das teses programáticas pelo PSDB, que trocou a social-democracia pelo MBL,
deixando vazio de legitimidade no anti-petismo. Mas, principalmente, pelo
fenômeno Lula que trouxe tantos personagens novos para a cena política que o
país tornou-se grande demais para caber nas dimensões restritas da grande imprensa,
em ambiente democrático.
Peça 5 – a dimensão
política de Lula preso
E, aí, entram em cena aspectos psicossociais pouco
compreendidos por esses cabeções de planilha.
A prisão de Lula, a perseguição escandalosa contra ele, a
exposição da face partidária da Justiça, as arbitrariedades da Lava, escancaram
o que o próprio Lula antecipou no comício de São Bernardo.
O último comício de Lula foi um clássico de estratégia política,
especialmente a transferência simbólica do seu legado para o povo - “agora
vocês são milhões de Lulas” – e a imagem criada por Pablo Neruda, que Lula
utiliza desde a campanha de 1989: “podem matar uma, duas, três rosas, mas não
podem deter a primavera’”.
No Festival Lula, na Lapa, um público estimado entre 10 mil e
40 mil pessoas, muitas vindas de outros estados, mostrou a força do mito. Os
apresentadores relembravam a vida de Lula, o nascimento em um casebre de dois
quartos, para sete irmãos, a vinda no pau-de-arara para São Paulo, os empregos
na infância e na adolescência. Depois, os depoimentos de artistas e músicos
sobre as políticas sociais, os meninos pobres ascendendo à Universidade,
entremeados de vídeos das palavras de Lula no comício de São Bernardo. Tudo
isso, mais a lembrança de que o personagem está em uma cela da Polícia Federal,
impedido de se candidatar a presidente, formam o quadro final da criação do
mito.
Entre os artistas presentes no Festival Lula Livre, tempos
atrás, um dos mais ilustres chegou a esboçar uma composição-lamento sobre a
decepção com Lula e o PT. Reviu a posição quando a perseguição a Lula e seu
encarceramento desnudaram o jogo político-policial que se montara.
O encarceramento de Lula apressou seu julgamento histórico,
minimizou os erros da atuação política do PT, reaproximou Lula não apenas das
bases, mas dos setores independentes e de grupos de esquerda historicamente
críticos da realpolítik do PT.
No encontro, confraternizaram-se lideranças do PcdoB, PSOL,
artistas populares de primeira grandeza e jovens músicos praticando suas
músicas de resistência.
Quem estava ali não eram apenas petistas ou lulistas, mas
pessoas independentes, tendo em comum a defesa da democracia e dos valores
civilizatórios, ou seja, um pacto em torno de princípios, como a defesa da
democracia, dos direitos sociais, da recuperação da coesão social.
No palco, as palavras de ordem eram contra a ditadura, o
preconceito, o feminicídio. E a lembrança de Lula a combustão maior, o fio que
amarra as esperanças de todo o Brasil, representado na multidão que compareceu
ao Festival e nas pesquisas de opinião, ampliando sua diferença em relação aos
demais candidatos.
A cada dia que passa, torna-se mais acachapante a diferença
de estatura entre Lula, que preferiu a prisão para preservar seu legado, e
Fernando Henrique Cardoso, com seu oportunismo mesquinho, personagem minúsculo
e, no entanto, o melhor símbolo que o golpe do impeachment tinha a oferecer.
Peça 6 – os
desdobramentos do jogo
Não significa que, até as eleições, haverá a recuperação das
regras democráticas. O estado de exceção ainda se prolongará por bom tempo. Mas
os valores democráticos, as bandeiras da solidariedade social, o entendimento
da democracia como um valor nacional, estão vivos como sementes plantadas em
solo fértil. E, na base de tudo, o legado de Lula, não apenas no discurso e na
palavra, mas nas políticas implementadas em seu governo e nos resultados
alcançados.
É a semente para uma nova política que ainda está nascendo,
mas que é irreversível.
Do GGN